Até o primeiro jogo da final, todavia, pode-se dizer que o único ponto realmente fora da curva, em nível de Libertadores, além da qualidade fenomenal do time do Flamengo, tinha sido o inacabado jogo de Goiânia e a reação histriônica do Atlético/MG (Dirigentes, comissão técnica e jogadores). No primeiro jogo, disputado no Maracanã, o Flamengo abriu 2x0, mas o forte Cobreloa mostrou por que havia chegado à final, apresentando-se aguerrido e obstinado, qualidades que o levaram a marcar o importante gol que impediu o Mais Querido de ir para o Chile com dois gols de vantagem e praticamente sacramentar a conquista do título.
Era para ter sido um jogo de volta "normal", mas não foi o que aconteceu. Pelo contrário, afirmo com convicção que, em nível de violência, o que diferencia a Libertadores/1981 em relação às outras edições é o segundo jogo (volta) da final. Absolutamente nada se compara ao que o Flamengo enfrentou no Chile, contra o Cobreloa, na chamada "Batalha de Santiago", a segunda da série de três partidas que decidiram a Copa Libertadores de 1981, e os três dias que antecederam a sua derradeira sequência, a finalíssima disputada no Estádio Centenário, em Montevidéu.
O sangrento (literalmente) duelo com o Cobreloa no Estádio Nacional do Chile inclusive tem, como ponto em comum com o primeiro formato da Intercontinental, o suplício pelo qual passaram boa parte dos clubes europeus que, nos anos de formato ida e volta da Intercontinental, vieram jogar na América do Sul contra Racing, Estudiantes e Independiente, casos de Celtic, Manchester United e Ajax.
Sem mais delongas, nosso amigo Gardner, piloto oficial da Máquina do Tempo do Buteco, avisa que é hora de embarcar. A nossa primeira parada é a noite de sexta-feira, 20 de novembro de 1981, em Santiago do Chile. Mas desde logo ressalto que por pouco não foi Calama, no então acanhado estádio Municipal "Zorros del Desierto" (modernizado em 2013), também conhecido como "El Infierno" (imaginem só) e situado a 2.600 msnm.
É que o então presidente do Cobreloa, o médico Sérgio Stoppel García, abdicou da altitude em troca de jogar a segunda partida no Estádio Nacional do Chile, em Santiago, mirando a renda da partida. Duramente pressionado pela decisão unilateral, Stoppel até que tentou voltar atrás, mas sem sucesso. A CONMEBOL manteve a troca e a segunda partida em Santiago, alegando inclusive, e com razão, que o Zorros del Desierto não tinha estrutura suficiente para receber uma partida do porte de uma final da Libertadores.
Entretanto, sem a pretensão de comparar qual cenário seria pior (Calama ou Santiago), posso afirmar, com toda a convicção, que a escolha por Santiago e pelo Estádio Nacional não trouxe moleza para o Flamengo. Muito pelo contrário, agregou elementos negativos que não teriam como existir em Calama.
Em 11 de setembro de 1973, o governo do presidente Salvador Allende (que morreu no mesmo dia) foi deposto por um golpe de estado liderado pelo general Augusto Pinochet, o qual tomou o poder e o exerceu até o ano de 1990, sendo fato notório que, especialmente, mas não exclusivamente, durante o período inicial do governo do ditador (11/9 a 9/11), o Estádio Nacional de Santiago foi palco de um campo de concentração, tortura e execução de pessoas acusadas de serem insurgentes contra o regime.
Os registros sobre o período e a "serventia" dada ao Estádio Nacional são fartos. Para quem deseja se aprofundar no assunto, indico, para começar, fontes oficiais do Governo Chileno. Na página é possível baixar ao menos quatro livros, no formato pdf, um deles contendo inclusive listagem com nomes de alguns dos executados e desaparecidos após serem detidos no local.
