Nenhum jogo de futebol estava sendo disputado naquela Corte de Justiça, porém o resultado final do julgamento do processo C-415/93, envolvendo o atleta Jean-Marc Bosman e o Royal Clube Liégois S/A viria a mudar o destino do futebol no mundo inteiro. Basicamente, a ECJ decidiu que o artigo 48 do Tratado de Roma, que estabeleceu a Comunidade Econômica Europeia - EEC:
a) proíbe a aplicação das regras que impediam atletas profissionais de futebol, uma vez expirados os seus contratos com um clube, assinarem com outro clube sem que o anterior fosse ressarcido com a taxa de transferência, treinamento ou desenvolvimento, ou seja, o "passe",
b) proíbe a aplicação de regras pelas quais, em jogos de competições oficiais, os clubes só poderiam levar a campo número limitado de atletas profissionais estrangeiros ou de nacionalidade diversa da correspondente a do país de cada clube.
Essa verdadeira bomba atômica jurídica, sem a menor sombra de dúvida, protegeu relevantes direitos humanos dos atletas, que eram coagidos pelos clubes a renovar seus contratos em condições desfavoráveis, sob pena de não poderem trabalhar sem que o novo clube contratante ressarcisse o dono do passe mediante o pagamento da taxa de transferência. Era praticamente uma modalidade contemporânea de escravidão, se é que já não caracterizava, convenhamos.
Ocorre que os fatos da vida possuem vários ângulos, como todos sabemos. Vejam bem, desconheço qualquer informação indicando que a UEFA tenha tido alguma forma de ingerência na decisão da ECJ, porém é claro como a luz do sol que, como efeito prático, para além da alforria dos atletas, os clubes europeus mais ricos, afiliados à entidade europeia, acabaram ainda mais fortalecidos, eis que, a partir de então, sem o inconveniente do passe, da noite para o dia receberam um cenário jurídico muito mais favorável para atrair os melhores talentos.
Contudo, a coisa não para por aí. Como se já não fosse suficiente, de quebra a decisão da ECJ ainda permitiria a clubes dos estados membros da União Europeia inscrever número ilimitado de estrangeiros, desde que naturais dos estados membros daquela comunidade de países e respeitado um mínimo de atletas do país de cada clube.
Mais ainda: a decisão também se aplicaria aos atletas amadores das categorias de base. Então, os clubes mais ricos, ainda por cima, passaram a poder captar atletas de tenra idade e levá-los para grandes centros, especialmente a Europa, como mostra o exemplo do Barcelona e do gênio argentino Lionel Messi, captado quando era uma criança de 13 anos nas canteiras do Newell's Old Boys, de Rosário.
Uniu-se o profundo conhecimento acadêmico ao talento que só existia em abundância em outros continentes, especialmente América do Sul e África. Gerações históricas de seleções europeias foram criadas a partir de então, primeiro Espanha, depois Alemanha e Bélgica, e nos dias atuais, Portugal, Inglaterra e França.
O futebol nunca mais foi o mesmo.
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Dezessete dias antes da decisão definitiva da ECJ no caso C-415/93, um histórico Ajax dirigido por Louis Van Gaal e contando com os irmãos Frank e Ronald de Boer, Edgar Davids, Jari Litmanen, Finidi George, Marc Overmars e Patrick Kluivert, a duras penas vencia o Grêmio numa apertada disputa de pênaltis (4x3), naquela que foi a última final de um Mundial de Clubes antes da vigência da nova ordem do futebol, "pós Lei Bosman".
A Copa Intercontinental, muito embora ainda viesse a ser palco de finais disputadas por pesadas camisas, como Juventus x River Plate (1996), Borussia Dortmund x Cruzeiro (1997), Real Madrid x Vasco da Gama (1998), Manchester United x Palmeiras (1999), Boca Juniors x Real Madrid (2000), Bayern de Munique x Boca Juniors (2001) e Boca Juniors x Milan (2003), a partir de então até a sua última edição só teve vencedor sul-americano em duas temporadas (2000 e 2003), sendo que nas sete outras o campeão foi europeu.
