Foto: Lance! |
Olá, Buteco.
Estamos prestes a vivenciar mais uma mudança de treinador, o que me motiva a registrar algumas reflexões a respeito do assunto.
Antes, porém, quero lembrar que, no dia 03 de dezembro p.p., registrou-se o décimo aniversário da eleição de Bandeira de Melo para a presidência do Flamengo.
Na época, o movimento que tentava assumir o poder no clube representava uma esperança para o torcedor, mas talvez fosse apenas mais uma, renovada de três em três anos, a cada nova eleição presidencial no Mais Querido.
Sabemos, hoje, que esse evento começou a transformar em realidade o sonho da Nação Rubro-Negra de retomada da grandeza do clube, tornando-se o marco inicial de um movimento de mudanças que fizeram o Flamengo passar de clube cronicamente endividado a potência financeira e esportiva do Brasil e da América do Sul.
Feito esse registro, passemos ao tema de hoje.
Antecipação do meu “voto”
Vou desenvolver, a seguir, algumas reflexões a respeito da questão “Elenco Mimado ou Lideranças Inadequadas”, mas quero iniciar antecipando meu voto de “relator da matéria”.
Vejo o comando do Flamengo exagerar em concessões a jogadores, algo que acaba se traduzindo como certo excesso de mimos ao elenco.
Ainda assim, considero que, quando liderado de maneira adequada, o grupo de jogadores se mostra sensível a isto e responde com dedicação, empenho e futebol vencedor, sem se aproveitar do excesso de mimos para se acomodar ou para não lutar pelas vitórias e títulos que desejamos conquistar.
Então, como vou detalhar a seguir, considero que, quando o grupo se comportou de maneira vista pelos torcedores como insatisfatória, estava submetido a lideranças que classifico como inadequadas.
As primeiras entrevistas de Jorge Jesus, na chegadaao Flamengo - Junho de 2019
Na apresentação, no início de junho de 2019
- Quando você treina uma equipe como o Flamengo, uma das melhores equipes de um país, os torcedores querem, além da vitória, qualidade de jogo. Ganhar somente não é o bastante. Isso é normal. Quem joga no Flamengo tem que perceber essa exigência, que é preciso além da vitória - disse o português.
Em entrevista à FLA-TV, em 10/06/2019 - Recado para a Nação
- Para a torcida rubro-negra e para os fãs de todo o mundo do Flamengo, porque em Portugal também há muitos, quero lhes dizer que essa camisa é um símbolo que respeito muito. Vou fazer tudo que está ao meu alcance, em relação à minha capacidade, para poder transportar o Flamengo a ganhar os títulos que todos os seus adeptos mais desejam. E eu estou ansioso para começar a trabalhar.
Primeiro encontro com o elenco, em 20/06/2019
- O mais importante aqui é o Flamengo. Não é o treinador, nem o jogador, é o Flamengo. Portanto, temos todos que olhar para o objetivo e num compromisso de vida. Não podemos falar em outra maneira nesse mundo que não seja ganhar, ganhar e ganhar – disse Jesus.
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A visão vencedora e o compromisso com o coletivo, acima do individual
Warren Bennis, um dos papas dos estudos sobre liderança, dizia que “o líder cria a visão, comunica a visão e implementa a visão”.
Jorge Jesus fez isso no Flamengo.
Aprendi que ideias de visão e missão de equipes precisam “colar”, isto é, que não basta enunciá-las.
É preciso que, ao comunicá-las e ao tentar pô-las em prática, o líder consiga tocar as pessoas, para nelas gerar um compromisso verdadeiro, não um compromisso da boca pra fora.
Trazendo para o mundo do futebol, em toda entrevista de apresentação o novo contratado sempre fala da grandeza do clube e de sua enorme vontade de contribuir para o sucesso da agremiação em que passa a trabalhar.
Só que o compromisso genuíno, profundo, é mais raro.
Com seu jeito simples e direto, JJ comunicou uma visão: Flamengo vencedor, ganhando títulos, mas também com qualidade de jogo.
Jesus enunciava, então, a ideia que aprendi a chamar de “ética de performance”, um valor desenvolvido por equipes de alto desempenho e que as leva a combinar felicidade no trabalho com a busca e conquista de resultados diferenciados.
Como reforços à visão, o Mister falou da dimensão do Flamengo (fãs em todo o mundo e camisa como símbolo que ele respeita), referindo-se, também, ao compromisso com o projeto vencedor que ele queria liderar e à necessidade de prevalecimento do coletivo sobre o individual:
“O mais importante aqui é o Flamengo. Não é o treinador, nem o jogador, é o Flamengo. Portanto, temos todos que olhar para o objetivo e num compromisso de vida.”
