E dá a lógica.
Confirmando todos os prognósticos,
o título da Taça Guanabara de 1984 será decidido entre o Flamengo de Zagalo,
que mesmo sem Zico e Júnior ainda ostenta um dos melhores planteis do país (Fillol,
Leandro, Mozer, Andrade, Adílio, Tita, Nunes e outros, como os jovens Bebeto e
Jorginho) e o Fluminense de Assis, Washington, Romerito, Branco e um conjunto
muito forte, que vem da recente conquista do Brasileiro. É bem verdade que o
tricolor, ao tropeçar contra Vasco (0-0) e Volta Redonda (1-1), permite a
aproximação de um rubro-negro embalado por cinco vitórias seguidas e
aparentemente em melhor momento. Mas também é certo que, com ambos empatados
com 17 pontos e sem qualquer vantagem (o empate força um jogo extra), será uma
final em que qualquer detalhe poderá ser decisivo. Será necessário muito foco,
muita concentração.
Mas esse título começa a ser
definido na segunda-feira.
No dia seguinte ao empate no Raulino
de Oliveira, o Fluminense aproveita a folga do elenco para cumprir uma
programação um tanto inusitada. Forma-se uma comitiva com Presidente, Diretores,
membros da Comissão Técnica, o treinador Luiz Henrique e os jogadores Washington,
Branco, Aldo, Jandir, Tato, Paulo Victor e Duílio, que vai a Brasília visitar o
Presidente da República João Figueiredo, notório tricolor, com o intuito de entregar-lhe
uma faixa do título brasileiro recentemente conquistado. Mesmo sendo de
pertinência questionável numa semana de decisão de título, é o tipo de evento
que potencialmente seria pouco mais que protocolar, provavelmente esquecido em
poucas horas.
Mas o verdadeiro objetivo da
viagem não é apenas cumprir uma formalidade.
Após se despedir de Figueiredo, o
grupo se dirige a um hotel de alto padrão, onde funciona o comitê de campanha
do candidato à Presidência da República Paulo Maluf, ex-governador de São
Paulo, e apoiado pelo Governo Federal, visando às eleições que ocorrerão no
início do ano seguinte. A ideia é “dar um abraço” no candidato e manifestar
publicamente o apoio pessoal de membros do clube, incluindo jogadores, que
entendem ser Maluf o “melhor candidato para apoio ao esporte”.
Ocorre que Maluf, o candidato
governista, galvaniza índices de impopularidade e rejeição popular com poucos
precedentes na história política do país. A crise econômica, o desgaste de um
regime que já dura vinte anos, a derrota da emenda das Diretas Já, entre outros
fatores, produzem uma espécie de “tempestade perfeita” para Maluf, que não
consegue fazer sua candidatura lograr receptividade entre os ditos “formadores
de opinião”. Como resultado, cria-se o termo “malufar”, que se refere ao ato de
apoiar sua candidatura, mas com conotação fortemente negativa.
Paulo Victor, Duílio e Tato percebem
a armadilha e se recusam a entrar no hotel. Mas o restante da delegação conversa
animadamente, posa para fotos e entrega uma camisa do clube a um sorridente
Maluf, que arrisca prever uma vitória tricolor por 2-1 no clássico, num clima
extremamente cordial e descontraído.
A repercussão é desastrosa.
No dia seguinte ao convescote, a
normalmente pacata sala da telefonista das Laranjeiras vira um inferno. O
aparelho não para de estrilar impropérios, xingamentos, ofensas e diatribes
contra a “malufada” tricolor. O elenco passa o dia dando explicações, tentando
contornar o incandescente clima criado com a visita a um candidato que não
desfruta da preferência da torcida e nem mesmo de boa parte do plantel. Com efeito,
jogadores como Assis e, principalmente, Delei, demonstram incômodo com a
iniciativa: “penso ser um erro o clube adotar uma posição unilateral que não
corresponde ao posicionamento de quem aqui trabalha, como eu e vários colegas,
que simpatizamos mais com o outro candidato, só para dar um exemplo”, frisa o
camisa 8.
Aos poucos, vai se formando um
racha.
