quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Volta pra Marcar: O Flamengo e Seus Ídolos (Ainda a Síndrome de Peter Pan Rubro-Negra )


Salve, Buteco! Foi num domingo, mais precisamente o de 5 de junho de 2017, que, na minha opinião, 2019 começou a de fato acontecer. Willian Arão já havia sido contratado em 14 de dezembro de 2015, mas quando o Mais Querido anunciou Everton Ribeiro deu para sentir que o time finalmente subiria de patamar. O Mago da Camsa 7 foi a segunda grande contratação do segundo mandato da gestão Eduardo Bandeira de Mello, pois Paolo Guerrero havia sido contratado em 2015, último ano do primeiro mandato, e Diego Ribas foi anunciado um ano antes

Escolhi homenagear o Mago ao falar sobre ídolos, ciclos e essa ideia que tenho, de que o Flamengo precisa amadurecer, porque, do "Quarteto Mágico" da Geração 2019, na minha opinião foi o jogador que sempre mais se sacrificou. Se Arrascaeta, Gabriel e Bruno Henrique foram mais protagonistas, o Mago foi uma força constante, o elo que forjou o equilíbrio entre as funções defensiva e criativa. Sem ele 2019 não teria existido.

No post da sexta-feira retrasada, defendi (com o coração partido) a renovação do elenco com sua saída. Até acho que ele ainda tem alguma lenha para gastar, mas um dos motivos pelos quais sustento a sua saída é o que abordei de passagem no post da última segunda-feira: a relação do Flamengo com seus ídolos e a influência que isso tem nos ciclos desse tipo de atleta no clube - ciclos podem ser desnecessariamente abreviados ou estendidos por conta da forma que o clube se relaciona com cada atleta.

Para explicar melhor como enxergo o caso do Mago da Camisa 7, vou recorrer a um exemplo de um dos gigantes do futebol europeu, o Manchester United, da Inglaterra, e o talvez maior ídolo da sua História, o meia galês Ryan Giggs. Canhoto como o Mago, Giggs tem uma relação ainda mais profunda com os Red Devils, eis que foi o único clube no qual jogou, desde as categorias de base, e onde alcançou incríveis recordes como o maior número de partidas disputadas por um atleta na Premier League e no próprio United.

Além do cruzamento/assistência no gol do título contra o Palmeiras no Mundial de Clubes de 1999, e da grande categoria que sempre exibiu, lembro-me do galês terminando sua carreira no United entrando cada vez menos nas partidas, porém sempre e merecidamente ovacionado pela torcida. A perda de espaço ocorreu gradualmente, mas sob a forte e positiva liderança de Sir Alex Ferguson, jamais se tornou um problema.

Quando penso em algo semelhante no Flamengo, de pronto me deparo com a (absoluta) inviabilidade de ocorrer com todos os nomes da Geração 2019. Simplesmente não dá para fazer com todo mundo, seja pelo aspecto etário (rejuvenescimento x envelhecimento do elenco), seja pelo financeiro, contexto que obriga o clube a fazer suas escolhas. 

Todavia, no caso da Geração 2019, acredito que a maneira pela qual se dá a relação com o clube (e a torcida) traz um complicador a mais. Vejam, a propósito, as palavras do "Mestre das Entrevistas", o ídolo Filipe Luís:


Ainda bem que o De La Cruz tem muita personalidade e não se intimidará com o alerta de vaga cativa (risos). Abra os olhos, Tite! (mais risos).

Falando sério, a impressão que tenho é que a chegada de Filipe Luís ao clube foi acertada, dentre outros fatores, não só pela ambição do atleta em encerrar sua carreira no clube, como também de iniciar uma outra, de treinador, no próprio clube, seja compondo uma comissão técnica, seja tornando-se o próprio treinador. Acredito que esse elemento sempre compôs (não sei em qual proporção) o cenário de questionamentos aos diversos treinadores que passaram pelo Flamengo após a saída de Jorge Jesus, o qual, diga-se de passagem, também foi questionado, mas em suas respostas dobrou o inquieto aprendiz com sua inegável maestria.

Um famoso ditado popular relacionado com a política ensina que "o poder não admite vácuo". E como existe uma política intrínseca a toda forma de relação humana (familiar, conjugal, fraternal, profissional ou "partidária"), ela também se faz presente na forma que um clube se relaciona com seus atletas profissionais de futebol. 

No caso da Geração 2019, essa relação começa a ser moldada a partir da maneira exageradamente emocional e leniente pela qual o Flamengo trata os seus ídolos, e termina de ser forjada com a peculiaridade da gestão do Departamento de Futebol pela dupla Braz/Landim.