Outro bom registro do cenário é trazido pelas palavras do jornalista Eduardo Monsanto, em seu livro "1981, O Ano Rubro-Negro" (Panda Books, 2011; São Paulo):
"O Chile atravessava os dias sombrios da ditadura de Augusto Pinochet. O golpe militar que derrubou o governo socialista de Salvador Allende em 1973 chegou a transformar o próprio Estádio Nacional de Santiago em um centro de interrogatórios e tortura nos primeiros meses daquele regime truculento. Mais de 12 mil prisioneiros políticos foram confinados o estádio, dos quais cerca de mil eram estrangeiros. Cinco brasileiros que estavam no Chile desapareceram naquele período: Jane Vanini, Luiz Carlos Almeida, Nelson de Souza Kohl, Tulio Roberto Cardoso Quintiliano e Wânio José de Matos. Pelo menos 7 mil pessoas foram torturados no estádio com choques elétricos nos joelhos, peito, cabeça e testículos. Em uma avenida vizinha ao Nacional, um alto-falante tocava músicas dos Beatles e dos Rolling Stones a todo volume para que os estudantes de uma escola vizinha não ouvissem os gritos desesperados das vítimas dos militares.
O futebol fez com que as atividades do campo de concentração de Pinochet fossem suspensas após dois meses. Chile e União Soviética jogariam pela repescagem das eliminatórias para a Copa de 1974. A URSS se recusou a ir ao país sul-americano, legando que o Estádio Nacional vinha sendo usado como campo de concentração. Inspetores da Fifa visitaram o estádio no dia 24 de outubro de 1973. Enquanto a vistoria era feita no gramado, os presos ficaram confinados nas dependências internas do estádio. Incrivelmente, a Fifa considerou a situação no país normal. A União Soviética não foi jogar, e os chilenos entraram em campo sozinhos. Um patético gol simbólico foi marcado em um chute para a rede de um gol vazio.
O estádio foi evacuado na primeira semana de novembro de 1973. Mais de 5 mil prisioneiros foram libertados. Cerca de novecentos continuaram detidos e foram transferidos para outros centros de detenção. Oficialmente 38 pessoas foram executadas no Nacional, onde alguns presos políticos entalharam nas paredes as iniciais de seus nomes e a data em que foram presos, na esperança de que seus entes queridos soubessem que eles tinham passado por ali."
Portanto, percebam, naquela época a atmosfera do Estádio, que hoje também é centro de visitação turística, era absolutamente sombria. E como se isso já não bastasse, a transferência do local do jogo de Calama para Santiago e o Estádio Nacional ainda reacenderia a chama do nacionalismo chileno associado ao futebol, manifestada em 1973 na final da Libertadores disputada entre Colo Colo e Independiente. Romualdo Arppi Filho, árbitro da partida de volta, em Santiago, afirmou que a atmosfera do Nacional, naquela noite, foi uma das mais hostis que vivenciou em todos os seus anos de arbitragem.
No livro "Colo Colo 1973, el equipo que retrasó el golpe", o premiado jornalista esportivo chileno Luis Urrutia O'Neill, também conhecido como "Chomsky" (não confundir com o escritor norte-americano), atribui a classificação do Colo Colo para a final da Libertadores/1973, em disputa com Botafogo e Cerro Porteño, como um fator decisivo para atrasar o golpe de estado posteriormente aplicado pelo general Pinochet contra o governo de Salvador Allende. Não são poucos os que defendem que o "Albo" foi utilizado como instrumento político naquela época.
Em 1981, com menos de 5 (cinco) anos de existência, o Cobreloa não possuía histórico de rivalidade com os três grandes da capital - Colo Colo, Universidad de Chile e Universidad Católica. Como demonstrou o público de 59.901 espectadores presentes no estádio naquela noite de sexta-feira, 20 de novembro, o Chile se uniu em torno da equipe de Calama em busca do primeiro título do país na Libertadores, que havia escapado em 1973.
Surfando nesse sentimento, o dublê de general e presidente/ditador Augusto Pinochet também compareceu e, antes da bola rolar, "pegou o microfone do estádio e disse que o Cobreloa era a pátria de chuteiras".