Em ambas as ocasiões, o único clube que conseguiu "furar" a barreira da nova ordem econômica do futebol mundial foi o histórico e heroico Boca Juniors de Carlos Bianchi, treinador que inclusive já havia protagonizado a façanha de levar o Vélez Sarsfield ao título da Intercontinental em 1994. Bianchi conduziu os Xeneizes a três títulos da Libertadores em quatro anos (2000, 2001 e 2003).
No que pareceu ser um capricho dos "Deuses do Futebol", a última edição da Copa Intercontinental, em 2004, teve uma final alternativa, com o Porto vencendo o noviço Once Caldas da Colômbia nos pênaltis. Era o derradeiro ato da histórica competição.
A partir de 2005, forte na experiência da "edição-piloto" do Mundial de Clubes do Brasil em 2000, conquistado pelo Corinthians, a FIFA passou a promover anualmente uma edição do torneio, agora contando com a participação das confederações dos demais continentes - América do Norte, África, Ásia e Oceania.
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Muito embora três diferentes clubes brasileiros tenham sido os campeões das três primeiras edições do Mundial de Clubes da FIFA (2000, 2005 e 2006), o que se viu no novo formato pós Copa Intercontinental foi a ampla predominância dos grandes clubes europeus. A partir de 2007, apenas eles conquistaram o torneio, à exceção, em 2012, do Corinthians, que viria a conquistar o seu segundo título, dessa vez passando antes pela prévia conquista da Libertadores...
Se a América do Sul perdeu força, os novos participantes não deram nem pro começo, comprovando que a Copa Intercontinental sempre teve sua razão de ser. A Ásia chegou a duas finais, enquanto a África e a América do Norte a apenas uma cada. Asiáticos e africanos foram derrotados por 2 ou mais gols de diferença, enquanto apenas o mexicano Tigres da Universidad Autónoma de Nuevo León, da forte Liga MX, perdeu pela contagem mínima.
A Lei Bosman exibia ao mundo os seus efeitos.
Nessa nova ordem do futebol internacional, escancarada nas até aqui 18 edições da competição, é possível constatar uma concentração de títulos jamais vista em favor dos europeus, a qual também passou a ser reproduzida em diversos níveis locais, em cada continente do planeta, em cada confederação e país federado, como que em camadas.
No Mundial de Clubes, a Europa tem 14 títulos, contra 4 da América do Sul e nenhum das demais confederações, sendo que todos os títulos não europeus, repita-se, são brasileiros - Corinthians (2), São Paulo e Internacional.
Entre os 14 títulos europeus, a Espanha tem 7, sendo 4 do Real Madrid e 3 do Barcelona; a Alemanha 2, ambos do Bayern de Munique, e a Inglaterra também 2, um do Chelsea e outro do Liverpool. Repetindo o padrão, na África, desde 2017, a Champions League vem sendo conquistada por apenas 3 clubes: Al-Ahly (Egito), Wydad Casablanca (Marrocos) e Espérance de Tunes (Tunísia).
Aliás, um parêntesis: olho vivo nos dois primeiros, que se farão presentes no Mundial de Clubes/2022, a ser disputado em fevereiro/2023. Já o último disputou a edição de 2019, como jamais nos deixará esquecer a sua barulhenta torcida. As torcidas do norte da África são poderosas e o Wyadad jogará em casa na capital. O Raja Casablanca e o Atlético Mineiro não me deixam mentir.
Parêntesis fechado, voltemos à concentração de títulos e às camadas.
Na América do Sul, apenas a LDU de Quito (2008) e o Atlético Nacional de Medellín (2016) conseguiram furar o predomínio brasileiro e argentino na Copa Libertadores. E entre brasileiros e argentinos, a nossa predominância vai aos poucos se estabelecendo, não só pelo número de títulos, mas também pela melhor performance no Mundial de Clubes da FIFA contra os europeus, comparando-a com a dos hermanos.
Enquanto os brasileiros normalmente perdem por um gol de diferença para os europeus, os argentinos vêm perdendo por dois ou três. As exceções, de cada lado, foram a derrota do Estudiantes La Plata para o Barcelona na prorrogação em 2009 (2x1) e a goleada de 4x0 sofrida pelo Santos para o Barcelona em 2011.
