Salve, Buteco! Um dos temas que me é mais caro quando se fala de Flamengo é o da constante troca dos treinadores. O clube, notoriamente, é conhecido por ser um verdadeiro triturador desse tipo de profissional. Pesquisando sobre o tema, acabei me deparando com o site interativo do Globo Esporte na Internet, de nome "Rotatividade dos Técnicos", no qual há uma série de filtros para analisar os movimentos de troca de treinadores nos clubes que disputaram o Campeonato Brasileiro de pontos corridos desde o ano de 2023.
Utilizando os filtros "técnicos" (número) e "trocas" (número de trocas), é possível constatar que, entre os tradicionais "grandes" do futebol brasileiro, Flamengo e Vasco da Gama disputam e se alternam na liderança do ranking, conforme o filtro. Enquanto o Mais Querido lidera o ranking do número (36 x 35), o Gigante da Colina lidera o de trocas (46x45), já contando as passagens de Ramón Diaz e Tite. Já na parte debaixo da tabela, os clubes paulistanos, especialmente Palmeiras e São Paulo, são os lanternas dos rankings, com menos número ou trocas.
A fama do Flamengo de triturador ou moedor de treinadores, portanto, é plenamente justificada. Contudo, quando se compara as situações dos líderes dos rankings (Flamengo e Vasco da Gama), é impossível não se levantar vários questionamentos. Vejam bem, a situação atual do Gigante da Colina, de frequentes e sequenciais campanhas lutando contra o rebaixamento (4 delas culminando no descenso, como sabemos), foi vivenciada pelo Mais Querido entre os anos de 2000 e 2005 (talvez com a exceção de 2004), e ainda, talvez com um pouco menos de intensidade, em 2010 e 2012.
De uma maneira geral, a imprensa esportiva e os torcedores sempre apontaram o caos adminstrativo e financeiro como principal motivo para o baixo desempenho esportivo, e, ao menos na minha opinião, não é o caso de alterar esse diagnóstico. Contudo, o Flamengo estável financeiramente, desde 2013, mas especialmente a partir de 2016 (segunda gestão Bandeira de Mello), e que persiste na prática de trocar de treinador entre 2 e 3 vezes por ano/temporada, continua a desafiar o diagnóstico de causas, pois o mínimo que se pode afirmar é que, se as finanças já foram o principal motivo, não o são mais e talvez jamais tenham sido o único.
Por outras palavras, talvez possamos dizer que outros fatores contribuíssem para a ciranda de treinadores e não foram enxergados ou levados a sério porque a verdadeira fratura exposta dos problemas financeiros (atrasos de salários e outros pagamentos) inevitavelmente era tratada com urgência e prioridade, até porque contaminava todo o trabalho do Departamento de Futebol.
A questão que agora se põe, diante da continuidade da frenética ciranda de treinadores, é: quais são essas outras causas? E podemos ainda perguntar: por que persistem? Será que alguém se preocupa com elas?
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Antes de falar do que entendo como principal causa para a longevidade da ciranda de treinadores rubro-negros, sinto que preciso "limpar o terreno" e falar sobre fatores que considero conjunturais, dos quais o clube, por mais que aprimore e profissionalize a sua gestão, não conseguirá se livrar.
Opções de Mercado: o mercado brasileiro simplesmente não oferece muitas opções para o clube mais rico das 3 Américas, ou seja, não brotam a cada esquina profissionais que acumulam atributos como larga experiência, conhecimento atualizado sobre os meandros da tática e as técnicas modernas de treinamento, e ainda ser um grande gestor de pessoas.
Pressão de Outros Mercados: antes da "Primavera Árabe" do Mercado Saudita, que vem revolucionando o mundo do futebol e desafiando o hegemônico mercado europeu, o Flamengo bilionário tinha um bom espaço para atrair treinadores de prateleira mais baixa na Europa. Com os Sauditas no jogo, o jogo (do mercado) mudou e, portanto, as opções diminuiram ainda mais.
Mas não é só isso.
Nos tempos de buraco negro financeiro, a dificuldade do Flamengo era atrair treinadores do mais alto nível para trabalhar no clube, por motivos óbvios. Atualmente, nos tempos de Flamengo bilionário, e de maior vitrine das 3 Américas, a dificuldade continua a ser segurar um treinador que se destaque minimamente no clube, especialmente, mas não exclusivamente, sendo estrangeiro.