O Presidente tricolor, ciente do
estrago, tenta acalmar as coisas, solta uma nota oficial, e, brigando com a
realidade, pontua que a iniciativa não é institucional, que reflete apenas
posições pessoais, e sai responsabilizando a imprensa, por anabolizar a repercussão
da coisa, e mesmo o Flamengo, que teria “fabricado” de forma conveniente um “escândalo”,
sem explicar como o rubro-negro poderia ter “arquitetado” um encontro entre a dirigentes/atletas
tricolores e o Governo Federal.
Para complicar, pipoca uma insatisfação
no vestiário do Fluminense, com jogadores incomodados com a Diretoria do
Futebol, que, numa tentativa de mudar o foco da discussão, divulgou o valor da
premiação a ser paga em caso de conquista do título. Mas isso irrita os
atletas, normalmente consultados antes da definição dos valores. E,
coincidentemente ou não, os líderes do levante são justamente os mais indignados
com a visita a Maluf.
Jogadores como Romerito e Assis,
e o treinador Luiz Henrique tentam enfaticamente mudar o foco para o Fla-Flu de
domingo. Mas as Laranjeiras já estão irremediavelmente em frangalhos.
Enquanto o Fluminense ferve em
suas questões políticas, o Flamengo se prepara. Zagalo, enfim, consegue formar
um conjunto sólido, competitivo e praticando o tradicional futebol vistoso tão
caro à Gávea. O que não impede que o rubro-negro exiba a melhor defesa da
competição, com 5 gols sofridos em 10 jogos. O definitivo deslocamento de
Leandro para a zaga (onde faz uma exuberante dupla com Mozer), a ida de Adílio
para a ponta-esquerda, possibilitando a montagem de um meio-campo mais vigoroso
(onde Andrade e o jovem Helder “trancam a chave” da intermediária) e a
efetivação de Nunes no comando do ataque, acabando com a angustiante
indefinição do antecessor Claudio Garcia, incapaz de se decidir entre o “João Danado”
e Edmar, fazem o Flamengo crescer de produção. A ordem é esquecer o recente
trauma da eliminação da Libertadores e partir com fome para o Estadual.
Começando pela Taça Guanabara.
A preparação para o Fla-Flu
atinge tal nível de sofisticação que, desde as rodadas iniciais, são produzidos
slides com fotos, de jornais ou tiradas em estádio por olheiros, contendo o
posicionamento dos jogadores do Fluminense em diferentes situações de jogo. O
clube adquire um equipamento especial importado, que é capaz de ampliar as
imagens, como naqueles filmes de investigação policial, restringindo-as à área específica
a ser estudada. O Flamengo sabe que o título será decidido contra o tricolor. E
quer o tricolor.
Sobre o imbróglio do adversário
com Maluf, a Diretoria proíbe que os jogadores flamengos se manifestem. Também
se evita colocar o Flamengo no centro da polêmica, mas o Presidente rubro-negro
não resiste à tentação de fustigar o rival, comunicando que sua intenção é, “no
momento oportuno”, fazer chegar ao candidato Tancredo Neves, ex-governador de
Minas Gerais, favorito e preferido pela opinião pública, uma camisa do Flamengo
assinada por quem assim o desejar. Tancredo agradece, fala em uma vitória
rubro-negra por 3-1 e, pelo lado da Gávea, não se menciona mais o assunto.
Aos poucos, enfim o tema Maluf
parece estar ao menos administrado no Fluminense. Excetuando-se alguns incidentes
como os muros das Laranjeiras pichados com palavras de ordem contra o candidato,
ou um e outro impropério dirigido por transeuntes ao ônibus que transporta os
jogadores, a coisa parece enfim esfriar. Membros da comissão técnica falam em “exercício
pleno da democracia” e os jogadores parecem finalmente começar a responder
questões sobre o jogão de dali a poucos dias.
Por pouco tempo.
O goleiro Paulo Victor, que num
primeiro momento havia se recusado a fazer parte da visita a Maluf, muda de ideia
e pede para ser liberado da concentração na antevéspera do Fla-Flu, alegando “problemas
pessoais”. Mas vai a um estúdio de TV onde Maluf está participando de um
programa de entrevistas e faz questão de manifestar apoio ao candidato, tirando
fotos e mais fotos, e emenda, sem temor de parecer incoerente: "não podemos misturar política com futebol". O movimento, que soterra definitivamente qualquer tentativa de apregoar "neutralidade institucional", enfurece a Diretoria e boa parte do elenco.
