Salve, Buteco! Existem entre nós os mais pessimistas e os otimistas, e dentre eles os que oscilam não necessariamente entre extremos, mas entre o ceticismo e a confiança, a depender do contexto. Contudo, seja em qual categoria a torcedora ou o torcedor que ler esse texto se enquadrar, tenho certeza de que, até ontem, provavelmente achava que esse grupo "talvez reagisse" ou "jogasse como jogou contra o Atlético em Cuiabá". Um mínimo de esperança ainda existia.
Só que partida de sábado foi a pior que vi o Flamengo disputar em muito tempo. Muito tempo mesmo. A título de parâmetro, o que me vem à cabeça são os períodos de 2002/2005 e 2012. Nem o Flamengo de Domènec foi tão desorganizado, nem mesmo nas derrotas para Del Valle (0x5 em Quito), São Paulo (1x4 Maracanã) e Atlético (0x4 no Maracanã). É que, apesar das goeladas, via-se um padrão tático, ainda que um esboço mal traçado.
Sábado o Flamengo de Paulo Sousa foi pior do que o o próprio Flamengo de Paulo Sousa de todas as partidas anteriores. Pura terra arrasada, sinal do esgotamento completo da relação entre elenco e treinador. A nossa sorte foi que do outro lado estava o Fluminense de Abel Braga, time filosoficamente incapaz de golear alguém, o que limitou o vexame ao Flamengo a "apenas" se ver envolvido e humilhado, física e taticamente, em organização, força e atitude, por um onze do rival comandado pelo "maestro" Paulo Henrique Ganso. Não que isso seja pouca coisa dentro da categoria vexame. É que não foi uma goelada, e sim algo um pouco menos humilhante.
Se ainda havia algum otimista torcendo para que o time de 2019 ressuscitasse, deixou de ter motivos para ter esperanças ou justificativas para o autoengano.
2019 é passado. Tempo que se foi.
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Vou repetir o que escrevi em um comentário há cerca de 10 dias atrás. Montagem de elenco tem tudo a ver com as janelas de transferências internacionais, assim entendidas como os períodos de tempo durante os quais, dentro de uma temporada, é possível aos clubes clubes contratarem jogadores presos a contratos vigentes com clubes de países e ligas estrangeiras. Fora dessas janelas, só é possível contratar jogadores que estão no estrangeiro acaso ostentem a condição de "free agent" - designação dada a qualquer atleta que esteja sem contrato em vigor com um clube de futebol profissional.
A FIFA trabalha com duas janelas de transferências internacionais: uma principal, mais longa, e uma segunda, mais curta, secundária. Cada país escolhe quando ocorrerá as suas. No Brasil, a CBF segue a lógica do calendário brasileiro – janela maior no início da temporada e a menor no início do segundo semestre. Os países europeus fazem o mesmo, porém lá a temporada começa no meio do ano e, em razão disso, a janela curta deles é a de janeiro. Na atual temporada (2022), segundo o FIFA TMS, a maior janela de transferências internacionais brasileira foi aberta no dia 19 de janeiro e se fechará no dia 12 de abril¹, ao passo que a segunda janela se abrirá aos 18 de julho e se fechará no dia 15 de agosto.
Disso resulta o seguinte problema, que se repete em todas as temporadas: a primeira janela brasileira, mais longa, coincide com a reta final da temporada europeia. Logo, trazer alguém da Europa nessa primeira janela brasileira é mais difícil porque significa desfalcar o clube europeu no momento em que está definindo títulos nacionais, vaga nas competições da UEFA (Champions ou Europa League) ou até mesmo a fuga do rebaixamento, conforme o caso. Percebam que, por exemplo, foi isso que impediu o Sporting Braga de liberar o treinador Carlos Carvalhal para um clube brasileiro nesse início de temporada brasileira. O mesmo vale para atletas.
Desse modo, é fácil perceber que esse "dilema" costuma ser um entrave para contratações na primeira janela brasileira. Contudo, o entrave passa a ser uma muleta quando o Flamengo não mapeia os mercados brasileiro e latino-americano para encontrar boas opções que possam também render bons negócios mais à frente. E por que não o faz? Perguntem ao vice-presidente de futebol Marcos Braz, titular da pasta.
O problema é complexo porque se soma a outros fatores hostis a um processo constante de renovação e depuração do elenco do Flamengo, tais como a cultura do clube de se apegar a atletas e generalizar sem critério a condição de "ídolo". E como se não bastasse, contratos, como é notório, formalizam juridicamente direitos e obrigações bilaterais. Logo, rescisões unilaterais necessariamente oneram o clube e retiram recursos que poderiam ser aplicados em investimentos para reforçar o elenco, o que, como visto, já não é algo exatamente simples no período "interjanelas".
Portanto, tampouco é simples decidir quem fica, quem sai e quem chega, até porque nessa equação também existe o fator temporal, o famoso "quando", além do mais importante "quem" - quem comandará esse processo de depuração. Seria a mesma pessoa que conduziu o Departamento de Futebol até esse decadente momento, o vice-presidente de futebol Marcos Braz? Por mais que se possa imputar ao presidente Rodolfo Landim excesso e omissão na delegação de poderes ao seu vice de futebol, até por isso é inegável que as principais decisões são tomadas por Marcos Braz.