Já aconteceu com Joel Santana (2 vezes), Reinaldo Rueda e Jorge Jesus, e tende a acontecer mais vezes no futuro.
Calendário: vocês sabem que eu adoro esse assunto, certo? Pois saibam que, na minha opinião, ele também influi, por duas razões diferentes, na pouca longevidade dos treinadores rubro-negros. A primeira delas é mais evidente e envolve a quantidade de jogos em sequência por competições diferentes, o que desgasta os atletas e, por via de consequência, drena a força do trabalho do treinador.
A segunda razão, porém, é mais sutil e precisa ser realçada para ser notada. É que, quando se trata especialmente de treinador estrangeiro, figura que invariavelmente (atenção para o advérbio) anseia se projetar no mercado europeu (e agora também no Saudita), ou mesmo de treinador brasileiro que tenha a mesma ambição, a diferença entre as datas de início e fim das temporadas surge como potencial causa para a rescisão do contrato antes do fim do prazo.
A possibilidade desse perfil de treinador receber proposta de mercados mais fortes (como ocorreu com Luís Castro recentemente no Botafogo) é real e concreta. É claro que uma multa rescisória bem negociada pode proteger o clube, mas sabemos como a coisa funciona. Treinador insatisfeito costuma ser sinônimo de fracasso no futebol.
Conjuntura: portanto, qualquer dirigente que tenha a missão de escolher um treinador para o Flamengo de plano terá que se deparar com, no mínimo, esses três fatores conjunturais. Aliás, não descarto a existência de outros e inclusive acho provável que existam, em alguns casos até de maneira pontual (ex.: pandemia). Mas desses 3 fatores conjunturais, arrisco dizer, nenhum dirigente rubro-negro escapará. Não são incontornáveis, mas precisam ser contornados, o que não costuma ser simples.
É neste ponto que passa a ser relevante discutir como o próprio Flamengo atrapalha seus treinadores.
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Seguindo o método dos fatores conjunturais, vou separar e resumir, um por um, aqueles que considero mais relevantes e intrínsecos ao próprio Flamengo e sua cultura.
VP Amador chefiando profissionais: o problema é antigo. Na primeira década do Século XXI, por exemplo, tivemos o ex-presidente Kleber Leite ocupando o cargo. No primeiro triênio da gestão Bandeira, o ex-candidato a Presidência Wallim Vasconcellos. Na segunda gestão Bandeira, José Godinho.
A gestão amadora não é necessariamente ruim em todos os aspectos e é inegável que já trouxe importantes títulos para o clube; contudo, é, ao mesmo tempo, necessariamente personalista. O VP amador atuante atropela decisões técnicas de profissionais e não se limita a "fiscalizar" o setor e fazer cobranças. É o "olheiro" em contraposição ao scout, em nível de gerência.
É claro que nem todo profissional é competente e honesto, mas o mundo do futebol caminha, cada vez mais, para desenvolver uma estrutura que tenha um diretor técnico capaz de debater escolhas (contratações, escalações) e avaliar o trabalho do treinador.
Cultura do Ídolo: o Flamengo reconhece e valoriza seus ídolos. É uma marca do clube que, na minha opinião, não deveria mudar. A torcida se distingue qualitiativamente das outras com seus bandeirões e painéis enaltecendo os ídolos e seus feitos do passado. Isso é autenticamente Flamengo e, arrisco dizer, está incorporado à cultura rubro-negra desde que José Bastos Padilha contratou Domingos da Guia, Fausto "Maravilha Negra" e Leônidas da Silva, o "Diamente Negro", que virou até nome de chocolate. Suprimir esse fator seria descaracterizar a essência do clube.
O problema está na proporção e na banalização da figura do ídolo, e no poder que os jogadores (sequer precisando ser ídolo) mais prestigiados possuem, fenômeno que ganhou corpo a partir do fim da "Geração Zico". O clube, sem saber se reinventar e viver de outra forma, dá a quem não tem tamanho um peso que não consegue sustentar, e por isso vem, ao longo das décadas, procurando "o Novo Zico", o "Novo Cláudio Coutinho" ou o "Novo Carlinhos". A novidade da vez é a busca pelo "Novo Jorge Jesus".