Levando ao plano mais concreto, e deixando minha opinião de lado em prol do debate, admito que, conceitualmente, renovar com o Everton Ribeiro por 1 ou 2 anos pode ser ou não um problema de acordo com o grau de autonomia que o treinador terá para definir a sua minutagem. Entretanto, parece cada vez mais evidente que o Mago não aguenta mais o vai-e-vem por 90 minutos, que dirá em uma longa sequência de jogos de copas alternadas com o Campeonato Brasileiro, o que justifica a pergunta: será que no Flamengo de hoje é possível alguém da Geração/2019 perder espaço sem crise com o treinador?

Há outros importantes fatores envolvidos nessa análise, a começar pelo espaço na folha salarial. O sistema Braz/Landim não funciona com priorização de scout e nem muito menos com investimento em revelações do Brasil ou da América do Sul. Ocorre que, a cada Herói de Lima (ou medalhão posterior) que renova seu contrato, o espaço para investimento diminui, eis que não se trata de jogadores de custo baixo (muito pelo contrário). 

Da mesma forma, o espaço para competição por posição dentro do grupo. Há sentido em ter Gérson, De La Cruz, Gustavo Scarpa (especulado) e Everton Ribeiro no mesmo elenco, com essa "tradição" de vaga cativa, capitão (em rodízio!), etc.? Será que é algum absurdo Gustavo Scarpa (por quem não morro de amores), antes de avaliar eventual proposta do Flamengo, querer ouvir Tite sobre suas potenciais chances num elenco de múltiplos capitães, marcado pela hierarquia formada a partir da importância no período 2019/2022?

Que fique muito claro: estamos falando de problemas comuns no Mundo de Futebol, especialmente no futebol brasileiro, mas que ganham proporção bem maior no Flamengo, seja pela tradição cultural do clube, seja pelo perfil do gestor amador do futebol profissional, que a amplifica em níveis completamente exagerados (minha opinião).

Aproveitando que já demos um passeio pela Inglaterra, vou permanecer por lá para aproveitar e incluir um vídeo bastante recente, postado no Twitter pelo jornalista João Castelo Branco (@j_castelobranco), correspondente da ESPN em Londres, que entrevistou o veterano treinador Roy Rodgson, hoje no Crystal Palace de John Textor. 

O Head Coach, na ocasião, falou sobre o desempenho do nosso cria Matheus França no heróico empate por 2x2 contra o Manchester City de Pep Guardiola, fora de casa, em pleno Etihad Stadium:


Agora tentem imaginar a cena: Vitor Pereira, Jorge Sampaoli ou Tite conversando com Gabriel Barbosa, Pedro ou Bruno Henrique (ou com os três, já que não falta quem pense que podem jogar juntos) nos mesmos termos. 

Esse foi o Flamengo de 2023. O da virada para o Grêmio na Arena, da goleada para o Bragantino, etc. Nasceu da ficção de que o modelo de 2022 era sustentável a longo prazo, com ou sem João Gomes. Constatar esse fato, na minha opinião, não afasta a premissa de que, dentro do sistema Braz/Landim, teria sido melhor Dorival (o Paternal) permanecer no comando do elenco em 2023. Da mesma forma, nem muito menos tira o mérito do trabalho mágico do nosso Paizão (não se enganem, somos filhos de Dorival, especialmente na freguesia).

Não quero voltar, hoje, neste texto, ao tema posicional x funcional, mas apenas observar que, hoje em dia, no mundo todo do futebol, tem que voltar para marcar. Voltar para marcar, Amigos. Percebem? Trata-se de premissa que antecede de maneira lógica o debate sobre o modelo tático ideal para o elenco. Daí vem a minha opinião de que o modelo de 2022 era insustentável, talvez até a curto prazo.

O treinador pode ser o Pep, o Klopp, o Sampaoli, o Tite ou o Diniz, mas a realidade é incontestável: treinador nenhum se criará "defendendo com 8", como alguns românticos do Twitter (inclusive da FlaTT) pregam para "escalar todo mundo junto".

Exemplo do Twitter (não identificarei o jornalista porque não desejo expor ninguém, e também porque tem muita gente que fala o mesmo):

Se o noticiário mais recente corresponder à verdade, pelo menos em tese, Tite terá recursos humanos para formar um setor ofensivo do Flamengo à moda do clube. Pulgar Scarpa De la Cruz Arrasca Gabigol Pedro

Só faltaram o Gérson e o Bruno Henrique (risos). Agora imaginem se isso ou algo semelhante acontecer de verdade. O Tite rodará em quanto tempo? 