"Quando o Pinochet chegou, o locutor do estádio coloca o microfone par ele, e ele fala: 'Cobreloa es la patria com zapatos de fútbol'. Ele disse isso, o Pinochet. O Cobreloa é a pátria de chuteiras. Ele diz essa frase incentivando, motivando os caras. Parece que antes de ir para o estádio, o Pinochet visitou os caras do Cobreloa. Então, se para a gente ganhar a Libertadores era importante esportivamente, para eles, politicamente, era uma coisa assim inimaginável. Não dá nem para a gente ter uma ideia do que representaria, muito menos para o clube, do que propriamente para o país." (Júnior, em depoimento a Eduardo Monstanto, transcrito no livro 1981 - O Ano Rubro-Negro)
Os efeitos foram produzidos sobre os jogadores do Flamengo com a bola rolando. Desde os primeiros minutos, muito embora viesse do Maracanã com a vantagem obtida pela vitória por 2x1, o Mais Querido se mostrou intranquilo, inquieto, o que fugia ao comportamento normal do time. Ao fundo, soava uma sirene intermitente, que parecia dar fundo musical às memórias sinistras do Estádio Nacional. O time não estava bem e nem conseguia desenvolver o seu futebol. O jogo transcorria duro, bruto, truncado, inclusive com alguns revides por parte dos rubro-negros, como Mozer, Tita e Nunes.
"Quando a gente entrou em campo, vi logo que tinha um jogador lá, o Mário Soto, com uma pedra na mão. Quando passei por ele, o Mário Soto jogou a mão na altura do meu olho direito e rasgou o meu supercílio. Foi dentro da área, teria que ser um pênalti! Só que o juiz fez vista grossa. Era uma pedra grande, mais ou menos do tamanho de um limão. Quando ia bater o escanteio, a gente já via a pedra na mão dele. O Soto ameaçava todos nós com a pedra na mão. E o juiz vendo! O juiz olhando. Eu ia reclamar com ele, e ele dizia: 'Revida!' Ele queria que eu revidasse! (...) A marca da pedra está aqui no meu supercílio até hoje. Tomei quatro pontos no intervalo do jogo." (Adílio, em depoimento a Eduardo Monstanto, transcrito no livro 1981 - O Ano Rubro-Negro)
"Eu digo que Libertadores você tem que se preparar como homem se quiser ganhar. Eles acham que se apertar, muitos jogadores brasileiros dão uma afrouxada. E o Mário Soto por pouco não me cegou! Ele furou a parte de cima do olho. Aquilo ficou arranhando e eu tive que fazer um curativo; não conseguia abrir o olho. Aí acharam melhor me tirar depois." (Lico, em depoimento a Eduardo Monstanto, transcrito no livro 1981 - O Ano Rubro-Negro)
"Os jogadores do Cobreloa entraram com pedras na mão. Eu vi o número 11, Puebla, colocando a pedra no chão. Era uma pedra de fogo. O que acontecu com o Adilio e com o Lico não foi de um soco. O soco deixa o olho roxo. O soco não corta o olho e o supercílio. Só que eles jogavam com pedras na mão." (Tita, em depoimento a Eduardo Monstanto, transcrito no livro 1981 - O Ano Rubro-Negro)
"Uma bolada no braço de Mozer originou uma chuva de garrafas no gramado, pedindo pênalti inexistente. O jogo estava sob controle. Mas Carpegiani resolveu mudar. Aos 22, sacou Nunes, em noite infeliz e isolada, e apostou em Nei Dias, que era a terceira opção para a lateral direita. Dias antes, Carlos Alberto tivera de operar o joelho direito e, como o lesionado volante Vítor, só poderia torcer pelo Flamengo até o final da temporada.
A troca de um centroavante por um lateral chamou o Cobreloa para o jogo. Carpegiani fixou Andrade na cabeça de área, colocou Leandro como volante pela direita, e prendeu Adílio do outrolado. Zico foi adiantado como atacante, à frente de Tita e Lico, que mais marcavam do que apoiavam. O Cobreloa respondeu com Muñoz na ponta esquerda, recuando Washington Olivera para fazer a função do substituído Gómez, pela meia esquerda.
