Salve, Buteco! Na História do futebol brasileiro, sempre houve diferenças no estilo de jogo entre as regiões do país. O futebol carioca sempre foi o mais técnico e de "toque de bola", enquanto o futebol dos estados do Sul, especialmente o Rio Grande do Sul, sofria maior influência do futebol europeu do que as outras regiões. São Paulo e Minas Gerais ficavam em um meio termo, ora com times mais técnicos, ora com outros mais físicos e "de correria".
É que, nessa mais do que secular História, podemos falar em predominância de estilos, mas não em um estilo único e inflexível de jogar futebol. Neste passo, pode-se dizer que, no Rio de Janeiro, o Flamengo variou entre times muito técnicos (Tricampeonatos, Geração Zico e Jorge Jesus) e outros "de raça e correria" (década de 60, 1999 e 2013), mas sempre dentro de um formato muito ofensivo; já o Vasco da Gama teve o Expresso da Vitória e o forte time de 1997/1998, assim como o time de zagueiros brutos e atacantes velozes (Roberto Dinamite e Dé) dos anos 70, sem cerimônia de jogar no contra-ataque.
Em São Paulo, o Santos sempre foi o "mais ofensivo", com o superesquadrão da Era Pelé ou com Meninos da Vila (1978, 2002 e 2011), enquanto o Palmeiras variou dentro da dualidade Academia e os times de Luxemburgo, contra a faceta mais aguerrida, com Felipão e Abel Ferreira. O São Paulo variou entre times técnicos e ofensivos de Cilinho e Telê Santana e os mais pragmáticos, como o da Era Muricy Ramalho. Já o Corinthians sempre teve uma pegada mais defensiva e aguerrida, com o contraponto excepcionalmente técnico dos times de Vanderlei Luxemburgo e Oswaldo Oliveira (1998/1999/2000).
A formação desses times tinha um grau de aleatoriedade maior do que o do futebol europeu, pois no futebol brasileiro, dentro e fora de campo, a espontaneidade e o improviso (para o bem e para o mal) prevaleceram mais do que projetos e planejamentos. Um fator muito influente nesse processo sempre foi o momento financeiro dos clubes. Logo, as fases de mais dinheiro para investir em atletas resultavam muitas vezes em times individualmente muito fortes, enquanto as outras, de vacas magras (não raro com grandes dívidas), obrigavam os dirigentes (responsáveis ou não pela crise financeira) a se virarem com o que sobrava.
Ao longo das décadas, e eu arrisco dizer, até o advento da Lei Bosman (O Mundial de Clubes - 4ª Parte - A Lei Bosman, o Fim da Intercontinental e o Mundial de Clubes da FIFA), havia disputa, equilíbrio, e o fator econômico, apesar de sempre estar presente, influenciava menos o resultado das competições do que faz nos dias atuais. Assim, dentro do cenário de equilíbrio de forças, apesar de o jeito europeu de jogar futebol sempre ter alguma influência sobre o sul-americano, o processo inverso também ocorria. A título de exemplo, o time da França da Copa de 1982 foi o "mais brasileiro" que já vi um europeu formar, e um de seus meiocampistas, Amadou Jean Tigana, era apelidado por alguns cronistas da época de "Carioca", dado o estilo clássico de toque de bola.
Um exemplo melhor ainda é o dos iugoslavos, que já foram chamados de brasileiros ou sul-americanos da Europa. Aliás, não é por acaso que o estádio do Estrela Vermelha é apelidado de "Marakana". Pelo mesmo motivo, ninguém deve estranhar a geração croata que eliminou a Seleção Brasileira da Copa do Qatar/2022 ter por característica um jogo tão cadenciado e de troca de passes, muitas vezes no "setor interno" do gramado.
Há tempos que comento com vocês sobre aspectos táticos e culturais do chamado jogo de posição (JdP) e os problemas de sua adaptação a clubes grandes do futebol brasileiro. Outro tema que volta e meia trago para discussão é como, no futebol moderno, há menos gênios, aquelas grandes individualidades (Pelé, Garrincha, Zico, Maradona, Romário e Messi) do mais alto patamar, e mais grandes craques, um patamar abaixo em talento e, dentro desse espectro, com funções táticas mais definidas e menos espaço para improvisar.