Esfacelado pelos problemas internos,
o Fluminense tenta produzir um derradeiro factoide. E conta com um reforço de
peso. O tricolor João Havelange, Presidente da FIFA, lança a ideia de colocar
Zagalo de novo como treinador da seleção. Esperto e manhoso, Zagalo não morde a
isca. “Claro que quero voltar, mas para isso preciso ganhar títulos. Começando
por domingo. Então, estou concentrado apenas nisso agora. Por falar nisso, peço
desculpas mas não tenho mais nada a falar. Vou para casa ver um vídeotape do
Fluminense.”
Zagalo não está sendo retórico.
Na semana do clássico, o Velho Lobo deixa a tradicional irreverência e
loquacidade de lado e adota tom soturno, introspectivo, com a imprensa. Nos
treinamentos, demonstra especial atenção a detalhes aparentemente
insignificantes. Treina exaustivamente o sistema defensivo contra a famosa bola
aérea, arma adversária que tem se mostrado letal há dois anos. Um frequentador
assíduo da Gávea confessa estar impressionado com o nível de mobilização do
Flamengo para essa final: “nunca vi o pessoal tão concentrado”.
O Fluminense luta contra seus
fantasmas. E o Flamengo lutará contra o Fluminense.
* * *
Pouco mais de 19 horas. O placar do
Maracanã exibe letras cintilantes, luminosas, que ofuscam, especialmente diante
da noite que cai escura, densa. Está lá, Flamengo 1, Fluminense 0. Ao lado, num
diagrama tão vistoso quanto o permitido pelas limitações do equipamento, a
expressão “Flamengo Campeão Taça GB”. Sim, o Flamengo é o campeão da Taça Guanabara
de 1984.
E, ao longo das duas horas que
antecedem a exibição da homenagem, o Flamengo realiza aquela que provavelmente
é sua melhor atuação sob o comando de Zagalo. Demonstrando uma aplicação tática
e uma fome que impressionam os 100 mil que pagaram ingresso, os comandados do
Velho Lobo formam uma verdadeira parede que bloqueia todas as ações tricolores
no meio-campo. Os notórios contragolpes do Fluminense simplesmente não existem,
bloqueados por um cerco quase militar imposto pelos da Gávea. Ao contrário, é o
tricolor que sofre com as estocadas fulminantes de um time que, bem ao gosto
das tradições flamengas, mescla a categoria e a classe de jogadores consagrados
com o fogo e a intensidade de jovens talentos. A rigor, o placar de 1-0 soa
tímido, esquálido, famélico até, diante da superioridade de um Flamengo que estampou
por duas vezes o travessão do arqueiro tricolor e o transformou na melhor figura
da equipe que acaba de ser derrotada.
O gol que dá o título ao
rubro-negro é uma espécie de resumo ilustrativo da diferença de postura entre
as duas equipes. Adílio e Aldo disputam bola no lado esquerdo do ataque
flamengo. Trombam. Adílio leva a pior e vai ao chão, mas José Roberto Wright
manda seguir o lance. A sobra fica com o zagueiro Duílio, que se confunde e,
alegando ter ouvido um apito, apanha a bola com as mãos. Agora sim, a infração
é marcada. Mão. Na cobrança do “minicórner”, Adílio fulmina de cabeça para as
redes de Paulo Victor. Ironicamente, o clássico é decidido num lance de bola
parada. Mas a favor do Flamengo.
Enfim aliviado, Zagalo dá vazão ao
seu temperamento emotivo e chora. Chora com a festa sensacional da gente flamenga
no estádio, chora com o choro de Bebeto, chora com a comemoração esfuziante de
vários jogadores que já ganharam tudo e estão ali, pulando como crianças. Mas,
mesmo com o rosto encharcado em lágrimas, o Lobo se permite, ao relancear o
lado direito das arquibancadas já praticamente vazio, lembrar que jogo vai,
jogo vem, e no fundo as coisas parece que funcionam do mesmo jeito desde que alguém
resolveu chutar uma bola por aí.
Pois é aquilo. As taças sempre sorriem para quem mais as merece.