Aos 27, duas chances seguidas chilenas. Raul fez bela defesa em chute de Puebla; logo depois, Nei Dias salvou antes de a bola bater na trave uma cabeçada de Siviero. O Cobreloa voltava ao jogo e ao antijogo. Puebla derrubou Júnior e pisou no joelho dele. Seria para cartão vermelho e boletim de ocorrência. Mas a arbitragem não quis ver. Carpegiani tentou ganhar gás com Baroninho no lugar de Lico, aos 29. Alteração padrão num elenco que não era tão poderoso quanto os onze titulares. Eram apenas duas mexidas por jogo. Mais não poderia fazer o treinador. Pouco faria o cansado Flamengo até o final.
O clima estava armado e pesado. O supervisor do clube, Domingos Bosco, foi empurrado por policiais. O preparador físico José Roberto Francalacci foi para cima, houve briga com os maqueiros e o ambiente ferveu. Enquanto isso, em campo, o Flamengo criava sua primeira chance real. Zico chutou da entrada da área para boa defesa de Wirth. Apenas aos 31 da segunda etapa. Era pouco."
Júnior ainda revidaria a agressão de Puebla, pisando em sua mão, agressão também ignorada pela arbitragem. Aos 32, porém, a bola, talvez injustamente, pune o Flamengo. Washington Olivera cobra falta duvidosa assinalada por Ramón Barreto, Tita tenta afastá-la de cabeça, mas acaba desviando-a para o fundo das redes, tirando Raul do lance. O Estádio Nacional explode e os chilenos perdem de vez a compostura e a menor noção de limites.
Durante a comemoração do gol, um fotógrafo lançou sua máquina fotográfica em direção a Figueiredo. Júnior pode ter salvado a vida do zagueiro na ocasião, ao conseguir alertá-lo instantes antes que fosse atingido na cabeça, permitindo-lhe se esquivar parcialmente do objeto. Na sequência, partiu para cima do fotógrafo e aplicou-lhe um chute, danificando ainda a máquina.
Os minutos finais da partida foram insanos. Não existe outra palavra definidora. Eram tantos objetos lançados em direção ao gramado que, em determinado momento, até mesmo o meia Merello, antes de cobrar um escanteio, pediu para que parassem. O omisso árbitro uruguaio, um dos responsáveis diretos pela perda do controle da partida, ficou tão apavorado que encerrou o jogo pouco antes de ser esgotado o tempo regulamentar, com apenas 44 minutos da etapa final. Um irreconhecível Flamengo deixava o campo precisando catar os cacos para tentar conquistar o título apenas três dias depois, em Montevidéu.
Na manhã seguinte, os chilenos regozijavam-se:
Na condição de enviado especial da Revista Placar, o saudoso jornalista Marcelo Rezende (1951-2017), em sucessivas reportagens, descreveu o que se passou em Santiago, bem como a reação posterior dos chilenos:
"A cruel batalha de Santiago deixou marcas para sempre nos rostos de Adílio e Lico, covardemente agredidos pelo afinado anel do zagueiro chileno Mario Soto. Mas, como se fossem dois Libertadores da América, o sangue dos heróis não foi derramado em vão. Na mesma noite de sexta-feira, em que o Flamengo perdeu para o Cobreloa por 1 a 0, Zico – acompanhado de Raul e Júnior – foi visitar os companheiros que gemiam de dor, e em nome do elenco fez um juramento solene, emocionado:
— Firmamos um pacto de empenhar todas as nossas forças para vingar cada gota desse sangue. Nossa desforra será vitória.
(...)
Na manhã seguinte à derrota em Santiago, o arrogante motorista de táxi que nos servia, um universitário torcedor do Cobreloa, tentava explicar o massacre da véspera.