Mas o "subtema" que tem contornos mais pragmáticos talvez seja o de que existem cada vez menos treinadores no mercado capazes de estruturar competitivamente um time com as características desse jogo, o qual o meio do futebol vem convencionando chamar de "funcional".
A reação natural de quem deseja proteger e fazer sobreviver uma cultura de jogar futebol vem se expressando na cada vez mais radical e furiosa dicotomia entre "jogo de posição x jogo funcional", como brilhantemente explicou Carlos Eduardo Mansur (@carlosemansur) na sua coluna de hoje em seu Blog no GE/Globo.com:
"Menos de uma hora se passara após o empate do Brasil com a Venezuela, e duas entrevistas na chamada zona mista da Arena Pantanal chamaram atenção. Numa delas, o lateral Danilo relatava a dificuldade de passar de um tipo de jogo que definiu como “totalmente posicional”, praticado em boa parte dos clubes europeus, para um modelo tão diferente quanto o praticado por Fernando Diniz. Na seleção, no lugar de os jogadores ocuparem zonas do campo predeterminadas, no lugar de fazer a bola chegar a cada uma destas zonas, Diniz faz os jogadores se juntarem num setor do campo, em torno da bola, para trocarem passes curtos.
Instantes depois, foi a vez de Bruno Guimarães admitir, em conversa com o ótimo repórter Marcelo Courrege, que por vezes há um instinto de fazer inversões de jogo. Ou seja, tirar a bola do setor congestionado e buscar o lado oposto do campo. Em geral, é o que pregam tantos treinadores: atrair o rival para um lado do campo e inverter a jogada em busca de mais espaço. Diniz, no entanto, costuma fazer seus times resolverem as jogadas do mesmo lado em que as iniciam, usando a sobrecarga de jogadores naquele setor para gerar aproximações, passes e infiltrações. Contra a Venezuela, no desapontador 1 a 1 de Cuiabá, as aproximações de fato aconteceram. Os movimentos de ultrapassagem, infiltrações, estes ficaram faltando.
É saudável que o Brasil tenha colocado na agenda de seus debates de futebol uma discussão sobre modelos ofensivos, sobre formas de atacar: o chamado jogo posicional, com sua ocupação racional de zonas de campo; ou um jogo de mobilidade, de aproximações, um estilo que Diniz leva ao extremo com a sobrecarga de um dos lados do campo num volume dificilmente encontrado no mundo. Um jogo recentemente também chamado de “funcional”.
O debate é riquíssimo, não só sobre as diferenças entre os modelos, como também sobre a adaptação dos jogadores. O problema é entender um ou outro como uma receita única para se ganhar jogos de futebol, uma fórmula infalível de sucesso ou um estilo destinado ao fracasso. Tampouco a diferenciação entre o posicional ou o jogo de aproximações é o único traço de identidade que define uma equipe.
O Brasil, talvez por influência de um contexto peculiar, tem levado tal dicotomia às últimas consequências. Talvez seja a ferida aberta de duas Copas não vencidas com um time posicional, ou o fracasso recente de treinadores que adotavam tal estilo no Flamengo, dono de um elenco fortíssimo para os padrões nacionais. O fato é que cresceu uma respeitável corrente de pensamento que associa o jogo de aproximação a uma herança cultural brasileira, a traços de futebol de rua. São colocações respeitáveis, porque o futebol não pode, nem deve, ser dissociado das questões humanas. O ponto é que tal linha de raciocínio levou à crença de que o jogo de mobilidade e aproximações seria, por definição, um jeito de jogar natural para o jogador brasileiro, de tão entranhado em sua cultura de irreverência e em sua vivência desde o jogo de rua. De tal forma que a simples chegada à seleção de um treinador como Diniz faria florescer, de imediato, um futebol encantador, com uma fluidez típica de quem pratica algo que vem de berço.
Ocorre que, da mesma forma que não pode ser dissociado de heranças culturais, o futebol não pode ser separado de uma sociedade globalizada, de um jogo global a ponto de tornar cidadãos do mundo os principais atletas do planeta. Todos crescem e se desenvolvem nas principais ligas da Europa, onde chegam assim que completam seus 18 anos.
