sexta-feira, 1 de julho de 2022

Alfarrábios do Melo

Em algum clube, em algum lugar do país...

Lateral e volante.

As necessidades são colocadas de forma bem clara pelo treinador, que inclusive detalha o perfil mais adequado. Jogadores na faixa de 25 anos, com certa experiência em clubes de ponta, que venham para assumir de imediato a condição de titulares. Um lateral mais defensivo, para equilibrar o balanço da primeira linha, e forte fisicamente, para aumentar a intensidade e a capacidade de imposição da equipe. E um volante de grande mobilidade, daqueles onipresentes, para fazer uma espécie de trabalho de “motor” no meio, lubrificando com qualidade saída de bola e transições ofensivas, sendo desejável apresentar boa precisão em passe “quebra-linha”. E ainda com vigor para chegar à frente, finalizando ou preparando assistências.

O treinador se reúne com a Diretoria e sugere o nome de um volante. “Esse aqui atende perfeitamente ao que nós precisamos”.

Com efeito. Saiu novo do Brasil, após se destacar em alguns títulos nacionais de um clube de primeira prateleira. Foi para a Europa, enfrentou problemas de adaptação, não conseguiu funcionar, passou um tempo perambulando emprestado para clubes de centros menos badalados e, com o contrato perto do fim, agora vê restritas as perspectivas de continuidade no Velho Continente. Grécia, Turquia ou, ainda pior, Rússia/Ucrânia são os horizontes ainda viáveis. Não. Mais prudente talvez seja retroceder um pouco, voltar ao Brasil, destacar-se e, com o nome novamente no mercado, retornar ao centro futebolístico da Europa, mesmo que em clubes menos vistosos ou, se não houver jeito, ao menos amealhar gordos contratos no futebol árabe, em clubes bem mais pródigos em mimos e salamaleques a jogadores que julgam de ponta. Avisa ao empresário: “pode trabalhar meu nome no Brasil. Quero voltar”.

Dentro de campo, o rapaz de fato parece encaixar perfeitamente ao que o clube precisa. Além da experiência em time grande e em ganhar títulos, pratica, em seus bons momentos, um jogo nervoso, mapas de calor inflamados ao rubro, ótimos índices de desarme e acerto de passes verticais, número interessante de gols e assistências, imagem de jogador bom de vestiário e comprometido, que chegou a deixar certa saudade na torcida de seu clube original.

O Dirigente ouve as ponderações, conversa aqui e ali, e entende ser possível a contratação. O acerto salarial não é complexo, as pretensões do jogador são compatíveis com a elevada faixa salarial do plantel. Ademais, poucos clubes no Brasil reúnem a capacidade para uma contratação desse vulto, e os potenciais concorrentes estão satisfeitos com seus elencos de volantes. Então, a escolha parece natural e óbvia, uma convergência de vontades.

Mas é necessário combinar com o clube do atleta. Que não vai pedir pouco.

“DOZE MILHÕES de euros? Quem é esse, o Di Maria?”, desdenha o Diretor Financeiro, a quem o Diretor Administrativo faz coro. “Por que não trazemos o Lucas Enzo?”, “por metade desse preço é melhor contratar o Bruno Moura!”, espocam muxoxos e resmungos das mais diversas áreas. O Assessor da Diretoria de Marketing, primo de um importante elemento de apoio à Administração atual, no sempre intrincado xadrez político interno, sugere o Mateus Ribeiro. E assim em poucas horas o Dirigente já tem em sua mesa um total de onze nomes, entre sugestões, indicações, pitacos e outros tipos de palpites coletados dentro de uma metodologia, digamos, peculiar.

O Dirigente percebe que não será fácil emplacar o reforço pretendido. O clube nem cogita despender 12 milhões de euros. A rigor, pretende gastar, em toda a janela, um total de 7 milhões com todos os reforços. Não que não haja a disponibilidade. Até existe o recurso. No entanto, tão importante quanto montar equipes estreladas é desenvolver índices de gestão e produtividade orçamentária compatíveis com as melhores práticas do mercado. E isso envolve racionalidade na aquisição de reforços.

O Dirigente ainda tenta alternativas. Propõe a contratação por empréstimo. “Já o emprestamos três vezes, não nos interessa mais”, tenta reduzir o valor da compra para algo como 7 milhões por 60% dos direitos. “Não”. Oferece 9 milhões pelo negócio. “O preço é 12”. Os europeus não têm pressa. A dois anos do final do contrato, ainda dispõem de certa gordura para dar as cartas.

Premido pelo pouco tempo disponível, o Dirigente deixa o assunto em banho-maria. Precisa de uma alternativa, que não passa nem perto das “indicações abalizadas” que seguem brotando nas salas, nos gabinetes e nas redes sociais. Não vai abrir esse tipo de flanco. Aliás, já sabe a quem recorrer. Lança mão do telefone, corre os dedos pelo aparelho e, com agilidade, alcança o nome que procurava.

