Jogando no sacrifício.
Lico ainda não sabe. Mas vai
começar seu inferno.
Os dias passam, a virilha
melhora, o joelho não. A dorzinha vira inchaço, o local intumesce e Lico mal
consegue caminhar. O tratamento é convencional, bolsas de água quente,
musculação, gelo. É vetado da viagem para a Bolívia, pela Libertadores. Também
perde os primeiros jogos da fase seguinte do Brasileiro. O joelho segue sem
reagir, nada parece funcionar. Sem alternativa, o clube decide: vai ter que
operar.
O Flamengo aproveita a
oportunidade e envia um médico de seu Departamento, com o objetivo de trocar
informações, apreender a técnica e adquirir “know-how”. A ideia é dispor de
estrutura para, futuramente, realizar operações do tipo no Brasil, evitando
problemas como a dificuldade no agendamento, os altos custos e inclusive o
melindre da classe médica do país.
A operação de Lico é
bem-sucedida. O jogador tem seus meniscos externos removidos. Três meses
depois, está pronto para entrar em campo novamente.
Até que vem o jogo com o
Botafogo.
A fatídica derrota (0-3) derruba
Treinador, Presidente e implode o ambiente interno da Gávea. Mas, como se não
bastassem os inúmeros problemas de uma instituição em frangalhos, as incertezas
e a estupefação com o fato de um time multicampeão, capaz de enfrentar qualquer
equipe do planeta (semanas antes, fizera ótimo papel em um torneio na Itália,
mesmo sem Zico), agora virar saco de pancadas, incapaz de derrotar times
inexpressivos, Lico, atônito, sente novamente a dor fina, sibilante, traiçoeira,
que brota de seu joelho. Não o operado, agora é o direito. De novo, não se
lembra de nada anormal no jogo, talvez pelo calor do momento. Alguma entrada
mais forte talvez, ou um movimento indevido. Questão é que a dor está aí, mais
uma vez. Vai começar tudo de novo?
Entretanto, no início do segundo
treinamento, enquanto aquece, sente o dolorido assobio que já lhe é familiar.
Chama o médico, que o examina e imediatamente o retira da atividade. Passa um
pouco, lá está o joelho inchado qual uma bola. O Departamento Médico do
Flamengo admite: serão necessários exames mais aprofundados.
E lá se vai Lico para os Estados
Unidos.
No mesmo hospital da primeira
cirurgia, o exame acusa: nada de tendinite. O joelho está com ligamentos
rompidos, cartilagens lesionadas e partes dos meniscos comprometidas. Para
acelerar a recuperação, a remoção dos meniscos é apenas parcial, sendo
eliminado somente o tecido que está danificado.
Passam-se apenas 32 dias. De
forma inacreditável, Lico volta a treinar com bola, após um período de recuperação
atravessado com inabalável disciplina, fé e determinação. Está à disposição do
treinador Cláudio Garcia para os jogos finais do Estadual. Retorna no
jogo-extra que decide a Taça Rio contra o Bangu. Entra aos 20’ da segunda etapa
e ajuda a segurar a bola e a vitória por 1-0 que coloca o Flamengo nas Finais.
O campeonato não termina da melhor forma, mas ao menos Lico está pronto para a
temporada seguinte, após esse 1983 tão conturbado e tumultuado.
Inicia bem o ano de 1984. A
contratação do ponta João Paulo, destaque do Santos, não parece abalar-lhe as
forças. Lico começa na reserva, mas não demora a barrar o forasteiro, com boas
atuações e gols, como nos memoráveis 4-1 sobre o Santos, pela Libertadores.
Segue atuando com frequência, até que o Flamengo viaja para a Colômbia, para
enfrentar América de Cali e Junior Barranquilla pela Libertadores, no final de
março.
O jogo em Cali é catimbado e
violento. Nunes é expulso, após revidar uma agressão. Leandro apanha tanto que
acaba substituído. E é o mesmo destino de Lico, que precisa sair após uma
entrada dura no joelho direito, o mesmo recentemente operado.
O golpe no joelho assusta Lico,
que com alívio percebe reunir condições de jogo para a partida seguinte, contra
o Junior. Atua normalmente e tem atuação elogiada, a ponto da crônica criticar
sua substituição no fim do jogo. Parece ter sido só um susto.
Mas, no dia seguinte, o joelho volta
a inchar.
Volta no returno da Terceira Fase
do Brasileiro, num 0-0 contra o América. Faz bom jogo, chegando a sofrer um
pênalti, que é desperdiçado por Tita. No descanso, “ouve” o já contumaz uivo
fininho, que lhe invade as entranhas.
Segue-se uma rotina enjoativa e
torturante. O Flamengo enfrenta uma sequência de jogos decisivos, reta final do
Brasileiro, Semifinais da Libertadores. E lá está Lico, infiltrando, atuando,
inchando, descansando, pondo gelo, urrando de dor, desinchando, infiltrando,
atuando, inchando, doendo. Sofrendo.
A agonia vai até o início da Taça
Guanabara. Após uma goleada sobre o Olaria no Maracanã (4-0), o joelho de Lico,
como usual, torna a inchar. Farto, o jogador resolve acabar de vez com isso.
Cogita parar de jogar. Mas, resignado, aceita mais uma pausa para a busca da “solução
definitiva”.
E, num intervalo de um ano e
meio, Lico opera o joelho pela terceira vez. A segunda no direito.
A lesão é surpreendentemente
simples. A pancada em Cali havia feito fragmentos dos meniscos remanescentes se
soltarem, causando dores e inflamação. Basta, portanto, remover o restante desses
meniscos e o problema se resolve.
No entanto, desta vez a artroscopia
é realizada no Brasil. O melhor profissional em atividade para esse tipo de
intervenção ainda novo no país, é o médico do Fluminense e da Seleção
Brasileira. Mas o Flamengo prestigia seu corpo médico, que julga apto para o
procedimento, haja vista o conhecimento adquirido no exterior. Assim, em
setembro de 1984, a cirurgia é levada a termo. Lico terá o restante do ano para
se recuperar.
O Flamengo vai se preparando para
a estreia no Brasileiro de 1985, contra o Atlético/MG, no Mineirão. Zagalo,
apesar dos novos reforços, pretende utilizar Lico. O jogador passara as férias
treinando e se condicionando. A recompensa vem na sua escalação como titular no
coletivo que definirá o time que irá a campo domingo. Lico treina forte, treina
duro, bota o pé e é destaque. Acaba o treino. Ao caminhar para o vestiário, o
duro, ferino e sibilino golpe. O joelho direito acena-lhe com a sua já
conhecida voz aguda e esganiçada. E se abre num edematoso globo da morte.
Lico está fora do jogo.
É o sinal derradeiro. Após
procurar vários médicos, no Flamengo e em outros clubes, ouve de todos eles a
mesma palavra, embrulhada em termos técnicos pomposos, expressões de efeito,
sutis eufemismos que, no fundo, traduzem rigorosamente o mesmo significado. “Acabou”.
E assim, aos 33 anos, Lico
encerra sua carreira de jogador de futebol.