Tempestade perfeita, terra arrasada,
caos, destruição.
Qualquer termo apocalíptico pode
ser utilizado, sem a mais tênue nesga de exagero, para se referir ao momento que
o Flamengo vive neste setembro de 1983, ainda na esteira da venda do maior
jogador de sua história, ocorrida três meses antes.
Jogadores tomados por uma
desmotivação quase melancólica se arrastando em campo, derrotas humilhantes
levando à renúncia de dirigentes e mesmo do Presidente, uma torcida incrédula e
revoltada chegando a agredir alguns atletas, tudo isso culminando em um
inacreditável sexto lugar ao final da Taça Guanabara, a pior colocação do rubro-negro
em anos.
A cereja do bolo é a devastadora
goleada sofrida para o Bangu (2-6), que acende, dentro das hostes flamengas, a
necessidade e a urgência de se dar um basta àquilo. Afinal, Zico se foi e o
clube, que ainda ostenta um dos melhores elencos do país (talvez o melhor),
está com os cofres abarrotados. Nada justifica essa letargia que já se arrastou
por tempo demais. Hora de olhar para frente.
No intervalo entre os dois turnos,
o Flamengo põe em prática seu plano de contingência. Primeiro, vai ao mercado e
fecha um pacote de reforços. Em uma operação triangular com Grêmio e Palmeiras,
traz Tita de volta do empréstimo aos gaúchos (seis meses antes) e recebe emprestado
o talentoso meia Cleo, cedendo o contestado atacante Baltazar ao clube
paulista. Do Guarani chega o veloz ponta-direita Lúcio. Mantendo a política de
investir em jovens valores, contrata o zagueiro Guto e o lateral-direito
Heitor, destaques na Seleção Brasileira Campeã Mundial Sub-20 no México. Um
revés é o zagueiro Leiz, da Portuguesa, que chega a ser anunciado mas na última hora o clube paulista desiste
da venda.
A busca por um centroavante é
mais complicada. Os esforços convergem para a tentativa de contratação de Reinaldo,
do Atlético-MG, sonho antigo do Flamengo e do jogador. Os mineiros (com quem o
Flamengo tem boa relação, ao contrário do que se acredita) são receptivos à
negociação, mas não abrem mão de uma troca por Adílio, o que esfria o negócio.
Com efeito, o craque da Cruzada viveu, no Brasileiro, o seu melhor momento na
carreira, convertendo-se em um dos principais nomes da campanha do tricampeonato.
Sua saída está, pois, fora de questão.
Descartado Reinaldo, o Flamengo
esquadrinha outros nomes: tenta o retorno de Nunes (em transação semelhante à
de Tita, mas o Botafogo, a quem o atacante está emprestado, nega-se a devolvê-lo
antes do fim do contrato), sonda o jovem Chicão, da Ponte Preta, chega a pensar
em Careca, do São Paulo, mas acaba trazendo Edmar, do Cruzeiro, e repatriando um
velho conhecido, Claudio Adão, emprestado pelo Al Ain, dos Emirados Árabes.
Com o elenco mais que reforçado,
o clube parte para a definição do treinador, que precisa ser um nome mais
sólido que o do interino José Roberto Francalacci. A primeira tentativa é Edu
Antunes, mas o irmão de Zico prefere seguir no América, onde desfruta de
prestígio e desenvolve ótimo trabalho. Outro nome é Carlos Alberto Parreira, treinador
da Seleção Brasileira. Porém, Parreira está em plena disputa da Copa América, o
que o manterá em dedicação exclusiva até outubro. Nenhum outro nome empolga,
salvo um. Um treinador relativamente jovem, mas que se demonstrou capaz de
montar um time competitivo “do zero”, dando resultado a curto prazo. Alguém
enérgico e capaz de trazer novas ideias e renovar um ambiente condicionado por
práticas que remontam à década passada. Sim, o Flamengo tem o nome. Um nome que
demandará do clube ousadia, coragem e desprendimento.
Porque o rubro-negro terá que tomá-lo
de um rival.
Claudio Garcia, um meia esforçado
quando jogador do Fluminense, foi contratado pelo tricolor no início do ano
como treinador, para construir um time barato e competitivo, num momento de grave
crise, ainda na ressaca pós-Horta. O clube chegou a alugar as Laranjeiras para um
circo, buscando alguns trocados, e se discutiu seriamente a possibilidade de
desativar o time de futebol, tal o medo de apequenamento. Nesse contexto,
Garcia precisou se virar com escassa matéria-prima e, a despeito da campanha
modesta no Brasileiro (eliminado na Segunda Fase em um grupo com Goiás, Náutico
e Rio Negro), conseguiu revelar alguns jogadores interessantes, casos de Branco
e Ricardo Gomes, que se juntaram a uma base onde figuravam Paulo Vitor, Delei,
Duílio e o jovem Paulinho, destaque da Seleção Sub-20.
