Salve, Buteco! Primeiramente, tomemos cuidado com as generalizações. São perigosas e geralmente não conduzem a análises racionais e objetivas sobre qualquer assunto. Analisar o que é bom ou ruim, melhor ou pior, mais ou menos adequado é impossível, com um mínimo de qualidade, quando não se considera as variáveis. Tudo na vida é contexto. Por exemplo, todo treinador europeu é igual? Acredito que não, ou alguém acha que Carlo Ancelotti, Diego Simeone, Jurgen Klopp e Pep Guardiola possuem grandes semelhanças de estilo entre si?
Existe uma escola portuguesa de treinadores? Entendo que existe, tanto que, ao contrário do que ocorre no Brasil, os patrícios possuem um curso de formação muito bem estruturado há décadas. Porém, daí a dizer que todos os treinadores portugueses são iguais ou semelhantes em torno de um mesmo estilo de jogo seria como dizer que “japonês é tudo igual”, ou alguém acha que Abel Ferreira, Vítor Pereira e Paulo Sousa possuem perfis táticos parecidos? Quem pensa assim precisa se informar melhor, com urgência.
Jogo de posição funciona no Brasil? Quero crer que sim. Acredito inclusive que venha servindo muito bem ao Fortaleza e dá sinais promissores no Botafogo de Luís Castro. Então, por que o trabalho de Paulo Sousa não decola no Flamengo? Na minha visão, o ambiente não é propício. Historicamente, o Flamengo monta suas melhores equipes em torno de fortes referências individuais; e com o atual elenco, "multicampeão" até maio/2021, não é diferente. Para mim, não se trata falta de jogo coletivo e só individualidades, muito pelo contrário; é a diferença entre formar o coletivo adaptando-se às individualidades do elenco (conceito servindo a realidade prática) e o quanto as individualidades se descaracterizam como tais para servirem ao coletivo, dentro de um conceitual sistema de jogo (realidade prática adaptando-se ao conceito).
Então, jogo de posição não serve ao Flamengo? Confesso que acho muito difícil que sirva, mas seria exagero negar que eventualmente pode vir a servir, um dia. A questão é quem preside o Flamengo aceitar a improbabilidade de ocorrer com esse elenco, ainda mais com a mentalidade que existe no Departamento de Futebol, diretamente influenciada pelo perfil do vice-presidente da pasta. Para se tornar mais viável acontecer, no Flamengo, seria preciso mudar tudo, a começar pelo dirigente ou a sua mentalidade, passando também por trocas de funcionários do Departamento de Futebol e do Departamento Médico, e talvez de vários dos atletas. É mais do que evidente que a mentalidade não mudará por iniciativa das mesmas pessoas.
É importante que fique claro: muito embora ache que com um treinador europeu de outra filosofia seria (bem) menos difícil fazer esse elenco voltar a ser competitivo, ao mesmo tempo seria intelectualmente desonesto de minha parte negar que o problema pode se repetir com qualquer treinador, seja ele brasileiro, sul-americano ou europeu. Não adianta jogar tudo no colo da comissão técnica com uma mão e com a outra sabotar o trabalho com perda de conhecimento científico e troca de funcionários com qualificação inferior à própria estrutura tecnológica do clube, além de suas altas demandas de performance. Cuida-se de um problema que prejudicou Domènec, Ceni e Renato, e continuará a ser recorrente, com potencial para destruir futuros trabalhos, enquanto o presidente não fizer o que precisa ser feito.
Bem, mas voltando ao jogo de posição e ao Paulo Sousa, se eu acho que é improvável que o jogo se dê bem com esse elenco e no ambiente atual do Departamento de Futebol do Flamengo, ao mesmo tempo, ainda que indiretamente, admito que não é impossível, certo? Aqui entram fatores como a qualidade individual do treinador, suas decisões no plano prático e o tempo para implantar o trabalho. Aliás, não faltam exemplos, no exterior, de treinadores que demoraram de uma a duas temporadas para sedimentar uma filosofia de jogo e colher resultados, inclusive com outros conceitos táticos que, particularmente, considero mais transigentes.
Precisamos então de parâmetros objetivos para separar o joio do trigo, ou seja, que permitam distinguir um trabalho promissor, mas que precisa de tempo para trazer resultados, daquele que tende a não dar certo, e assim concluir em qual das duas situações o nosso atual treinador português se encaixa. Decidi, em razão disso, fazer uma breve comparação entre Paulo Sousa e os seus dois antecessores que adotam o conceito do jogo de posição (ou, no mínimo, o chamado ataque posicional, uma variante mais amena).
A grande vantagem dessa comparação, além dos pontos em comum decorrentes da filosofia de jogo, é que, da mesma forma que Paulo Sousa, ambos iniciaram o Campeonato Brasileiro nas temporadas de 2020 e 2021, e, quando de suas demissões, o Flamengo se encontrava vivo nas três principais competições que disputava – Campeonato Brasileiro, Copa Libertadores da América e Copa do Brasil.
