Salve, Buteco! Quero debater com vocês o tema "tríplice coroa x priorização", porém acho que, para conseguir expor bem o que penso, será preciso abordar primeiro a História das competições de futebol, especialmente a divisão dos campeonatos nacionais e das copas. Entender historicamente o contexto desses dois formatos de competição ajuda a medir o quanto é factível exigir de um clube que ganhe todos eles em uma só temporada.
Obviamente, cada país tem sua História e em cada um deles o futebol começou a ser jogado no formato de copas, no de liga nacional ou mesmo de diversas ligas regionais. Na Inglaterra, por exemplo, a FA Cup precedeu qualquer outro formato. O mesmo ocorreu na Espanha.
Já na Alemanha e na Itália primeiro as primeiras competições foram formatadas em diversas ligas, tendo a primeira competição nacional sido a copa respectiva (DFB-Pokal e Coppa Italia), ao passo que a Bundesliga e a Serie A foram estruturadas posteriormente.
No Brasil o futebol foi se formatando de uma maneira mais parecida com a da Alemanha e da Itália. A forma federativa de estado e as dimensões continentais do país acabaram fazendo com que o processo de criação de uma competição nacional demorasse mais do que em países europeus.
Neste ponto, abro um parêntesis para repetir o que escrevi há quase 5 anos neste Blog, no post Olho no Passado, Mirando o Futuro (2), quando basicamente defendi o seguinte:
Salve, Buteco! Semana passada destaquei o Ranking Folha do futebol brasileiro e a primeira colocação ocupada, já com alguma folga (que tende a aumentar), pelo Mais Querido do Brasil. Destaquei também como ficaria uma classificação por títulos conquistados em competições organizadas por CBF, CONMEBOL e FIFA. Após essas reflexões, ressaltei a importância da continuidade de Jorge Jesus no Flamengo. Pois bem, hoje percorrerei outro caminho para chegar ao mesmo lugar. Esse outro caminho começa, conforme prometido nos debates, com uma breve incursão na polêmica decisão do então presidente da Confederação Brasileira de Futebol, Ricardo Teixeira, de “unificar” os títulos brasileiros, carimbando as edições da Taça Brasil e, a partir de 1967, do Torneio Roberto Gomes Pedrosa, quando deixou de ser apenas o Rio-São Paulo e passou a ser também disputado por clubes de outros estados.Desde logo afirmo que não sou refratário a uma revisão histórica, desde que respeite o que chamo de “essência” de cada torneio. Para resumir: a Taça Brasil, cujo título dava direito a vaga na Libertadores da América (a partir da criação deste torneio) e sempre teve formato exclusivamente eliminatório, equivale à Copa do Brasil; já o “Robertão” deveria ser o único torneio a ter o status de campeonato brasileiro.Paulo Vinícius Coelho traz uma importante abordagem sobre a unificação, posicionando-se contrariamente, porém foi Mauro Betting que, a meu ver, melhor explicou a diferença entre a Taça Brasil e o Robertão, bem como suas correspondências, respectivamente, à Copa do Brasil e ao Campeonato Brasileiro. O argumento mais persuasivo é a comparação com a FA Cup da Inglaterra. Tal como no país bretão, a Taça Brasil, primeira competição de caráter nacional organizada pela então CBD, teve caráter exclusivamente eliminatório, sem que isso representasse qualquer desprestígio ao campeonato nacional, posteriormente criado.Quanto ao Robertão, apesar das cabíveis ponderações quanto à restritividade de participação de maior número de clubes grandes em suas primeiras edições, vejo essa questão como um problema histórico que veio a ser corrigido, especialmente a partir de 1970 (Taça de Prata, vencida pelo Fluminense). Para mim, respeitando as opiniões em sentido contrário, foi campeonato brasileiro e assim deve ser considerado.A maioria esmagadora das federações dos países nos quais se joga futebol separa as principais competições que promove entre o campeonato nacional de pontos corridos e a copa nacional (exclusivamente eliminatória). Muitas promovem ainda uma copa da liga, também em sistema exclusivamente eliminatório, e/ou uma supercopa disputada entre os vencedores das duas primeiras, sempre as principais.
É importante observar que a Copa do Brasil começou com o nome Taça do Brasil, porém o formato foi abandonado e o de campeonato nacional (não copa) foi se formando via Roberto Gomes Pedrosa, Taça de Prata e, finalmente, Campeonato Brasileiro.
O sistema de disputa sofreu incontáveis alterações, de edição a edição; porém, apesar de ser o que mais se aproximou (no país) do conceito de "liga" adotado na Europa, não deixou de ter um caráter híbrido; não em todas, mas em muitas edições, com as fases mais avançadas sendo disputadas no formato de copas (eliminatório).