O futebol de hoje não é  mesmo de 2019, ano no qual o histórico Liverpool de Jürgen Klopp se rivalizava com o Manchester City de Pep Guardiola. Quatro temporadas depois, entre dispensas como as de Firmino e Sadio Mané, e contratações como a de Darwin Núñez (com todo o respeito), feitas pelo gigante rival, o City se descolou e abriu vantagem, graças a Pep, que se reinventa a cada temporada, influenciando cada vez mais o mundo do futebol.

Nesse processo, o conceito de jogo de posição é atualizado periodicamente, de acordo com o que o Mestre define com suas experiências, num ambiente irrepetível em qualquer outro clube do mundo: torcida ansiosa por grandeza, orçamento (quase) ilimitado e autonomia absoluta.

Cada treinador influenciado por Pep tenta, a sua maneira, adaptar as suas ideias em contextos completamente diferentes do Manchester City. Mas apesar disso, muita gente, que se diz profissional do jornalismo esportivo ou especialista em análises táticas (não é o caso do romântico jornalista do tuite), continua a se referir ao jogo de posição como se fosse um conceito perfeitamente definido, exato e mecânico, o monstruoso vilão destruidor da essência do futebol brasileiro...

Portanto, há um grande espaço para críticas ao nível de influência guardiolista e à viabilidade de um conceito rígido de jogo de posição, porém a maioria das críticas é feita sem critério. Algumas análises chegam ao extremo de confortar emocionalmente os Heróis de Lima, para que "não se sintam culpados por serem o que são". Essas mesmas análises, todavia, curiosamente passam ao largo de premissas básicas, como o fato de que o time de Jorge Jesus não tinha três ou quatro jogadores sistematicamente com mãos nas cadeiras, parados no ataque e sem "voltar para marcar" (jogo de ida contra o Independiente Del Valle, por exemplo).

Passam ainda ao largo da abordagem de elementos como idade, forma física, foco, dedicação, etc. Enfim, os quatro a cinco anos que se passaram desde 2019. O debate, então, é convenientemente reduzido à tese, de teor profundamente ideológico e afetivo, da vilania posicional automática, contraposta à heróica espontaneidade natural e criativa do futebol brasileiro. Uma narrativa moldada às preferências pessoais do seu criador.

O problema é "apenas" a realidade prática.

Com as facilidades proporcionadas pela Internet e o avanço da tecnologia, hoje o mundo todo estuda tática, de maneira simbiótica com a preparação física, a medicina, a fisiologia e... a psicologia de esportes de alto rendimento na era das redes sociais. O talento que não se adapta a essa velocíssima dinâmica evolutiva vai, ano a ano, perdendo espaço e sendo alcançado, em nível de competitividade, por quem trabalha essas ferramentas modernas, embora com menos talento ou dinheiro para investir.

Portanto, não se trata de "implicância" com a Geração 2019, e nem de se subordinar bovinamente à natureza ebulitiva do (inegável, inexorável) Pep Guardiola, mas de enxergar sem devaneios fantasiosos o desencadeamento dos eventos no mundo do futebol. O time desenhado pelo romântico jornalista no Twitter talvez não ganhe do Auckland City, se tiver a sorte de enfrentá-lo no Mundial/2025, pois tenham certeza de que, até lá, a dinâmica fatos trará novos desafios ao romantismo do "defender com 8" (sem contar o Scarpa torto e o Arrascaeta jogando aberto, no exemplo dado).

Percebem o quanto é ilusório o tamanho que se dá ao debate funcional x posicional? Cobrar toda a fatura da falta de resultados no formato tático (e fluido, como podem perceber) do jogo de posição é menosprezar a inteligência alheia. Nesse cenário, narrativas como "ataques a ídolos como escudo para a Diretoria" não passam de reações emocionais, reducionistas e negacionistas do problema real e concreto da falta de análise racionalmente crítica sobre a qualidade e a competitividade do futebol atualmente apresentado por jogadores eleitos como ídolos pela torcida.

E assim, nessa toada, segue o Clube de Regatas do Flamengo, com suas finais perdidas (mesmo com maior investimento) e as arrancadas esporádicas; com o sonho, a fantasia e os interesses inconfessáveis se sobrepondo aos resultados que o clube poderia concretamente apresentar.

Peter Pan, personagem de J. M. Berrie, é um jovem rapaz que se recusa a crescer e passa a vida a ter aventuras mágicas. O problema é que, na vida real e na realidade crua do futebol atual, é preciso suar (e muito!) para a mágica acontecer.

Minha eterna gratidão ao Mago da Camisa 7, que, da Geração 2019, ao lado de Rodrigo Caio, foi o personagem que menos contribuiu para a manifestação mais recente da Síndrome de Peter Pan Rubro-Negra.

A palavra está com vocês.

Bom dia e SRN a tod@s.