Começa em Cuiabá.
Em continuidade à sua excursão
pelo Centro-Norte do país, o Flamengo desembarca na capital matogrossense para
um aguardado amistoso contra o Mixto local, o penúltimo jogo antes da estreia
no Brasileiro de 1980.
Nas negociações que precedem o
acerto do jogo, os organizadores “recomendam enfaticamente” que o rubro-negro
coloque em campo o jovem atacante Gerson Lopes, joia da terra que o Flamengo trouxe
do Operário-MT, e que certamente será um dos chamarizes do evento. Alertado pela
Diretoria, o treinador Cláudio Coutinho escala o garoto, não sem antes avisar o
titular Cláudio Adão do arranjo.
O problema é que Gerson Lopes
arrebenta.
O Flamengo arrasa os nativos com
impiedosos 7-1. Junto aos quase protocolares quatro gols marcados por Zico, o
destaque é o garoto do Mato Grosso, que anota os outros três tentos rubro-negros.
Mais, traz ao Flamengo uma movimentação e uma leveza que enchem os olhos de
Coutinho, sempre adepto de um futebol móvel e dinâmico. Em contraponto ao
posicionamento estático e convencional de Cláudio Adão, o jovem Gerson Lopes faz
o ataque flamengo flutuar em campo. A exibição do rapaz é tão vistosa que
Coutinho, ao contrário do planejado, somente o tira de campo faltando cinco
minutos para o final, nitidamente para receber os aplausos de um público
embevecido.
Terminado o passeio no Mato
Grosso, um irritado Cláudio Adão declara-se “desrespeitado”, por ter atuado tão
pouco tempo. “Era melhor nem ter ido”, irrita-se. É bem verdade que, a despeito
de sua técnica diferenciada e de seu indiscutível faro goleador, Adão está
longe de ser o atacante dos sonhos de Coutinho, com quem vive relação de altos
e baixos, especialmente porque o treinador gostaria de contar com um
centroavante mais “moderno” e disciplinado taticamente, algo que julga Adão ser
incapaz de entregar.
Para o amistoso seguinte, contra
o Atlético/MG no Mineirão, Coutinho pensa em retornar com Cláudio Adão. Mas, no
desembarque no Rio, Adão se queixa de “dores no tornozelo”, enquanto segue reclamando
do que ocorreu em Cuiabá. Irritado, Coutinho o corta da viagem a Minas,
confirmando que dará nova chance a Gerson Lopes: “ainda é jovem, mas vamos ver
como se comporta em um duelo mais difícil”.
Mas em Belo Horizonte a realidade
se impõe. Gerson Lopes não vê a bola no violento amistoso em que o time local,
buscando devolver os humilhantes 5-1 do ano anterior, “abre a caixa de
ferramentas” e joga partida como se de campeonato fosse. Mas Coutinho encontra
outra solução interessante, após sair em desvantagem de dois gols, improvisando
Tita como “falso-nove”. A gambiarra funciona, e o rubro-negro por pouco não
empata a partida. Terminado o duelo, Coutinho anuncia que Tita é o novo titular
da Camisa 9 do Flamengo.
O rompimento com Cláudio Adão se
torna, portanto, definitivo.
A questão é que, sem Adão, o
Flamengo dispõe apenas de Gerson Lopes para a posição de centroavante no
elenco. O clube acabou de se livrar de Beijoca, que caiu em desgraça após esmurrar
um palmeirense na fatídica derrota da eliminação do Brasileiro de 1979,
devolvendo-o ao Bahia. Ademais, Luizinho segue emprestado ao Al-Nassr da Arábia
Saudita e só voltará no segundo semestre (ostentando novo apelido, Luizinho “das
Arábias”). Assim, torna-se evidente a necessidade de trazer algum nome mais
forte para a posição.
E, de quebra, dar uma merecida
resposta a um rival.
A recém-eleita Diretoria do Vasco
já assume tomando uma atitude corajosa. Vende seu melhor jogador, o atacante
Roberto Dinamite, ao Barcelona-ESP, por US$ 900 mil, quantia tida como
irrecusável. O clube pensa em utilizar o dinheiro para renovar seu elenco, buscando
formar uma nova base capaz de tentar interromper a supremacia do Flamengo no
futebol carioca, cravada com um tricampeonato em que o rubro-negro não perde
nenhum dos sete turnos em disputa. Traz, como primeiro reforço, o meia Carlos
Alberto Pintinho, destaque do Fluminense de Horta. E conversa ostensivamente
com Tita, sabendo da sua conhecida insatisfação em atuar fora de sua posição. O
Vasco chega a apresentar uma proposta ao jogador, o que irrita a Diretoria do
Flamengo, que promete retaliar de forma “enérgica, agressiva e dolorosa”. Poucos
realmente levam a arenga a sério. “Palavras ao vento, jogando para a torcida”,
diz-se.