E para finalizar, não custa lembrar que, entre os brasileiros, há 4 anos Flamengo e Palmeiras se revezam no domínio do continente, sem espaço para os argentinos ou outros brasileiros.
É a nova ordem do futebol mundial.
Esse é o cenário que o Clube de Regatas do Flamengo enfrentará no Mundial de Clubes de 2022, a ser disputado em fevereiro em Marrocos. Não por mera coincidência, o favorito para o título é o clube europeu que mais vezes conquistou o Mundial de Clubes (7 títulos e 2 vices), inclusive no atual formato (4 títulos), o Real Madrid, que talvez possa ser chamado de o maior clube do mundo.
E aí? Estão animados?
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"Para mim, não se trata do Bayern de Munique contra o Liverpool, mas do Bayern contra o Boca Juniors. O Liverpool tem 180 milhões de fãs em todo mundo. O Flamengo tem 40 milhões de torcedores e 39 milhões deles estão no Brasil. O Liverpool tem 5 milhões de fãs na Inglaterra e 175 milhões de fãs em todo o mundo. Quero que os clubes de fora da Europa tenham apelo global no futuro. Essa é a minha visão: ter 50 clubes e 50 seleções que podem se tornar campeões mundiais." (Gianni Infantino, presidente da FIFA, em entrevista concedida no último 22 de outubro.)
A tensão entre FIFA e UEFA é histórica, tanto no âmbito das competições entre seleções, quanto nas disputadas entre clubes. Enquanto a entidade mundial deseja conectar o mundo em torno do futebol, claro que sob sua liderança (nem sempre positiva), a UEFA naturalmente se preocupa apenas com seus afiliados, pregando a bandeira eurocêntrica no futebol sem qualquer constrangimento.
Nessa briga de cachorro grande, que no fundo traz uma ferrenha disputa por poder e protagonismo, não há inocentes e por isso mesmo é preciso atenção para as entrelinhas. Mesmo dentro da UEFA há países e clubes de tradição no futebol que perderam força, como no caso do futebol italiano.
Nos dias de hoje, a bola está com os ingleses e com a Premier League, que ameaçam com uma hegemonia na Champions, cenário que, evidentemente, não agrada a todo mundo. Não é à toa que o presidente do Real Madrid vem tentando criar uma Superliga de clubes, afirmando que o futebol atual "está doente".
Não se pode descartar que até mesmo a definição da data do próximo Mundial de Clubes esteja, em alguma dose, sendo influenciada por esse cabo de guerra.
Atento, o Flamengo só observa...
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Jogador apenas mediano, que teve como ápice na carreira as cinco temporadas iniciais no Standard de Liége, da Bélgica, Jean-Marc Bosman passou a ser rejeitado por clubes mais atingidos pela decisão da ECJ, quais sejam, justamente aqueles que seriam seus potenciais empregadores, os quais não habitam os maiores centros de poder do futebol mundial.
"Quando tentei voltar a jogar, ninguém me queria. Meu nome era veneno", declarou em 2020 ao jornal argentino La Nación. O principal protagonista da decisão judicial que, como visto, teve por efeitos liberar atletas do mundo inteiro da alforria do passe, porém estabelecendo uma nova ordem no futebol mundial, acabou se convertendo no maior boi de piranha da História desse esporte.
Odiado pelos pequenos e sem ser reconhecido pelos abastados que se beneficiaram da nova ordem, seu triste fim foi o alcoolismo e o limbo.
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Com a reapresentação do elenco no próximo dia 26, marcando também o início de trabalho dos auxiliares da nova comissão técnica, comandada por Vítor Pereira, chegou o momento de voltarmos ao presente.
Foi uma enorme satisfação viajar com vocês pela História do Mundial de Clubes.
Muito obrigado pela companhia.
Bom dia e SRN a tod@s.
1ª Parte: O Mundial de Clubes - 1ª Parte - O Início da Copa Intercontinental
3ª Parte: O Mundial de Clubes - 3ª Parte - O Renascimento e o Apogeu da Copa Intercontinental