Então, vivemos argumentando que a formação de jogadores no Brasil se “europeizou”; que o sucesso dos trabalhos de Guardiola, por exemplo, gerou uma onda de tentativas de imitação do jogo posicional desde a base; que o futebol brasileiro está tomado por modelos de jogo cheios de traços posicionais; que o futebol de rua tem desaparecido nas cidades brasileiras... Não se trata de discutir, aqui, se os caminhos adotados pela base brasileira são os mais corretos, ou se os treinadores brasileiros seguem as mais recomendáveis influências. A questão, e não há aqui qualquer tentativa de emitir um decreto, é que parece haver motivos para debater o conceito do que de fato seja “um jogo natural” para o atleta brasileiro. Muitos deles está há quase uma década atuando, seja na base, seja na Europa, sob estímulos diferentes do que pede o treinador da seleção. E diferentes do que ocupa o imaginário de um “jogo natural”.
Os relatos de Danilo, Bruno Guimarães e outros jogadores da seleção após as primeiras partidas com Diniz reforçam tal impressão, o que está longe de significar que a seleção brasileira deve buscar de novo um técnico posicional. Tirar tal conclusão seria incorrer no mesmo erro de quem aponta o jogo de aproximações como a solução infalível para o Brasil. O fundamental é entender que nenhum modelo dispensa os processos. Qualquer que seja a ideia a implantar, ela irá demandar tempo, compreensão, interações entre os jogadores. É a tal criação de laços e relações humanas a que o próprio Diniz sempre se refere como base para o funcionamento de uma equipe.
Em Cuiabá, era comum ver o Brasil juntando jogadores de um lado e, como que por instinto, Casemiro ou Bruno Guimarães mostrarem a intenção de levarem o jogo ao lado oposto. Era comum ver jogadores próximos, mas a opção ser por um passe longo. Era frequente ver atletas se aproximando, mas quase sempre buscando a bola no pé, sem um movimento de infiltração e ultrapassagem. Diniz não precisa mudar de estilo, deve perseguir o jogo em que acredita. Ele chegou à seleção por causa desta forma de jogar e das atuações encantadoras que sua visão de futebol proporcionou em seus trabalhos recentes. O importante é entendermos que há um processo. Não há milagre, tampouco garantias em futebol. Os belos momentos que a Argentina atual produz, com seu jogo de aproximações tão identificado com o futebol sul-americano, não eram tão frequentes há cinco anos, quando Lionel Scaloni iniciou seu trabalho. Houve um processo.
O Brasil jogou mal contra a Venezuela, mesmo quando consideramos o início de um trabalho. O erro é achar que não ganhamos uma Copa por causa do jogo posicional. Seria outro erro achar, agora, que Diniz deve abandonar suas convicções."
Voltando ao "subtema": como practicar o "jeito brasileiro de jogar futebol" se existem cada vez menos treinadores com esse perfil?
Como fazer sobreviver uma escola futebolística que surgiu e se desenvolveu em um ambiente de espontaneidade e improvisação, se esse ambiente não existe mais?
O Século XX se foi e com ele os campos de pelada, a Pátria de Chuteiras, as bolas de meia, a Lei do Passe e todo o ambiente no qual o "jeito brasileiro de jogar" se desenvolveu.
Para piorar, ao longo desses 28 anos (Lei Bosman até hoje) a Confederação Brasileira de Futebol jamais deu ao tema da formação do treinador brasileiro a atenção que merece.
Mas o que o Tite e o Flamengo têm a ver com isso?
Muita coisa.
Desde a saída de Jorge Jesus e a contratação de Domènec Torrent, a Diretoria do Flamengo vem tentando emplacar treinadores europeus, ou de filosofia europeia, para gerir um elenco com a cultura brasileira, e flamenga, de formar um time a partir do encaixe e da harmonização das maiores individualidades, especialidade tradicional da escola brasileira de treinadores.
Eu, Gustavo, não tenho absolutamente nada contra a escola brasileira. Inclusive a prefiro, assim como os times que ela já montou, tanto que costumo lembrar que o futebol brasileiro conquistou 5 títulos mundiais dessa forma, com as diferenças que se possa apontar entre os treinadores e suas preferências, porém, no fundo, sempre adaptando o coletivo a essas individualidades.