Mas não vai demorar para o discurso
se transformar numa bomba.
Roberto Dinamite é recebido com festa
em Barcelona. Contratado para substituir o austríaco Krankl, que entrou em rota
de colisão com o treinador Joaquim Rifé, Dinamite chega à Catalunha credenciado
por seu desempenho na Copa de 1978. E o início é animador. Em sua estreia, o
brasileiro marca os dois gols na vitória sobre o Almería por 2-0, no Camp Nou.
Mas, na partida seguinte, contra o Zaragoza (outro triunfo por 2-0), Roberto
perde um pênalti. A partir daí, suas atuações começam a se tornar opacas,
tragadas pela péssima fase do clube culé. Roberto ainda marca outro gol, de
pênalti, nas Finais da Supercopa da Europa, mas não evita a perda do título
para o Nottingham Forest-ING. A inapelável eliminação na Copa do Rei (levando
3-0 do Real Sociedad) e uma sequência de sete jogos que tira dos “blaugranas” a
chance do título espanhol acendem pesada crise, cuja gota d’água é a eliminação
da Copa dos Campeões da Europa (hoje Champions League), após duas derrotas para
o Valencia de Kempes. Joaquim Rifé é demitido, assumindo o argentino Helenio
Herrera, que acena com vasta reformulação no plantel. A começar por Roberto
Dinamite, que julga “pesado e lento” para o futebol espanhol.
A aparentemente estranha decisão
de abrir mão de um jogador trazido a peso de ouro apenas dois meses antes está
imersa em um contexto mais amplo, onde um clube politicamente em chamas vive
verdadeira guerra de facções. A ideia de contratar Roberto (que está ocupando
uma das únicas duas vagas disponíveis para estrangeiros) encontrou fortíssima
resistência em várias alas do clube, mas a Diretoria, assim mesmo, resolveu bancar.
No entanto, o brasileiro, em cujos ombros foi colocada a obrigação de reerguer
um time limitado e desunido (“virá ganhando muito bem para isso”), evidentemente
não conseguiu se impor. Com os desastrosos resultados e a entrada de um
treinador alinhado com um dos grupos políticos que mais se opuseram à
contratação, o fim da efêmera passagem de Roberto Dinamite pelo Barcelona está
decretado.
Vai começar a confusão.
Atento ao que acontece na
Espanha, o Flamengo entra em contato com Roberto, oferecendo-lhe a possibilidade
de voltar ao Brasil. O atacante se entusiasma com a iniciativa e autoriza o rubro-negro
a seguir com as tratativas. A Diretoria flamenga, assim, recebe do Barcelona a
informação de que haverá negócio se os espanhóis receberem o mesmo valor que desembolsaram
na compra, incluindo aí impostos, taxas e despesas diversas. O Flamengo acha
salgado e sabe que não tem como fechar nessas condições, mas vai insistir no
negócio assim mesmo.
A notícia do interesse flamengo
em Roberto é recebida inicialmente com desdém. “Estão visivelmente criando uma
notícia para dar o troco daquele negócio do Tita”, o senso comum aponta. Mas os
descrentes, especialmente os vascaínos, veem a galhofa se transformar em apreensão
quando o Flamengo faz embarcar o Presidente e o Vice de Finanças a Barcelona,
para negociar diretamente com os catalães a transferência.
Na Espanha, a negociação parece
se arrastar. O Flamengo quer fechar pela metade do preço pago, enquanto os catalães
admitem conceder um abatimento de US$ 200 mil. O rubro-negro faz contas,
imagina utilizar créditos a receber decorrentes de cotas de amistosos já
fechados na Europa, além da venda de Cláudio Adão e de mais um ou dois
jogadores, mas ainda assim a transação parece arriscada demais. Mas, contando
com a vontade de Roberto e do Barcelona, o rubro-negro vai ganhando tempo. E
capitalizando o assunto nos jornais, que deitam e rolam com a perspectiva da
montagem de um supertime pelo Flamengo.
Enquanto o negócio vai se
desenvolvendo, o Flamengo se previne de um eventual fiasco e acerta uma
contratação bem mais simples. Vai ao Monterrey-MEX e consegue, pelo valor de US$
40 mil, o empréstimo de Nunes por seis meses, com passe fixado em US$ 380 mil.
Nunes, velho conhecido do Flamengo, por onde jogou nas divisões de base, vem de
trajetórias bem sucedidas por Santa Cruz e Fluminense, chegando à Seleção
Brasileira e por pouco não tendo disputado o Mundial de 1978. A despeito do
temperamento reconhecidamente difícil, Nunes é um centroavante de alto nível,
com plenas condições de pleitear a vaga de titular do Flamengo.