E para piorar, a mistura do VP Amador com a figura do ídolo (de barro, artificial) gera relações personalistas, as quais se sobrepõem a decisões técnicas e, consequentemente, retiram o poder e o espaço do treinador, sendo, em razão disso, um dos principais fatores para a existência de frequentes e sequenciais ciclos curtos.
É o Renato Abreu insubstituível (um herói sem limites), o Lucas Mugni com a camisa 10 (ídolo artificial antes de estrear), o Marcelo Cirino em dúvida se iria superar o Zico (clássico exemplo de ejaculação precoce em gestão de futebol), ou o Filipe Luís projetado como treinador antes mesmo de ser contratado, mas sabatinando, quando não avaliando, como se diretor técnico fosse, o trabalho de cada treinador, claro que partindo da premissa de qual função tática desempenhará no time.
VP Amador e Política Partidária: se o binômio VP Amador + ídolo já é um fator complicador, o trinômio formado com o acréscimo da figura do político (política partidária) o supera com larga folga. Em tempos de redes sociais, o personalismo da relação do dirigente amador com o ídolo ganha proporções inéditas e se torna ativo eleitoral e foco central da gestão do Departamento de Futebol.
As relações passam a servir interesses externos ao clube. A propaganda pessoal ocupa espaço. O personagem se torna indispensável. O Flamengo não vencerá sem ele. "Toda renovação de contrato se tornou uma novela longa, escancarada para a imprensa. O clube fica exposto, os envolvidos saem desgastados, muitas vezes queimados com os torcedores e terminam por trazer esse momento ruim para dentro de campo." (A culpa é de Marcos Braz - Blog do Titan, 20/4/2010).
Isso sem falar das cifras atuais...
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Treinadores erram, já que não são perfeitos, mas em um ambiente como o do Departamento de Futebol do Flamengo o desfecho mais provável, a cada contratação, é a rescisão do contrato muito antes do termo final.
"Professor, o JJ não treinava assim não, hein?" (@TAkumi)
Na base da tentativa e erro, o Flamengo vai trocando os seus treinadores, e, nessa toada, um Jorge Jesus repete um Cláudio Coutinho, a cada 38/40 anos; um Carlinhos é repetido por um Dorival Júnior, a cada 23 anos; um Jayme repete um Andrade, a cada 4 anos, e, mesmo assim, num tiro curto de poucos meses. São as chamadas "arrancadas".
Por que o Flamengo, com tanto dinheiro, não conquista títulos com maior frequência (não confundir com "ganhar tudo")? Porque historicamente gere seu futebol com base não em projetos, mas em pessoas e relações personalistas, cultura que não mudou com a estruturação financeira. E antes que alguém fale alguma coisa, com todo o respeito, repito que ninguém está pedindo o fim da figura do ídolo, mas apenas que os interesses do clube sejam a prioridade.
Nesse prisma, por exemplo, penso que o debate sobre contratos longos é absolutamente estéril, chegando a ser ridículo. É óbvio que bons atletas (especialmente os diferenciados, ídolos ou não) merecem contratos longos. A questão é por que esses atletas não mantém a motivação durante todo o período e por que se tornam mais importantes do que a necessidade de ter um projeto esportivo (inexistente, no nosso caso).
Enquanto o Flamengo não amadurecer, padecerá por sua Síndrome de Peter Pan Rubro-Negra. Viverá eternamente na Terra do Nunca; dos ciclos e títulos esporádicos; das arrancadas a cada década; das finais perdidas para paulistas e outros menos cotados, de elencos inferiores. O gigante do potencial adormecido e inexplorado.
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Tite estará no comando do Flamengo no Mundial de Clubes FIFA, a ser disputado em 2025 (15/6 a 13/7)?
Se a resposta for negativa, quantos treinadores o Amigo do Buteco (que respondeu não) acha que o Mais Querido do Brasil (e do Mundo) terá até lá?
E quais serão as nossas chances de avanço na competição, nesse último cenário?
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A palavra está com vocês.
Boa semana e SRN a tod@s.