A gota d’água.
A derrota para o Bangu (1-2),
numa gelada noite de terça-feira no Maracanã, faz com que os pouco mais de 7
mil torcedores que se aventuraram a testar a paciência explodam em um grito
uníssono, implacável e indiscutível. “Fora, Yustrich!”
Com efeito, o rubro-negro oferece
à sua abnegada Nação mais uma jornada de futebol árido e miserável,
transpirando correria, brutalidade e mais nada. Um futebol triste, carrancudo,
soturno, completamente dissociado daquilo que o Flamengo representa. É o estilo
Yustrich, em que o rendimento físico deve suplantar qualquer sopro esquálido de
individualidade. E o chute de Dionísio, o Bode Atômico, que na cara do gol
desfere a bola em direção à bandeirinha de escanteio, é a síntese desse
pavoroso espetáculo. O Bangu, penúltimo colocado do Turno Final do Campeonato
Carioca, abre dois gols com inadmissível facilidade. O gol de “honra” de
Zanata, já nos descontos e debaixo de vaia, não aplaca a fúria de uma torcida
que anseia por mudanças. Clama por um time.
A Diretoria entende o recado da
“voz rouca” das arquibancadas. Após uma tensa reunião, Yustrich é comunicado
que não dirige mais o Flamengo. É o fim de uma passagem de um ano e quatro
meses, onde acumulou confusões, cismou com jogadores que agora fazem falta
(casos de Brito e Doval) e, de concreto, conquistou apenas uma Taça Guanabara.
Se é verdade que o elenco disponível não é dos mais qualificados, também é
indiscutível que o Flamengo, sob seu comando, já não conseguia apresentar um
desempenho sequer próximo do medíocre.
Yustrich, irritado por se julgar
“bode expiatório”, sai enfurecido da reunião. Descontrolado, agride um
jornalista e quase atropela um fotógrafo que tenta abordá-lo. E vai embora
levando sua truculência e seus conceitos quase militares de jogo coletivo.
A Diretoria age rápido e, para o
lugar de Yustrich, contrata um velho conhecido. O paraguaio Fleitas Solich está
de volta.
* * *
“É campeão!”
A vitória por 3-2 sobre o
perigoso e “emergente” Olaria, terceiro colocado, num jogo emocionante, faz a
torcida do Botafogo soltar de vez o grito que parecia ainda latente, tímido.
Após a vitória, o alvinegro abre 4 pontos de vantagem sobre o Fluminense,
restando 6 pontos a disputar. O título carioca de 1971 irá coroar uma campanha
praticamente perfeita de uma equipe coalhada de astros como Paulo César Caju,
Carlos Alberto Torres, Brito, Jairzinho, e coadjuvantes de qualidade, casos de
Ubirajara Mota, Paulo Henrique, Nilson Dias e Zequinha. Nem o mais renitente e
pessimista botafogo crê que o time, invicto e liderando a competição de ponta a
ponta, deixará de conquistar a taça.
E essa confiança é derramada para
dentro do plantel. O meia Nei Conceição não mede palavras: “Claro que já me
considero campeão, pra que fingir? O que vem aí é só formalidade”. Jairzinho,
lesionado, parece aborrecido: “Vai ser uma pena estar fora da volta olímpica.
Estou tentando me recuperar”. Mesmo a Diretoria demonstra mandar a cautela às
favas. Cogita convidar uma equipe estrangeira para a festa das faixas, mas
parece mais propensa a aceitar uma proposta do Bahia para um amistoso na Fonte
Nova, de olho na gorda arrecadação. O Botafogo já é o campeão de 1971 na
cabeça, no corpo e no espírito de todo alvinegro.
O próximo adversário, o Flamengo,
está longe de inspirar receio.
Para surpresa de ninguém, o
Flamengo, livre das amarras de Yustrich, parece outra equipe. Vence, com
atuações aceitáveis, Bonsucesso (3-0), América (1-0) e Vasco (1-0), quebrando
um tabu de quase um ano sem ganhar um clássico. E a equipe, nesses três jogos,
ainda é dirigida pelo interino Newton Canegal, uma vez que Solich ainda precisa
se desvencilhar de alguns compromissos pessoais. A estreia do Feiticeiro será
no jogo seguinte, contra o Botafogo.
Solich assiste ao Flamengo nas
tribunas. Demonstra certa preocupação com o nível de uma equipe em que lutam
nomes como Tinteiro, Onça, Fio e Buião. A pálida reserva de talento está no
zagueiro/volante Reyes, no lateral Rodrigues Neto, no meia Zanata e, com boa
vontade, no lateral Murilo e no atacante Arílson. É pouco. E Don Fleitas logo
percebe isso.
“Eles têm um time certinho. São
habilidosos, organizados e é evidente que detêm o favoritismo, afinal estão
invictos. Será muito difícil derrotá-los”, pondera, manhoso, o experiente
Solich, sem deixar de acrescentar, piscando um olho e sorrindo, “mas não
impossível...”
Fleitas sabe que a diferença
entre as equipes é abissal. O adversário é mais qualificado e está motivado e
confiante na conquista de um título cada vez mais próximo. Além do mais, vencer
o Flamengo dispensa estímulo adicional para um botafoguense. Jornalistas são
quase unânimes em apontar uma vitória indiscutível do Botafogo, talvez até por
uma margem ampla. É nessa supremacia de prognóstico que Solich aposta para
tentar uma improvável surpresa.