— Vocês são descendentes de portugueses, um povo colonizador. Nós temos sangue de espanhóis, uma nação de conquistadores, só conhecemos grandes feitos através de espetaculares conquistas. Veja o que diz o emblema do Chile: “Por la razón o la fuerza’ — e empertigou-se em ar triunfal."
No mesmo sentido, os relatos dos nossos jogadores, lembrando do ocorrido na época:
"Eles mandaram recado pela imprensa, dizendo que os brasileiros eram pipoqueiros, não punham o pé em dividida. Disseram que o time deles era mais aguerrido. A semana que antecede o jogo já foi uma semana de provocações. Eles sabiam que tinham um time inferior ao nosso, então tentaram partir para o lado psicológico, o lado emocional." (Andrade, em depoimento a Eduardo Monstanto, transcrito no livro 1981 - O Ano Rubro-Negro)
"A nossa preocupação era mostrar para o povo brasileiro que o Flamengo não era o time de medrosos que eles falavam. Vamos revidar, vamos dar o troco! Vamos ganhar dentro e fora do campo também, porque, naquela época, diziam que brasileiros não iam para a final da Libertadores porque brasileiro era medroso." (Adílio, em depoimento a Eduardo Monstanto, transcrito no livro 1981 - O Ano Rubro-Negro)
"O ambiente estava muito ruim. Muita gente só pensando em revanche, em porrada. Tive que armar uma reunião, chamar os jogadores e o Carpegiani. A gente tem que ir para lá com outra cabeça. Nosso time é melhor? É melhor. Agora, se a gente for pensando em briga, não vamos arrumar nada. A gente tem que ir para jogar bola. Tem que ganhar, jogar bola e acabou. A reposta que a gente tem que dar é jogando bola. Levantou voo, acabou. Esquece o que passou aqui. Briga? Nada de briga." (Zico, em depoimento a Eduardo Monstanto, transcrito no livro 1981 - O Ano Rubro-Negro)
E falando em jogar bola, o jovem treinador Paulo César Carpegiani tinha pouco tempo, três míseros dias, para quebrar a cabeça e encontrar uma solução para os desfalques de Figueiredo e Lico, baixas da Batalha de Santiago. Mesmo voltando de lesão séria e longo tempo de inatividade, Marinho foi designado para a missão de ocupar a zaga central.
Já para a vaga de Lico, Carpa fez uma verdadeira engenharia, lançando Leandro como volante, ao lado de Andrade, e deslocando Adílio para a ponta esquerda. A lateral direita seria ocupada pelo jovem Nei Dias.
"Estávamos eu e Marinho no quarto. Eles bateram na porta, mandei entrar. Era o Carpegiani e o Bosco. Eles pediram para o Marinho sair. Aí o marinho saiu, e eu nem imaginava o que fosse.
'Você vai para o jogo. Não fala nada para ninguém, ninguém sabe dessa modificação. Eu vou colocar você na lateral direita, o Leandro vai para a cabeça de área, o Andrade vai para a meia-direita e o Adílio vai para a ponta-esquerda.'
'Tudo bem, cara. Tudo bem.'
Ele e o Domingos Bosco falaram assim: 'O Flamengo só vai te contratar se for campeão da Libertadores. E essa é a tua oportunidade.'
Eu não dormi, cara! Eu joguei aquele jogo praticamente sem dormir. /eu cochilava dez minutos, acordava. Se eu não ganhasse, a perda do título seria por minha causa, entendeu? Foi um troço complicadíssimo. (Nei Dias, em depoimento a Eduardo Monstanto, transcrito no livro 1981 - O Ano Rubro-Negro)
"Sabia que o Cobreloa colocaria dois homens em cima dos nossos zagueiros. Por isso desloquei Leandro para o meio, para que tivéssemos dois homens protegendo a entrada da área. Quando passei a escalação, fui muito criticado no Brasil. Quando deu certo, o sabor foi especial. Muito por mérito do Leandro, que era um jogador fantástico. Naquela partida, como volante, ele foi perfeito." (Carpegiani, em depoimento a Eduardo Monstanto, transcrito no livro 1981 - O Ano Rubro-Negro)
Na noite histórica e sagrada de segunda-feira, 23 de novembro de 2021, o Estádio Centenário de Montevidéu recebeu um público que, se não pode ser taxado de ruim, foi apenas modesto para uma finalíssima de Copa Libertadores da América, totalizando 30.200 presentes. Ao entrar em campo, o Mais Querido do Brasil preocupou-se em cativar o público local, carregando a bandeira uruguaia:
Sob imensa pressão psicológica do adversário, que tentava "entrar na mente" dos nossos jogadores, os quais, "mordidos", preocupavam-se em mostrar ao Brasil e ao mundo que o jogador brasileiro não é medroso, o time entrou em campo consciente de que não poderia ceder à catimba chilena e precisava manter o equilíbrio para jogar o seu futebol.