Neste conjunto de frases, Jesus trouxe para o elenco uma mensagem de “hierarquia do projeto”, aquilo que faz com que cada integrante da equipe abra mão de posições e interesses individuais quando necessário para a obtenção dos resultados coletivos.
Quando começou seu trabalho no Mais Querido, Jorge Jesus mostrou-se um apaixonado, alguém que, de fato, praticava as ideias que pregava.
Com isto, tocou seus liderados “na emoção”. Eles compraram a ideia e, comprometendo-se com os propósitos definidos pelo líder, submeteram-se aos sacrifícios que vieram a seguir e que não foram poucos porque, sem um bom banco de reservas, o Mister levou-os ao limite.
Só que, ao final da temporada de sacrifícios, com respeito de todos à hierarquia do projeto e com incorporação da ética de performancecomo um valor do grupo, vieram também as conquistas históricas.
O líder Jorge Jesus havia criado, comunicado e implementado a visão.
Porque um entendimento tão grande entre JJ e o elenco do Flamengo? E o Dorival?
Creio que há muitos motivos para que tenha acontecido o entendimento mágico entre JJ e o time do Flamengo, mas quero explorar um deles.
A história mostrou que, para o elenco do Flamengo nesses anos recentes, não basta uma liderança focada no aspecto comportamental, é preciso que a liderança combine o vetor “boa gestão de pessoas” com o vetor “bom conteúdo técnico e tático”.
Jorge Jesus conseguiu combinar esses dois vetores em altas doses e, uma vez conquistado o elenco por essa alta qualidade de liderança técnica e comportamental, o sucesso que veio foi espetacular.
Considero que, em bases mais modestas, Dorival Júnior também conseguiu algum entendimento com o exigente elenco rubro-negro.
Tendo recebido o time num momento muito ruim e sem ser um comunicador tão apaixonado quanto o Mister, Dorival comunicou aos liderados a necessidade de seriedade e foco e agregou algum conteúdo técnico e tático a um grupo que, sob o comando de Paulo Sousa, parecia ter esquecido tudo que sabia.
Com um trabalho que considerei artesanal, Dorival também conseguiu recuperar o desempenho individual de vários jogadores, ingrediente fundamental para que o time começasse a jogar um futebol mais competitivo e mais autoconfiante.
Como foi amplamente reclamado aqui no Buteco, essas condições não se sustentaram satisfatoriamente no final da temporada, mas foram suficientes para, com alguns sustos, o Flamengo conquistar os títulos de 2022 da Libertadores da América e da Copa do Brasil.
Lideranças Adequadas e Inadequadas
Estilos de Liderança x Maturidades
Para falar de lideranças adequadas e inadequadas, preciso trazer algumas ideias propostas por Paul Hersey e Kenneth Blanchard no método de liderança chamado Liderança Situacional.
Serei breve, para não alugá-los com muita teoria.
A ideia básica da Liderança Situacional é de que um líder não pode ter um estilo rígido de liderança e que, ao contrário, deve variar seu estilo em função da maturidade do liderado (ou da equipe) para cada tarefa.
Esclarecimento necessário: Não se trata, aqui, de maturidade pessoal, em geral adquirida pela pessoa com o passar dos anos. É maturidade para uma tarefa específica e independe da idade da pessoa. Uma de minhas netas tem cinco anos e a maturidade dela para a tarefa “jogo da memória” é alta. Disputo com ela e não dou moleza, mas perco.
Segundo a Liderança Situacional, o líder deve variar seu estilo entre quatro graus de delegação e de controle, em função da maturidade do liderado ou da equipe para cada tarefa.
Uma forma simples de explicar como deve ocorrer essa variação de estilo de liderança é associá-la ao tipo de diálogo que o líder deve ter com seu liderado ou com sua equipe: quanto mais alta é a maturidade do liderado ou da equipe para a tarefa, mais participativo deve ser o diálogo.
Um bom exemplo de diálogo entre o líder e um liderado maduro é o que houve entre Jorge Jesus e Filipe Luís.
A maturidade de cada pessoa varia para cada tarefa, mas é razoável considerarmos que, para a função “lateral esquerdo”, Filipe Luís tem maturidade alta ou, no mínimo, média alta.
Quando percebeu que Jorge Jesus esperava que ele jogasse fazendo ultrapassagens, FL dialogou com o Mister e estabeleceu-se entre eles o entendimento sobre a melhor forma de atuar do nosso lateral. Foi um diálogo participativo entre um líder capaz de variar seu estilo de liderança e um liderado com maturidade acima da médiapara a tarefa que estava sendo demandada.