E, de certa forma, acontece o que
todos esperavam.
Sim. Os quase 40 mil espectadores
que vão ao Maracanã presenciam uma equipe muito superior em campo, ocupando
todos os espaços, brigando com fome por todas as bolas, mas, principalmente,
desenvolvendo um jogo coletivo extremamente inteligente, com deslocamentos
insinuantes capazes de desnortear a defesa adversária. Um futebol vertical,
cortante, intenso e pleno de arte em sua objetividade. Um time confiante,
impositivo, incapaz de conceder o menor espaço ao rival que, sem forças, acaba
subjugado até com facilidade. E, no fim, o placar de 2-0 se mostra tímido, tal
a disparidade de forças apresentada no gramado. Ou seja, um espetáculo que se
desenvolve exatamente como anunciado ao longo da semana pelos jornais.
Ressalvando-se apenas um detalhe: é o Flamengo que vence.
Grata com os dois gols de Buião
e, principalmente, com a consistência da atuação de um nível que não se via um
onze flamengo apresentar há anos, impondo-se na força de sua camisa e de sua
grandeza, a torcida rapidamente elege seu herói e canta, agradecida, o nome do
Feiticeiro Solich. Que, ao contrário do egocêntrico antecessor, prefere a
discrição, fazendo questão de exaltar a dedicação de seus comandados.
Carismático, o veterano e vitorioso treinador ainda pede para cumprimentar os
garotos do time de juniores, que, na preliminar, também derrotara o Botafogo
(1-0), quebrando longa invencibilidade do rival. Solich, conhecido por gostar
de lançar jovens da base (aliás, fez isso no clássico, utilizando o garoto
Chiquinho, destaque da partida), saúda Cantarele, Rondinelli, Vanderlei, vai saudando
um por um. Até se deter no mais magrinho de todos, um frangote de cabelo claro,
goleador do time e autor do gol da vitória. Olha fixamente em seus olhos,
deixando tácito um recado rapidamente assimilado: “prepare-se”.
A derrota para o Flamengo dá
início a uma cadeia de acontecimentos que redunda em um dos mais inacreditáveis
desfechos de um Campeonato Carioca. O Botafogo empata com o América (1-1) e, na
última rodada, decide o título com um Fluminense que vence seus dois jogos e
reduz a diferença a apenas um ponto. De qualquer forma, o empate ainda é do
alvinegro. Que vai segurando o título até faltarem apenas dois minutos, quando,
numa bola cruzada, o lateral tricolor Marco Antonio colide com o goleiro
Ubirajara e, na sobra, o atacante Lula empurra para as redes. 1-0. Os botafogos
gritam falta no goleiro, o lance é, no mínimo, controverso, mas o gol é
validado. O Fluminense é campeão. E Jairzinho não dará sua volta olímpica.
O Flamengo termina em quarto
lugar. Um jogador emenda: “Se Fleitas tivesse chegado cinco rodadas antes,
seríamos os campeões”.
* * *
Encerrado o Carioca, a
expectativa repousa no início do Campeonato Brasileiro. Mas antes ainda há
tempo para a disputa da Taça Guanabara, torneio curto com apenas seis equipes
(Flamengo, Fluminense, Vasco, Botafogo, América e Bangu). E não demora para as
limitações do plantel rubro-negro logo se fazerem sentir.
Com efeito, após um início ruim
no torneio, o Flamengo arranca, a duras penas, um 0-0 contra um desmotivado
América, que manda a campo um time misto. O melhor do jogo é o goleiro
Ubirajara Alcântara, que faz grandes defesas e impede uma derrota vergonhosa. A
péssima atuação acende o alerta na Diretoria que, mesmo diante dos problemas
financeiros do clube, parte em busca de reforços.
Enquanto isso, Solich começa a
preparar a utilização de alguns jovens.
Um dos primeiros reforços é Zé
Eduardo, meia-atacante vindo do Bahia. O jogador se apresenta e se coloca à
disposição de Solich, mas acaba de fora do coletivo-apronto para o jogo contra
o Vasco por opção do treinador, que quer aproveitá-lo com calma. Na verdade,
Solich está pensando em fazer algumas experiências no clássico, já com vistas
ao Brasileiro, que está à porta.
E o coletivo acaba se
transformando em um momento histórico. Não pela apresentação da equipe titular,
mas pelo desempenho exuberante dos reservas, comandados por aquele garoto
magrinho dos juniores, o mesmo que havia liquidado o Botafogo na preliminar do
jogo do Carioca. O jovem aloirado faz o diabo com a bola, mete caneta, bota
atacante na cara do gol com bola de primeira, grita, dá esporro, traz toque de
bola e técnica, dá dribles desconcertantes e faz um belo gol de cabeça ao,
mesmo franzino, saltar mais que a dupla de zaga titular e testar com violência
no canto. Os reservas só vencem pelo placar magro de 4-3 porque Solich manda o
garoto ir pro time titular após pouco mais da metade do treino, quando o
estrago já estava feito.
Os efusivos aplausos e gritos de
“bravo” convencem Solich, que já vinha amadurecendo a ideia de lançar o jovem, de
cujo talento a Gávea inteira e os mais atentos à cena futebolística do Rio de
Janeiro já vinham falando com ênfase. O Bruxo chama o garoto, novamente o encara
fixamente e, dessa vez, o previne: “Você vai jogar amanhã”.
Ninguém ainda sabe. Mas este será
o preâmbulo de uma Era.