“Giovinco, preciso novamente de você”. Descreve rapidamente o problema, fala das dificuldades em desenvolver alguma negociação pelo alvo pretendido. Acha prudente não mencionar as restrições impostas pelo próprio clube.

Va bene, ali você não vai conseguir muita coisa mesmo. Eles são duros para negociar, jogam sempre no limite. Mio conselho é o seguinte: ou você dá os 12, ou então é melhor ir atrás de outro. A propósito, acho que tenho alguém...”

Apareceu no futebol paranaense, sendo vendido após uma boa temporada. Depois de dois bons anos na Ucrânia, conseguiu um contrato interessante em um time mediano da Espanha, mas se lesionou e, desde então, não recuperou mais o nível de suas atuações. Os espanhóis estão dispostos a emprestá-lo ao Brasil, até como possibilidade de mercado para uma eventual venda. É volante, joga mais recuado, possui boa imposição física, mas é um tanto lento no combate direto. Seu passe é razoável, apresentando índices de acerto compatíveis com a média do futebol brasileiro, com a ressalva de que são, em sua maioria, laterais. Chega pouco à frente, mas chuta forte. Bom jogo aéreo, faz gols de cabeça. E não muito mais que isso.

“Consigo um empréstimo sem custo por um ano, ma dopo vocês se comprometem a exercer a compra. 5 milioni euros.”

O Dirigente, após o protocolar tempo para pensar, entende ser um bom negócio. Trazer um jogador sem custos vai acalmar a ânsia dos colegas da Diretoria, sempre sensíveis aos números colocados “preto no branco”. Quanto ao perfil do jogador, não se incomoda muito, “o treinador vai saber dar um jeito, é pago pra isso”. Mais difícil é lidar com as redes sociais. De alguma forma, o nome do “craque de 12 milhões” vazou, o que gerou certo entusiasmo, inclusive com hashtag subindo, e coisa e tal, anabolizadas por postagens enigmáticas de gente da família do rapaz, atentos a essa linguagem peculiar dos tempos modernos. Mas, experiente nesse tipo de coisa, o Dirigente sabe que precisará lançar mão de certos artifícios.

Inicialmente, pede a dois setoristas amigos para plantarem em redes sociais postagens despretensiosas, com cuidado na linguagem (para não ferir suscetibilidades), indicando que o clube nunca se interessou pelo cara dos 12 milhões, que foi o empresário que cavou, que outros clubes (europeus, claro) estão interessados, essas coisas que afugentam o torcedor. A seguir, uns dois dias depois, especular os nomes de um ou dois jogadores de altíssima rejeição, seja pela identificação com clubes rivais, seja pelo momento de decadência na carreira. A ideia é reduzir expectativas, para, aí sim, acenar com o nome do alvo certo, a ser recebido com alívio.

“Giovinco, vamos fazer. Pode movimentar com os espanhóis.”

Ma io soube que você também precisa de um lateral. Eu te arrumo esse também. Aí já traz em pacote.”

“Hum.”

Trinta e quatro anos, medalhão com experiência de Copa do Mundo, carreira internacional bem sucedida, mas em declínio há coisa de cinco anos, problemas com festas e bebida. Quer voltar ao Brasil para encerrar a carreira. Não vem em bom momento na Turquia, onde brigou com o treinador por não aceitar a reserva. Tem personalidade e liderança, podendo ser útil para jogos “grandes”. Cruza bem e se vira razoavelmente na marcação. Jogo aéreo é frágil, assim como o posicionamento defensivo. Tem boa técnica, mas já viveu momentos melhores em termos de velocidade e mobilidade.


“Esse eu coloco aí por 1 millione. Ele tem mais um ano de contrato, os turcos estão loucos para se livrarem dele. Tem clube brasileiro querendo, ma se fechar o volante eu priorizo o negócio do lateral para vocês”

O Dirigente sorri. Futebol é algo fascinante. Porque esse lateral, nitidamente um contrapeso, terá muito mais acolhida na opinião pública. “Torcedor adora um medalhão”, diverte-se enqua
nto se jacta da sua própria habilidade. Com efeito, arruma os reforços pedidos por módicos 1 milhão de euros. Economizará seis milhões do orçamento original, vai sair como grande negociador, agradará as redes sociais (não sem certo trabalho, naturalmente) e, com isso, seguirá se “cacifando” para projetos futuros. Desde, é claro, que a bola continue entrando.

“Essa é a parte mais fácil”, filosofa enquanto se serve de um bom scotch.

 

Este é um texto de ficção. Qualquer semelhança com nomes e fatos reais terá sido mera coincidência.