A Copa do Brasil (antes Taça Brasil) foi retomada em 1989 e desde então se consolidou no calendário do futebol brasileiro, sendo hoje uma competição tradicional, a segunda mais importante do país, muito embora, ainda sim, seja "A Baranga" - aquela que nunca será a Patroa ou a Princesinha.
Levei vocês a essa viagem no passado para que compreendam bem algo que parece simples, mas na prática é complicado para exergar: copas são uma tradição europeia e não sul-americana. Na América do Sul, o Brasil foi pioneiro em sua consolidação no calendário e apenas neste século outros países como Argentina e Colômbia seguiram o exemplo.
Parêntesis fechado, vamos dar uma outra voltinha no passado, mas dessa vez para entender o grau de dificuldade historicamente existente, aonde sempre se jogou o campeonato nacional e as copas, ou seja, na Europa, para um time vencer as duas competições numa mesma temporada.
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Para quem não conhece, apresento o conceito de "The Double", definido neste excelente artigo da Wikipedia britânica como "the achievement of winning a country's top tier division and its primary domestic cup competition in the same season" ou, Traduzindo para o português, a conquista da 1ª divisão nacional e a principal copa de um país na mesma temporada. Para facilitar, vou apelidar o feito de "dobradinha".
Sei que para muitos é um conceito reducionista, já que aqui se fala de maneira banalizada em tríplice coroa, coisa e tal. Só que as pessoas, ao utilizarem o termo e (evento mais raro) idealizarem a "pura e autêntica tríplice coroa" (Brasileiro, Libertadores e Copa do Brasil), não percebem o quão é difícil, antes de conquistar as três, conquistar duas delas, inclusive a dobradinha das duas maiores competições nacionais.
Pensam que é fácil? Leiam o artigo e constatem que é um fenômeno raro, historicamente, em âmbito mundial. Tão raro que, aqui no Brasil, após a volta da Baranga, só ocorreu 2 vezes, ambas no Século XXI e com a dupla mineira: Cruzeiro (2003) e Atlético Mineiro (2021).
Na Europa, nas ligas realmente grandes, assim entendidas como as de países com História em Copas do Mundo (títulos e finais), o fenômeno era raríssimo antes do advento do Caso Bosman e do fim da "Lei do Passe", e continua sendo no Século XXI, mesmo com o surgimento do fenômeno dos supertimes, aqueles ricos e com elencos mais fortes do que tradicionais seleções nacionais.
No Século XX, antes da Lei Bosman, na Inglaterra apenas o Manchester United (1993/1994) e o Arsenal (1970/1971) conseguiram, por uma vez cada, atingir a façanha. Depois desse marco, cada um deles repetiu o feito por duas ocasiões, feito só atingido pelo Manchester City, recentemente.
Na Alemanha, apenas o Schalke 04 (1937/pré-Bundesliga) e o Bayern de Munique (1968/1969 e 1985/1986) alcançaram a façanha até a Lei Bosman, a qual nem mesmo o esquadrão de Sepp Meyer, Franz Beckebauer e Gerd Miller (década de 70) conseguiu. O Gigante da Baviera, contudo, "descolou" dos demais após o fim da lei do passe em todos os aspectos, o que refletiu na conquista da dobradinha por 11 vezes. Um típico exemplo das distorções do endinheirado futebol de hoje.
O cenário alemão pós-Bosman, contudo, é uma exceção. Na Espanha, antes do evento Bosman Barcelona e Real Madrid só conseguiram o feito por 3 (Barça) e 4 vezes (Real), respectivamente. Depois da Lei Bosman, passadas nada menos do que 29 temporadas, o Barcelona repetiu o sucesso por apenas 5 vezes, enquanto o Real Madrid simplesmente não conseguiu e está "na seca" desde a temporada 1988/1989, mostrando que ter um time galático dominante em níveis continental e mundial não garante hegemonia dentro de casa.
O cenário italiano talvez seja o historicamente mais equilibrado e ao mesmo tempo um excelente exemplo do cataclisma que foi a Lei Bosman para a competitividade entre clubes no velho esporte bretão. Antes do evento, a Juventus fez a dobradinha duas vezes (1959/1960 e 1994/1995), seguida dos históricos times do Torino (1942/1943) e do Napoli (1986/1987). A Internazionale alcançou a façanha por duas vezes já em tempos pós-Bosman (2005/2006 e 2009/2010) e o Milan simplesmente é "virgem" até hoje no quesito, ou seja, nem mesmo os históricos esquadrões que conquistaram o continente europeu e o mundo conseguiram predominar de maneira plena no cenário local.
