A agonia está no fim.
Nove longos anos sem desfrutar da
mais prazerosa das sensações que podem acometer quem vive e sente futebol: o
urro de campeão.
Nove longos anos desde que a
testada do febril Valido estufou as redes vascaínas em uma quente tarde dominical
de outubro, na Gávea. Depois da taça do tri, a cidade viu emergir o melhor time
montado pelo Vasco em sua história, e o Flamengo, vivendo um momento de
transição de gerações, não conseguiu impedir a era do Expresso da Vitória do
rival.
Mas isso está perto de acabar.
O Campeonato de 1953 já se
arrasta desde julho. Doze clubes jogando entre si, naquilo que o regulamento
chama de “primeiro e segundo turnos”, sem interrupção da contagem de pontos. O
vencedor dessa fase avança para a final. Os 6 melhores se qualificam para a
disputa de um “terceiro turno”, cujo vencedor será o segundo finalista.
Daí que já estamos em janeiro, na
penúltima rodada deste terceiro turno.
A fase inicial, dos dois
primeiros turnos, é vencida pelo Flamengo, após renhida disputa com Fluminense
e Botafogo. O rubro-negro, na última rodada, vence de forma sensacional o
Fla-Flu por 2-1 e ultrapassa o tricolor na tabela. Termina com 36 pontos,
contra 35 dos fluminenses e alvinegros. O Flamengo já está, portanto, na Final.
É um campeonato muito
interessante e animado, apesar de longo. O Vasco, atual campeão, ainda possui
na sua base vários remanescentes do Expresso da Vitória, embora a idade já
comece a pesar para alguns. Nomes como o atacante Vavá são um aceno de
renovação. O Fluminense conta com seu “timinho”, forma de se referir a uma
equipe de poucos craques, mas muito competitiva, liderada por Didi e uma espinha
dorsal onde se destacam Castilho, Pinheiro e Telê, entre outros. O Botafogo
começa a montar uma equipe qualificada, livrando-se do controverso legado de
Heleno. Um jovem chama a atenção já na primeira rodada, em sua estreia contra o
Bonsucesso, marcando três gols. Alguns o chamam “Gualicho”, mas logo se entende
que deve ser nomeado Garrincha.
O Flamengo, por sua vez, aposta
em uma mudança de paradigma. Farta da mesmice oferecida por treinadores ainda
presos a esquemas que remetem ao obsoleto “WM” e suas variações, a Diretoria rubro-negra
insiste em tentar novamente um treinador estrangeiro. Alguns dirigentes
ponderam, lembrando a traumática experiência com o húngaro Dori Krueschner,
anos antes, e muitos sugerem que, se é para contratar um “gringo”, que se traga
o uruguaio Ondino Vieira, já ambientado com as idiossincrasias do futebol
pátrio. Mas a ideia é ousar. O alvo é o paraguaio Fleitas Solich, que assombrou
o continente ao conquistar, de forma incontestável, o Campeonato Sul-Americano
com a Seleção do Paraguai no início do ano, em Lima.
Após certo cortejo e rápidas
tratativas, Don Fleitas aquiesce e assina contrato com o Flamengo. Ali começa a
se definir o destino do Campeonato. E de toda uma época.
Não há surpresas entre os
classificados para o Terceiro Turno. A Flamengo, Fluminense, Botafogo e Vasco
se juntam o Bangu de Zizinho e o América.
* * *
Domingo, 10 de janeiro de 1954. O
jogo desta tarde irá sinalizar o desfecho da quarta e penúltima rodada do
Terceiro Turno do Campeonato Carioca de 1953. Quer o destino que se enfrentem
justamente as duas únicas equipes que ainda reúnem chances de conquistar o
título. Com efeito, após o contundente 3-1 aplicado pelo Bangu no Fluminense,
que eliminou o tricolor, apenas os dois adversários de hoje ainda podem gritar
“é campeão”.
Flamengo e Vasco.
Embalado pela emocionante
conquista da vaga para a Final, o Flamengo atropela seus adversários neste
turno. Em três jogos, derrota Fluminense (2-1), América e Bangu (2-0 cada).
Lidera também este turno, com 6 pontos. Se conseguir vencer o Terceiro Turno,
torna-se campeão antecipado sem a necessidade de Final, já que ganhou também a
fase inicial.
Ao Vasco, vice-líder com quatro
pontos, resta vencer o clássico de hoje, igualar-se ao rubro-negro e, na última
rodada, tomar a frente e ganhar o turno. Para aí, tornar a medir forças com o
Flamengo na Final.
Ou seja, simplificando as coisas:
o Flamengo, vencendo, conquista o Carioca por antecipação. O Vasco, ganhando,
mantém chances de ganhar o Terceiro Turno.
* * *
16:15. O árbitro inglês Mr.
Harties trila o apito. Tem início o espetáculo.
Desde o início, o Flamengo toma a
iniciativa e as rédeas da partida. Desenvolve seu jogo vertical, veloz, de
deslocamentos rápidos e incessante busca por finalizações de qualquer lugar do
campo. Fleitas Solich costuma dizer que o meio-campo é local “de passagem” da
bola, não “de retenção”. E seu time, agora muito bem treinado após meses de
preparação, reflete à risca esse pensamento. E, com ótimo preparo físico para
suportar o calor escaldante (também resultado dos métodos de Solich), o
Flamengo amassa e imprensa o Vasco para dentro do seu campo. O primeiro gol
parece mera formalidade.
O Vasco não respira, não joga,
não age. Esmagado por um Maracanã que urra pelo fim de uma amarga era, luta
arduamente por sua sobrevivência, enquanto o adversário desfere
sistematicamente petardos e arremates contra o gol de Oswaldo. O goleiro
vascaíno já começa a se destacar.
31 minutos. Oswaldo espalma mais
um forte chute adversário, mas a bola vai aos pés de Índio que, oportunista,
não perdoa. Flamengo 2-0.
No segundo tempo o rubro-negro,
saciado, altera a rotação. Passa a rodar a bola com malícia e sensualidade. Faz
seu torcedor cantar feliz as memórias da infância. Promove quarenta e cinco
minutos de um bonito festival de cantigas de roda e bailinho, onde o Vasco
viceja como convidado de honra. Mas há um método nessa indolência. Girando a
esfera pra lá e pra cá, cansa o adversário. Sabe que, com um a menos, três gols
no coco e sob um sol escaldante, o Vasco não terá pernas para reagir.
Mal se sabe que é apenas o início
da trajetória de um time que marcará história, sendo lembrado como um dos
melhores que apareceram nos gramados cariocas e brasileiros. Um time cuja forma
de jogar e de treinar se espraiará para além das fronteiras da Gávea.
O Rolo Compressor.