No Estadual, com as chegadas de
Assis e Washington, que trouxeram poderio ofensivo, Garcia conseguiu formar um
time enjoado, aguerrido e extremamente disciplinado taticamente, que soube
aproveitar a instabilidade dos favoritos Flamengo e Vasco (este, ainda
patinando na transição entre gerações) e assegurou, de forma invicta, o título
da Taça Guanabara, ao derrotar por 2-0 o América de Edu. O trabalho de Claudio
Garcia, ao final da partida, é exaltado como o melhor em um clube carioca desde,
talvez, o que Coutinho fizera no Flamengo no final dos anos 70.
Pois é justamente Claudio Garcia o alvo do
Flamengo.
As primeiras conversas começam na
reta final da Taça Guanabara, prontamente rejeitadas. Mas o Flamengo elogia, corteja,
seduz, acena com vantagens que, aos poucos, vão amolecendo o jovem treinador. Alguns
rumores chegam a vazar, mas não a ponto de serem levados a sério. Mas a
insistência do Flamengo incomoda os tricolores, que vão aos jornais anunciar,
de forma taxativa: “Garcia fica e seguirá conosco até o final do contrato”. Nos
festejos que se seguem à conquista da Taça Guanabara, um tenso Garcia manifesta
aos líderes do elenco que, em princípio, pretende seguir no Fluminense. Sem
muita convicção.
A bomba estoura na segunda-feira,
dia seguinte à Final da GB. Após reunião com a Diretoria do Fluminense, Claudio
Garcia comunica que aceitou a proposta e será o novo Treinador do Flamengo.
Os dirigentes das Laranjeiras espumam
de ódio. “Traidor, mercenário, vendido”, são adjetivos que ribombam pelas
paredes do clube com assustadora banalidade. Os jogadores do elenco se recusam
a se despedir de Garcia, perplexos com a “ingratidão” do treinador que, paradoxalmente,
foi o responsável por conferir uma relevância de que o Fluminense não desfrutava
há pelo menos três anos.
Garcia, embora ainda aturdido, justifica
sua decisão com uma sinceridade que acirra ainda mais os ânimos tricolores: “resolvi
aceitar a proposta porque sei que é uma oportunidade única de ascensão profissional.
No Flamengo terei a chance de disputar e ganhar competições internacionais e
alavancar minha carreira. Afinal, trata-se de um clube maior, com jogadores
melhores e incomparável repercussão. Se não aceitasse, passaria o resto da vida
arrependido de ter fechado essa porta.”
O episódio acende acalorado
debate no cenário esportivo carioca. Alguns condenam o treinador e o Flamengo,
que em sua visão deveria “ter consultado e se entendido com o Fluminense antes
de procurar Garcia”. No entanto, outros ponderam: “e por acaso a Udinese
consultou o Flamengo quando lhe tirou o Zico?”, “e se o Fluminense, no returno,
perde três seguidas e mandam o Claudio embora, como é prática normal no nosso
futebol? Aí está tudo certo?”
Como esperado, o Fluminense emite
raivosa nota oficial comunicando ter “rompido relações” com o Flamengo, em
decorrência do que denomina “falta de ética” do rubro-negro por ter “aliciado
um profissional sob contrato”. Avisa ainda que tomará as medidas necessárias
para salvaguardar os interesses do clube, entre outras diatribes.
Para o lugar de Claudio Garcia, o
Fluminense decide fazer uma proposta a José Luiz Carbone, Treinador do
Goytacaz. Carbone aceita e dirigirá o tricolor até o final do ano.
O Flamengo dispõe de dez dias de
preparação para a Taça Rio, período em que, após acordo com a CBF, utiliza as
instalações da Granja Comary, em Teresópolis. Ocasião em que Claudio Garcia
poderá conhecer o plantel, os dirigentes e se ambientar com a realidade de um
clube do tamanho do Flamengo. De qualquer forma, Garcia pontua que,
independente do alto nível dos jogadores, baseará seu trabalho na busca de um
time combativo, solidário e disposto ao sacrifício e à disciplina que são
inerentes aos times vencedores no futebol atual. Fará chegar ao fim a abordagem
mais romântica de um “futebol-arte” que precisa de maior competitividade.
O Flamengo precisa de novos
paradigmas.
Claudio Garcia permaneceu no
cargo por nove meses, sendo demitido após a eliminação nas Quartas de Final do
Brasileiro-1984, deixando o Flamengo classificado para as Semifinais da Libertadores,
tendo emplacado a melhor campanha da Primeira Fase. No tempo em que esteve na
Gávea, iniciou um processo de renovação que promoveu o aproveitamento de jovens
como Bebeto, Heider, Bigu, Adalberto e Guto, entre outros, num processo que o
fez, muitas vezes, colidir com dirigentes e jogadores como Nunes e João Paulo. Mesmo
com turbulências, tentou fazer o Flamengo migrar de um estilo de jogo mais
técnico e cadenciado para um futebol mais intenso e veloz, obtendo certo êxito.
Conquistou a Taça Rio-1983.
Foi substituído por Zagalo, que manteve a busca por uma equipe de índole mais competitiva e menos "artística".