Com a confirmação de Nunes, o
Flamengo endurece a negociação com o Barcelona e começa a sinalizar que irá
desistir do negócio. Mas, quando a delegação rubro-negra já prepara o retorno
ao Rio, os catalães, numa reviravolta surpreendente, aceitam reduzir o valor do
passe de Roberto para US$ 600 mil, aproximando-se bastante da proposta do Flamengo.
O rubro-negro aceita retomar as negociações, e a rodada final é marcada para o
Rio de Janeiro, já para finalizar os procedimentos da venda. O rubro-negro,
inclusive, envia a Roberto a minuta do contrato que o fará ser um dos jogadores
mais bem pagos do país.
Enquanto Nunes chega e,
discretamente, começa seus treinamentos, o Flamengo busca resolver a situação
de Cláudio Adão. Tenta vendê-lo ao futebol grego, mas o jogador não aceita. O
jeito é emprestá-lo ao Botafogo por três meses, enquanto busca uma oportunidade
mais concreta de fazer um negócio mais vantajoso.
A iminência da compra de Roberto
faz, enfim, acender a luz vermelha em São Januário. A Diretoria vascaína já
vive momento de turbulência, pois o time (agora reforçado por Jorge Mendonça,
que vem ocupar a vaga que “seria de Tita”) não engrena e acumula resultados
ruins, tornando difícil a manutenção de Orlando Fantoni no cargo de treinador. Irritada
com a perspectiva da perda de seu maior ídolo para o rival, a torcida cruzmaltina
pressiona fortemente os dirigentes que, no entanto, alegam dispor de um trunfo
que será usado na hora certa.
E é quando o Vice-Presidente Financeiro
do Barcelona desembarca no Brasil que o Vasco assume a ofensiva. Tudo gira em
torno do fato de que os catalães ainda devem ao cruzmaltino a quantia de US$
775 mil, referentes à venda de Roberto aos blaugranas. Sem a quitação desse
valor, o Vasco se recusa a dar o termo de liberação definitiva do passe do
jogador. Sabendo que, antes de fechar a venda ao Flamengo, o Barcelona precisa se
reunir com o Vasco para acertar o distrato do negócio entre ambos, a Diretoria
vascaína já sabe como agir.
A proposta dos vascaínos é
simples. O Vasco abre mão da dívida e o Barcelona devolve o atleta. É um arranjo
que atrai os espanhóis, pois minimiza o prejuízo (o Flamengo pagará bem menos)
e sua execução é mais simples e barata, pois envolve menos impostos e taxas.
Assim, após longa reunião que atravessa a madrugada, o representante catalão é
convencido. Resta comunicar ao Flamengo. E isso é feito de uma forma nada
sutil.
No dia “D” anunciado para o
fechamento da venda de Roberto ao Flamengo, estoura outra bomba. O Barcelona
agora exige do Flamengo uma garantia bancária no valor de U$$ 400 mil para
fechar o negócio, num prazo de 24 horas. Sabendo ser impossível atender a
exigência culé, o Presidente do Flamengo rapidamente entende o que aconteceu.
Recusa-se a sequer tentar buscar essa garantia, alega ter sido “traído” pelo
Barcelona (“acertamos outra coisa com o Presidente deles”), ainda faz barulho
por alguns dias, mas a rigor não insiste mais.
O caminho fica aberto para o
Vasco, mas o negócio ainda demora alguns dias para ser fechado, por um motivo
inusitado. É que Roberto, ainda na Espanha, não quer conversar com o Vasco,
pois já havia dado a palavra ao Flamengo, clube que o procurou primeiro.
Somente após muita conversa e persuasão, o atacante enfim aceita fechar o
contrato com os vascaínos, nos mesmos termos (vultosos termos, aliás) que
assinaria com o Flamengo.
Assim, na tarde de 30 de março de
1980, enquanto Cláudio Adão faz sua primeira partida pelo Botafogo, em atuação
discreta no empate em 0-0 contra o Joinville em Marechal Hermes, Roberto Dinamite
é reapresentado com grande festa em São Januário, antes do Vasco golear o
Gama-DF por 5-1. E Nunes faz boa estreia pelo Flamengo, anotando um gol
e uma assistência no empate em 2-2 com a Ponte Preta, no Maracanã.
Ainda não se sabe, mas Coutinho
acaba de encontrar a peça que faltava ao ataque.
* * *
Roberto estreou de forma
espetacular, marcando os cinco gols da vitória do Vasco por 5-2 contra o
Corinthians no Maracanã, já pela Segunda Fase do Brasileiro. Permaneceu no
cruzmaltino até 1992, saindo apenas por curtos períodos de empréstimo para
Portuguesa (1989) e Campo Grande (1991). Durante o tempo que defendeu o Vasco,
sempre se mostrou um adversário respeitado, qualificado, competitivo e muito
difícil de derrotar, sem jamais perder a lealdade e o espírito esportivo que
fazia com que os embates entre Flamengo e Vasco fossem duelos entre
adversários, nunca inimigos.
Que Roberto descanse em paz.