Efeito de Lideranças Comportamentais Inadequadas
Conceito Fundamental: Os autores do método “Liderança Situacional” ensinam que, quando um líder adota um estilo de liderança muito incompatível com a maturidade do liderado ou da equipe, as respostas comportamentais são ruins e, em consequência, também, os resultados. Esta situação costuma levar a reações de confusão e acabam gerando desmotivação dos liderados.
Entro logo num exemplo do que me pareceu ser uma liderança comportamental inadequada, a de Paulo Sousa em seu trabalho no Flamengo.
A impressão que PS me passou, em suas entrevistas e atitudes no comando do time, foi de alguém que exagerou na tentativa de ensinar Padre Nosso ao vigário.
Nosso elenco pode não ter maturidade alta em jogo de posição, mas não tem maturidade baixa para o futebol em geral e, portanto, não pode ser tratado como um grupo de iniciantes, como pareceu acontecer.
Além desse erro de liderança no campo comportamental, acho que PS não conseguiu apresentar ao grupo um conteúdo atraente e convincente.
E aí, à medida que os resultados não apareciam, o grupo foi ficando confuso e desmotivado e acabou por se tornar, temporariamente, um grupo perdedor, que já não assustava ninguém.
Elenco Mimado? Por que não parece mimado quando aliderança é adequada?
Quando é tratado com liderança inadequada, qualquer grupo reage mal.
Os torcedores e butequeiros mais exaltados podem considerar que os jogadores estão de sacanagem porque são mimados, mas não vejo assim.
Como disse no início desta coluna, até acho que a direção do clube comete erros no enquadramento dos jogadores, algo que, em certas situações, pode gerar enfraquecimento da “hierarquia do projeto” e da “ética de performance”, mas qualquer equipe tratada em grau de liderança muito distante da sua maturidade responde mal, não por sacanagem, mas porque tende a ficar confusa e mal situada frente às tarefas que lhe são cobradas e isto piora quando o líder não consegue trazer conteúdo que a equipe perceba como capaz de levá-la ao sucesso.
Estes foram, a meu ver, os graves erros de liderança de Paulo Sousa, erros que Dorival e Jorge Jesus não cometeram, porque respeitaram a maturidade do grupo.
Com boa (ou, pelo menos, satisfatória) liderança comportamental e de conteúdo, Jorge Jesus e Dorival conseguiram gerar um engajamento que, combinado com o inegável talento do nosso elenco, criou condições para que o Flamengo chegasse a grandes conquistas.
Para não me estender e poder chegar logo em Vítor Pereira, deixo de avaliar aqui o desempenho de Domènec, Rogério Ceni e Renato no tocante às lideranças comportamental e de conteúdo, sinalizando que, em alguma medida, cada um deles deixou a desejar em pelo menos um desses dois vetores.
E o Vítor Pereira? Que líder será?
Conhecendo pouco nosso novo técnico, não consigo prever que líder Vítor Pereira será e espero que as amigas e amigos do Buteco contribuam para traçar um perfil mais preciso do treinador que vem sendo anunciado.
Vítor parece ser duro no trato e de não usar meias palavras para dizer o que pensa, algo que, em princípio, assusta um pouco, mas que não vejo como principal fator de risco.
Afinal, Jorge Jesus não é um treinador “macio” na fala, mas conseguiu conquistar o grupo com boa combinação dos vetores “gestão de pessoas” e “conteúdo técnico e tático”, sendo de se notar que, embora os jogadores estivessem sendo expostos ao sacrifício de jogarem seguidamente, o ambiente não era de queixas e reclamações. Pelo contrário, era evidente que o grupo mantinha alto nível de motivação para o trabalho e para o sucesso.
Chamava-me muito a atenção o quanto os jogadores do “Flamengo Mágico” procuravam o Mister quando a bola parava, situação em que havia muito diálogo à beira do campo. E não era monólogo, não. Era diálogo, mesmo.
Cada partida de futebol é uma tarefa diferente, porque o adversário é outro e porque são variadas as circunstâncias de cada jogo.
Então, é plenamente admissível que um jogador, por mais maduro que seja para o futebol em geral, precise de orientação do treinador, orientação que pode ser mais ou menos impositiva, a depender de cada situação específica do jogo.
Talvez Vítor Pereira seja duro no jeito de falar, mas saiba variar o estilo de liderança, sendo impositivo ou mais participativo, conforme exija cada situação. Espero que assim seja.
Imagino que possa haver um estranhamento inicial do grupo de jogadores pelo estilo “sincerão” do novo treinador, mas, se VP trouxer bom conteúdo técnico e tático, acredito que os jogadores podem desenvolver uma boa relação com ele, porque não vejo nosso elenco como acomodado nas glórias, mas como um grupo que é exigente, sim, mas que gosta de ganhar títulos.
SRN
Carlos César Ribeiro Batista