Minha dificuldade, falando do Flamengo dos dois mandatos de Rodolfo Landim, é entender o critério de escolha de treinadores, se o vice-presidente de futebol monta elencos na base da escolha por individualidades (não abordarei o critério parceria com agente FIFA) e gere o setor a partir dessa cultura (tipicamente brasileira) de administrar futebol.
O critério para promover a "adaptação" desses treinadores gringos ao Flamengo vem sendo a contratação simultânea de comissões técnicas extensas, com grandes profissionais (exceção a Domènec, erro já confessado por Braz). Contudo, parece evidente que esse critério se mostrou insuficiente.
Um dos fatores que explica o sucesso de Jorge Jesus está no seu interesse em conhecer o futebol brasileiro, levando à maneira brilhante com que impôs sua autoridade e incorporou valiosos aspectos da cultura europeia, mas sempre dialogando e respeitando a cultura local e flamenga de ser. Nesse ponto, Jesus repetiu Cláudio Coutinho, um fã da Seleção Holandesa de 1974.
Nenhum treinador que o sucedeu (Jesus) conseguiu unir tão bem esses dois mundos.
É nesse ponto que entra a figura de Adenor Leonardo Bacchi, o Tite.
Vejam bem, o texto do Mansur, transcrito logo acima, toma como premissa a migração de Tite para o jogo de posição, o que experts da tática dizem que ocoreu a partir de 2017, como explica o quadro abaixo (de autoria desconhecida por mim), já publicado neste post aqui no Buteco:
Qual Tite? Essa é a pergunta que ronda todo flamenguista que conhece os problemas recentes do time. O ideal seria uma direção preparada para fazer os questionamentos corretos e saber se Tite irá se adaptar ao que demanda as características de Arrasca, Gabi, Gerson, etc.
Se Tite quiser reproduzir um 325 posicional no Flamengo, terá os mesmos problemas dos últimos técnicos. Se Tite estiver disposto a retornar ao sistema funcional, que domina na palma das suas mãos, o Flamengo já começa 2024 como favorito a todos os títulos que disputar.
Honestamente, não tenho a convicção do Húngaro de que o elenco do Flamengo é incompatível (expressão minha, não dele) com o JdP, muito embora reconheça que o jogo funcional é um estilo muito mais favorável aos nossos jogadores, seja pela maior compatibilidade de características, como também pela maior aceitação (elemento cultural/psicológico/emocional).
O jogo posicional do Brasil de Tite jamais me encantou. E na útima Copa, aquela velha pressão cultural brasileira de encaixar as maiores individualidades no time gerou um 4-2-4 bizarro que, na minha opinião, prejudicou especialmente os jogadores que disputavam sua primeira Copa e tinham menos histórico na Seleção (Bruno Guimarães, Lucas Paquetá, Vinicius Junior, Raphinha, Antony, Martinelli, Pedro e Richarlisson).
Tite é conhecido por ser um excepcional gestor de elencos, mas no Flamengo sofrerá a mesma pressão cultural para escalar as maiores individualidades dentro de um elenco vocacionado ao jogo funcional e notoriamente avesso ao jogo de posição. Esse fator cultural, percebam, sempre dificultou o sistema de rodagem de elenco num contexto de disputa de três grandes competições simultâneas (BR, CLA e CdB). Agora imaginem em uma reta final de Brasileiro, sem a pressão das Copas...
Enfim, qual rumo Tite tomará no Flamengo? O do Corinthians de 2015, definido pelo Húngaro (no mesmo fio) como "um sistema funcional com Jadson partindo da direita e atravessando o campo, reunindo-se com Elias e Renato no setor da bola, explorando tabelas, criatividade, progredindo a partir do "chegar e não estar" com muita gente partindo de trás", ou o posicional da Seleção Brasileira de 2017/2022?
Qual rumo vocês preferem?
Antes de encerrar este post, gostaria de compartilhar outras fontes de análise dos possíveis rumos que pode tomar o nosso novo treinador. Primeiramente, o bom perfil Falso Nove (@FalsoNove2), de "pegada posicional" (quatro vídeos), e o não menos ótimo perfil Footure (@FootureFC), de "pegada mais neutra" (um vídeo).
A palavra está com vocês.
Bom FDS e SRN a tod@s.