Apenas três dias separavam a Batalha de Santiago da finalíssima no Estádio Centenário, mas o Mais Querido, desde o início, voltou ao "seu normal", pressionando e impondo o seu jogo intenso e ofensivo. O ambiente favorecia, não só pelo clima de campo neutro nas arquibancadas, mas também porque, se o trio de arbitragem era o mesmo, o árbitro principal não era o uruguaio Ramón Barreto, agora auxiliar, mas o seu compatriota Roque Cerullo, que desde o início mostrou que não teria a postura complacente do árbitro da sexta-feira anterior, mas, muito pelo contrário, aplicaria as regras do jogo de maneira imparcial para ambas as equipes.
Assistir ao jogo do Centenário logo após o do Nacional, e dentro do contexto dos três dias que os separaram muda bastante as perspectivas. O Flamengo parecia ter renascido. Como o time jogou bem aquela partida! Intenso, jogando praticamente o tempo inteiro dentro do campo do Cobreloa. Nei Dias, o "insone", não se intimidou e a todo o momento apresentava-se como opção segura para o apoio, mostrando personalidade. Leandro, como mais tarde diria Carpegiani, teve de fato uma atuação exuberante na cabeça-de-área.
Parecia ser questão de tempo para o gol sair, tanto que, aos 17 minutos, o Galinho de Quintino abriu o placar. Após cobrança de lateral, Adílio pegou um rebote da defesa e recuou para Andrade, que lançou Zico de maneira precisa no miolo da zaga chilena. O camisa 10 da Gávea, num belo giro, bateu de primeira, e de direita, balançando as redes pela primeira vez na noite.
Com o Flamengo não diminuindo o ritmo e envolvendo cada vez mais o adversário, não demorou para o time chileno começar a perder a cabeça, o que levou Alarcón a ser expulso. Naquela altura, o Cobreloa simplesmente não via a cor da bola e era questão de tempo para o placar ser ampliado. E Zico quase o fez em uma finalização no lado esquerdo da grande área, obrigando Wirth a mostrar reflexo, mandando a bola para córner. O jogo seguia sob absoluto controle rubro-negro. O Cobreloa não era capaz de ameaçar.
As lembranças da sexta-feira anterior, contudo, ainda estavam vivas na memória dos rubro-negros, e talvez por isso, após Adílio levar uma entrada violentíssima de Puebla e Jiménez aplicar um carrinho criminoso em Júnior, Andrade tenha perdido a cabeça e quase partido Jiménez ao meio. Cerullo não hesitou em aplicar o correto cartão vermelho, muito embora seja de se questionar a política que permitiu ao chileno não ser punido pelo lance anterior. A partir de então, ambas as equipes foram para o vestiário com dez jogadores de cada lado. Antes disso, o Cobreloa ainda ensaiaria uma tentativa de pressão, mas sem êxito. Júnior salvou em cima da linha o que poderia ter sido o gol de empate chileno, na única efetiva oportunidade de gol que criou durante os 90 minutos.