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O mesmo artigo que sugeri mostra que existem dobradinhas "com outros ingredientes", ou seja, entre outras competições, como, por exemplo, entre copas, em países que têm a copa nacional e a copa da liga (ex.: FA Cup e EFL na Inglaterra); entre campeonato nacional e copa continental (Champions e UEFA) e copa nacional e copa continental. Todas essas associações são raras e de difícilima conquista, como é possível constatar a partir da leitura do texto.
Um bom exemplo de dobradinha alternativa é o Liverpool de 1976/1977, que conquistou o campeonato inglês e a European Cup (equivalente à Champions League). Este verdadeiro esquadrão, que só foi desafiado no cenário inglês pelo Nottingham Forest de Brian Clough, não conseguiu conquistar o título inglês e a FA Cup numa mesma temporada.
No Brasil, apenas recentemente, depois do mítico Flamengo de Jorge Jesus na temporada 2019, voltaram a ocorrer dobradinhas como a do próprio Flamengo (Brasileiro e Libertadores), feito apenas reproduzido em 2024 pelo Botafogo; Atlético Mineiro (2021/Brasileiro e Copa do Brasil) e de Palmeiras e Flamengo (2020 e 2022/Libertadores e Copa do Brasil).
Desde o mesmo marco (2019), somente o Flamengo conquistou a dobradinha em mais de um formato.
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Se a dobradinha tradicional já é rara, a tríplice (liga nacional, principal copa nacional e copa continental) e a quadrúplice (mundial incluso) coroas são feitos ainda mais difíceis de serem alcançados. Antes da Lei Bosman, apenas o Ajax de Johann Cruyff, na temporada 1971/1972, conquistou a quadrúplice. Depois disso, apenas Internazionale (2009/2010), Bayern de Munique (2012/2013), Real Madrid (2021/2021) e Manchester City (2022/2023) repetiram o feito.
O Celtic Glasgow de 1966/1967 é um esquadrão que merece menção, por ter conquistado a European Cup, a Scottish League, a Scottish Cup e a Scottish League Cup naquela temporada. Os escoceses foram parados pelo Racing na Intercontinental, em um confronto extremamente polêmico por conta dos incidentes ocorridos nos jogos disputados na Argentina e no Uruguai, como contei para vocês no post O Mundial de Clubes - 1ª Parte - O Início da Copa Intercontinental.
Outro time que deve ser lembrado é o PSV Eindhoven da temporada 1987/1988, que conquistou a European Cup, a Eiredivise e a KNVP Cup, sem Romário, e caiu na final da Intercontinental para o Nacional de Montevidéu em Tóquio, já com a presença do Baixinho.
O mais interessante é que, quando flexibilizamos o critério para a tríplice e a quadrúplice coroas, salta os olhos o quanto é difícil e rara a dobradinha tracional (campeonato e principal copa nacional). Alguns exemplos:
Tríplice Coroa com Mundial e sem Copa Nacional:
1) Steaua Bucaresti: Intercontinental, Champions League e Romanian League. Caiu na final da Romanian Cup para o Dínamo Bucaresti.
2) Estrela Vermelha (Crvena Zvezda) 1990/1991: Intercontinental, European Cup e SFR Yugoslavia League. Caiu na SRF Yugoslavia Cup para o Hadjuk Split na final.
3) Porto 2003/2004: Intercontinental, Champions League e Campeonato Português. Caiu na final da Taça de Portugal para o Benfica.
4) Manchester United 2007/2008: FIFA Club World Cup, Champions e Premier League. Caiu na FA Cup para o Porstmouth (campeão) nas 4ªs de final.
5) Barcelona 2008/2009: FIFA Club World Cup, Champions League e La Liga. Caiu na Copa del Rey para o Sevilla (campeão) nas 8ªs de final.
Tríplice Coroa sem Mundial:
1) Nottingham Forest 1977/1978: European Cup, First League Division e EFL Cup. Caiu na final da Intercontinental para o Nacional.
2) Liverpool 1983/1984: European Cup, First League Division e EFL Cup. Caiu na final da Intercontinental para o Independiente.
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Acredito que agora ficou mais fácil para compreender o contexto no qual eu acredito que o tema "tríplice coroa x priorização" deve ser debatido, qual seja, o da factibilidade ou, em português claro, a qualidade ou característica do que é factível, do que pode ser realizado.
No caso do Flamengo, o "vencer, vencer, vencer" muitas vezes é reproduzido numa cobrança irreflexiva, porém sabemos que nem sempre dá para ganhar "a porra toda", o que muito provavelmente será o caso do insano calendário da temporada/2025.
Não dá para programar tudo na vida, muito menos no futebol, e, portanto, não vamos colocar a carroça na frente dos bois, porém é bem possível que, mais adiante, seja preciso fazer escolhas.
De minha parte, vou cobrar a promessa de priorizar a Patroa.
Voltaremos ao tema oportunamente.
Uma ótima semana pra gente.
Bom dia e SRN a tod@s.