Alguém enxerga autocrítica no mandatário? Quais são as nossas expectativas possíveis, diante desse cenário?
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O Flamengo de Paulo Sousa, até aqui, limitou-se a boas apresentações contra Nova Iguaçu, Atlético, Botafogo e Bangu. Filtrando minimamente, sobra a sequência Atlético e Botafogo, e mesmo assim há fundadas controvérsias quanto ao momento do coirmão carioca, ainda sob a batuta do professor Lúcio Flávio e sem reforços, servir como bom parâmetro. O certo é que, de lá para cá, parece que Mister Paulo perdeu o fio no trato com o grupo.
Não foi por falta de aviso.
Após o primeiro Fla-Flu do ano, escrevi que Paulo Sousa tinha duas opções: "melhorar muito o time ou não emplacar abril no Flamengo. E nesse caso, a volta de Jesus seria triunfal." Passei bem próximo de acertar, concordam? Consta que Mister Paulo perguntou a um atleta, no meio de um bate-boca logo após o jogo de sábado, se queriam que ele entregasse o cargo. Além disso, também consta que Jorge Jesus vem passar a Páscoa no Rio de Janeiro.
Meu outro alerta a Mister Paulo foi naquela "carta-bilhete". Permitam-me transcrever dois trechos:
Chegou então o momento de falar do mais difícil. Sabemos que o jogo de posição é, para além de uma ferramenta tática excelente, uma filosofia (que considero elevada) de desprendimento do individual em prol do coletivo. Talvez por isso ainda seja pouco comum entre os gigantes do futebol mundial. Pode colidir com essa cultura do craque, da estrela, do ídolo da torcida e fonte de receitas publicitárias do clube, do grande protagonismo individual e também do jogo intuitivo, percebe? Acredito que nesse ponto entra a habilidade do professor, de modo que o processo seja de assimilação e persuasão, e não de imposição. Isso pode levar tempo, variando de acordo com a complexidade do que se deseja implantar. Só que o tempo não para, Mister Paulo, ainda mais no futebol brasileiro, e no próximo domingo já tem decisão.
(...)
Desejo-lhe toda sorte do mundo, Mister Paulo, não só porque o seu sucesso será a nossa felicidade, mas também porque a sua abertura para diferentes culturas é tudo o que o mundo de hoje precisa para ser menos bélico e mais convergente. Desculpe por qualquer coisa no texto da semana passada e fique com Deus, com a proteção de São Judas Tadeu.
Os bons momentos contra os grandes rivais alvinegros foram uma exceção nesses três meses e chega um momento em que nem com a ajuda do Padroeiro as coisas se mantém no rumo. Afinal de contas, as pessoas também precisam se ajudar. A entrada de Diego Ribas naquele segundo tempo contra o Atlético que o diga...
Em nível de desgaste, o trabalho de Paulo Sousa me lembra os de Paulo César Carpegiani (última passagem) e de Muricy Ramalho, treinadores que pereceram após fracassos marcantes no Campeonato Estadual, sendo superados por adversários teoricamente bem mais fracos².
Por mais que tenha passado a nutrir repulsa por grande parte do elenco atual, não posso deixar de reconhecer que Mister Paulo chegou com a missão de resolver o problema e não de aumentá-lo. Discernimento e noção de timing para insistir em determinadas ideias é fundamental. Agora pode ser tarde demais.
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Em resumo, faltam oito dias para o fechamento da primeira janela, o elenco precisa de reformulação (dispensas e reforços), a segunda janela só começará na segunda quinzena de julho, o vice-presidente de futebol perdeu o controle sobre a situação e, como se não bastasse, o treinador dá sinais de ter se tornado um dead man walking.
Ah, e não nos esqueçamos, amanhã tem estreia na Libertadores, sem o Arrascaeta, e o Sporting Cristal vem de goleada aplicada sobre o Universidad San Martín, na última sexta-feira (4x1). Em seguida, no próximo sábado tem Atlético/GO, campeão goiano, em Goiânia, na estreia do time no Campeonato Brasileiro.
O Flamengo precisa sobreviver até a janela de julho/agosto.
Por onde começar e o que fazer?
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A palavra está com vocês.
Bom dia e SRN a tod@s.
1 Quem eventualmente chegar agora não disputará a Fase de Grupos da Libertadores, mas poderá ser inscrito nas oitavas de final e, até lá, certamente ajudará na rodagem do elenco no Campeonato Brasileiro e na Copa do Brasil.
2 Muricy Ramalho, que também tinha propósitos inovadores, e alegado estudo no Barcelona, ainda dirigiu o Flamengo contra o Sport Recife, em Volta Redonda, na estreia pelo Campeonato Brasileiro de 2016. Na ocasião, o time mostrou alguma evolução, especialmente defensiva. Porém, Muricy pediu demissão em seguida por questões de saúde. Zé Ricardo chegou, reforços vieram, dentre eles Diego Ribas, e o resto é História, que, aliás, está sempre a se renovar, ainda que algumas vezes se repetindo.