Na volta do intervalo, muito embora o Cobreloa tenha tentado tomar a iniciativa em busca do empate, o Flamengo, mesmo mais recuado, não perdeu o controle da partida em momento algum. Na transmissão da Globo, Gérson "Canhotinha de Ouro" pedia ao time que reduzisse os espaços entre a linha de defesa e o meio de campo, faixa que o Cobreloa poderia explorar perigosamente. Hoje, os experts da tática diriam que o time poderia estar mais compactado.
Numa das poucas subidas ao ataque, Zico carimbou a trave direita de Wirth, a senha para o time começar a sair mais para o jogo. À medida em que o Flamengo crescia, o Cobreloa perdia volume. Nessa toada, o jogo foi transcorrendo, até que Tita lança com precisão Adílio pela meia esquerda. Antes do Brown alcançar a bola, na linha da grande área, o goleiro chileno Wirth se adianta, porém tirando a pelota com a mão, fora da área.
Roque Cerullo marca imediatamente falta de cobrança direta.
Dali, Zico já tinha marcado dezenas de gols na carreira, inclusive no próprio Centenário, dez meses antes, na goleada da Seleção Brasileira sobre a Alemanha, por 4x1, pelo Mundialito do Uruguai, vencido pela seleção local.
Eram jogados pouco mais de 35 minutos da segunda etapa. A narração é do saudoso Luciano do Valle (1997-2014).
Revejam o lance com a imortal narração de Jorge Cury:
Zico, Zicão, Zicaço. O Camisa 10 da Gávea. O maior jogador do Flamengo de todos os tempos. O gênio com pele rubro-negra, o líder, o artilheiro decisivo, a referência. O nosso maior ídolo inscrevia definitivamente o nome do Clube de Regatas do Flamengo nas páginas da Glória Eterna. Apenas o terceiro clube brasileiro a conquistar a competição em vinte e duas edições. O Flamengo, finalmente, jogaria a Copa Intercontinental.
Mas ainda faltava o toque final.
Antes do segundo gol, Anselmo já se aquecia ao lado do banco de reservas. Em breve receberia a missão de dar o troco em Mário Soto, que naqueles instantes desferia um soco no rosto do Galinho de Quintino e também agredia Tita, que caiu na frente da comissão técnica rubro-negra. Com 2x0 no placar, o momento do revide não poderia ser mais propício.
"Não teve nada de história. Foram poucas palavras. Ele falou para eu ir lá e dar um murro na cara mesmo. Ele pediu mesmo.
'Vai lá e dá uma porrada no cara!'" (Anselmo, em depoimento a Eduardo Monstanto, transcrito no livro 1981 - O Ano Rubro-Negro)
Também pudera. Como escreveu o próprio Mário Magalhães na mesma matéria, a vingança "transformou o jogador de 22 anos em ídolo" e seu gesto "se juntou à antologia nacional que coleciona a cotovelada de Pelé no uruguaio Matosas na Copa de 70, a de Leonardo no americano Tab Ramos na de 94 e a ira de Almir Pernambuquinho, que enfrentou no braço todo o time do Bangu na decisão do Campeonato Carioca que o Flamengo perdeu em 1966."
A diferença, prossegue Magalhães, "é que Anselmo não bateu no calor da partida, não entrou para fazer um gol: seu desafio era derrubar o chileno chamado de 'O Verdugo' pelos próprios companheiros. Nos atuais tempos de Jogo Limpo, a campanha mundial contra a violência, talvez Anselmo fosse execrado. O Cobreloa pediu o seu banimento do futebol, mas não houve nenhuma punição." Como também, acrescento, não houve nenhuma punição extraordinária nos exemplos dados pelo jornalista.
Anselmo, enfim, está muito bem acompanhado.
É hora de desembarcar da nossa viagem no tempo. Até a próxima, quando acompanharemos o renascimento e o apogeu da Copa Intercontinental.
Bom FDS e SRN a tod@s.
* Agradecimento especial à colaboração de Adriano Melo.
1ª Parte: O Mundial de Clubes - 1ª Parte - O Início da Copa Intercontinental
3ª Parte: O Mundial de Clubes - 3ª Parte - O Renascimento e o Apogeu da Copa Intercontinental