Por conta disso, o ponto de recorte, em relação a Domè e Ceni, está nos respectivos momentos de demissão. Utilizando esse critério e adotando como fontes de pesquisa o blog do Cássio Zirpoli e o site Transfermarkt, cheguei aos seguintes dados de desempenho e posição nas três maiores competições:
Treinador |
Estadual |
Brasileiro |
Libertadores |
Copa do Brasil |
Domènec Torrent |
Não disputou |
3º/4º colocado¹ - 20j, 10v, 5e e 5d |
Classificado para as oitavas de final – 1º do grupo |
Classificado para as quartas de final |
Rogério Ceni |
Campeão |
8º colocado - 12j, 4v, 0e e 4d |
Classificado para as oitavas de final – 1º do grupo |
Classificado para as oitavas de final |
Paulo Sousa |
Vice-campeão |
15º colocado - 6j, 1v, 3e e 2d |
Virtualmente classificado em 1º do grupo |
Classificado para as oitavas de final |
De 2020 para cá, ao menos no Campeonato Brasileiro, o desempenho dos treinadores posicionais do Flamengo só piora. Será que isso significa que Domè é melhor do que Ceni, que, por sua vez, é melhor do que Paulo Sousa? Na minha opinião, não, ou, pelo menos, não tenho coragem de cravar que seja o caso. O que vejo diante dos meus olhos, como fator preponderante, é um enorme desgaste do elenco com essa filosofia de jogo e de trabalho, agravado pelo tempo cada vez maior desde o encerramento do ciclo mais vitorioso do clube desde a “Geração Zico”, e, ainda, pelo ano de Copa do Mundo, com ambições de convocáveis colidindo com determinadas funções táticas que lhes foram atribuídas.
Pode ser citado, ainda, o fator qualificação e aumento da concorrência; contudo, os dados se tornam no mínimo instigantes quando consideramos que, intermediando Domè e Ceni, antes de Paulo Sousa, houve o período Renato Portaluppi. Afinal de contas, treinador brasileiro, “não estudioso”, em tese seria necessariamente pior ou menos preparado, certo? Vejamos então o desempenho do Renight:
Treinador |
Estadual |
Brasileiro |
Libertadores |
Copa do Brasil |
Renato Portaluppi |
Não disputou |
Vice-campeão 25j, 15v, 7e e 3d |
Vice-campeão |
Eliminado na semifinal |
Tenho asco de posturas como a adotada nos dois jogos pelo Brasileiro contra o Grêmio e a de não ter treinado o time na terça-feira que antecedeu a final da Libertadores. Renato tem conceitos e atitudes que abomino em um treinador de futebol. Contudo, os fatos e os números não mentem, Amigos, independentemente do contexto em que se analise o seu trabalho à frente do Flamengo. E essa comparação não favorece Paulo Sousa, por mais que se considere atenuantes em seu favor.
Jogadores são mimados e podem ter tentado derrubar o treinador? O amadorismo da gestão do futebol atrapalha o trabalho, como fez com os antecessores? Minha resposta é categoricamente positiva, para ambas as perguntas, o que mostra o tamanho do desafio do clube, que precisa reformular profundamente o seu Departamento de Futebol, com ou sem Paulo Sousa à frente do time.
Todavia, falando em contexto, Paulo Sousa teve uma pré-temporada como nenhum outro treinador do Flamengo e, mesmo considerando os desfalques por contusões, também comuns nos trabalhos dos antecessores, não podemos esquecer que o português ainda não enfrentou o drama das convocações para a Seleção Brasileira, até porque nesta última nenhum jogador do Flamengo foi convocado, mas só Arrascaeta, pela Celeste Olímpica.
O certo é que, por qualquer ângulo que se analise, os números de Paulo Sousa são bem piores do que os dos antecessores, inclusive os mais próximos em conceito, com basicamente o mesmo elenco. Logo, é mais do que natural temer pelo desfecho da temporada do Flamengo e também questionar se é viável pensar em sua permanência a longo prazo no clube.
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Até aqui, esse texto foi escrito antes² da partida entre Ceará x Flamengo.
Deixo para vocês comentarem o frustrante empate.
Bom dia e SRN a tod@s.
¹ A indefinição entre o terceiro e quarto lugares no Brasileiro/2020 se deve ao fato de que, no momento da demissão de Domè, o São Paulo tinha três jogos a menos e estava há três pontos do Flamengo, que ocupava a terceira posição da tabela. Com o nivelamento do número de jogos, a posição matemática do Flamengo passou a ser a quarta, de acordo com o Transfermarkt.
² Foi computado o resultado Ceará 2x2 Flamengo, assim como os demais jogos da rodada deste sábado na estatística de Paulo Sousa no Campeonato Brasileiro/2022.