Dois anos e pouquinho.
Dois anos e pouco já faz que o
Flamengo ganhou o maior título da sua história, coroando uma sequência
antológica de conquistas em um curto prazo de tempo. Desde então, muita coisa
mudou, outras taças vieram, algumas derrotas também. Como é próprio do futebol,
cenários foram e voltaram ao sabor dos ventos, cuja direção nem sempre é fácil
prever.
Ganhar o Estadual, o Brasileiro,
a Libertadores e o Mundial. Essa é a meta nada modesta do Flamengo na abertura
dos trabalhos de mais uma temporada. A estúpida perda do Estadual no final do
ano anterior é tida como um mero “acidente de percurso”. O que interessa é que
o Flamengo ainda ostenta o melhor elenco do país, com jogadores de primeira
linha, e possui um time capaz de intimidar qualquer adversário em nível
continental.
O time que encantou o país e o
planeta perdeu Raul, que se aposentou no final do ano, e sua estrela e
referência maior, Zico, que seguiu a tendência de êxodo dos principais craques
brasileiros e foi brilhar na Udinese. No entanto, entre os que restaram, alguns
nitidamente já não conseguem repetir o desempenho que os colocou na galeria de
heróis rubro-negros.
É o caso de Marinho, barrado pelo
treinador Cláudio Garcia. Andrade continua brilhando, mas vive lesionado, às
voltas com problemas no joelho. Leandro, outra reserva técnica, já exibe nítida
dificuldade de exercer o vaivém típico de sua posição de lateral, por conta de
suas severas limitações físicas. Nunes, que no passado mais arrumou confusão do
que propriamente rendeu, a ponto de ser emprestado, agora está de volta, mas
precisa recuperar seu lugar no time. E, por fim, Lico, já veterano, também não
consegue atuar com a intensidade necessária a uma equipe com ambições tão
audaciosas, e tem habitado a reserva com certa frequência.
Para promover a evidente
necessidade de renovação do plantel, a Diretoria recorre a duas frentes: a
principal delas é a contratação de medalhões, jogadores renomados destaques de
outros clubes, casos do meia Cléo (Palmeiras), do ponta-direita Lúcio
(Guarani), do centroavante Edmar (Cruzeiro, Grêmio) e do velho conhecido
Cláudio Adão. No entanto, apenas Lúcio e Edmar dão algum retorno, e os demais
são devolvidos/negociados. Na virada do ano, o clube faz dois bons movimentos
teóricos, trazendo o ponta-esquerda João Paulo, destaque do Santos (adversário
rubro-negro na Libertadores, o que indica enfraquecimento de um rival), e,
especialmente, o renomado goleiro argentino Fillol, um dos melhores do mundo em
sua posição.
A segunda frente é a montagem de
um time muito forte na base. Além de vários talentos formados no clube, casos
do goleiro Hugo, do lateral Adalberto, do volante Bigu, do meia Gilmar Popoca e
do atacante Bebeto (trazido do Vitória/BA), o Flamengo ainda traz o lateral
Heitor e o zagueiro Guto, que fizeram parte do elenco da Seleção Brasileira
campeã mundial sub-20 em 1983, no México. E já está de olho no lateral
Jorginho, destaque do América.
Parece ser a receita certa para a
sequência de um trabalho campeão.
* * *
Incerteza. Às vésperas de
enfrentar o América, pela abertura da Terceira Fase da Copa Brasil (o
Campeonato Brasileiro), o Flamengo procura se refazer, entender o que está
dando errado e tornar a encontrar um caminho.
Com efeito, a equipe já disputou
14 jogos pelo Brasileiro e 3 pela Libertadores. E, salvo momentos específicos,
tem apresentado desempenho preocupante e muito pouco convincente. Se na
competição continental as coisas por ora parecem caminhar bem, no Nacional por
pouco o Flamengo não amargou uma eliminação que traria consequências
imprevisíveis ao sempre conturbado ambiente na Gávea. A sensação é de que a
comissão técnica precisa encontrar respostas e soluções. E logo.
Mas o problema está longe de
passar apenas pelo treinador.
É verdade que o desempenho da
equipe não agrada. O time-base formado por Fillol, Leandro, Figueiredo, Mozer,
Júnior, Andrade, Adílio, Tita, Lúcio, Edmar e João Paulo, apesar de
extremamente técnico, tem tido problemas contra adversários mais intensos, e
não consegue bom rendimento defensivo. Ademais, João Paulo, um ponta driblador
e veloz, não está acostumado a atuar tendo que cobrir as subidas de um lateral ofensivo
como Júnior. Não rende. E, usualmente vaiado, está sem confiança (o caso de
João Paulo suscita questionamentos ao alto investimento feito por um jogador
inadequado ao esquema que o Flamengo utiliza). Eventualmente, Lico entra, o que
melhora o equilíbrio do meio, mas não ajuda muito na intensidade da equipe.
Edmar, intimidado com a sombra de Nunes, também não consegue se firmar no
comando do ataque, mas o João Danado, quando entra, igualmente mostra apenas
luta e não muito mais que isso. Outro problema é Lúcio, que até iniciou bem a
temporada, mas padece com problemas de peso e não consegue funcionar.
Eventualmente é trocado por um volante, o que tira o poder de fogo da equipe.
Além dos problemas táticos, o
Flamengo parece padecer de crônica falta de motivação, um cansaço anímico.
Salvo os jogos da Libertadores e a estreia no Brasileiro, contra o Palmeiras, a
tônica tem sido um toque de bola irritantemente cadenciado, e o time “sentando”
em vantagens construídas no início dos jogos, especialmente contra adversários
menos fortes. Merece destaque a apertada vitória contra o Operário/MS no
Maracanã, em que o time, após abrir 2-0, rodou preguiçosamente a bola, encheu o
adversário de brios e sofreu o empate, conseguindo a vitória apenas com um
estranho gol de Nunes, num jogo em que Leandro saiu de campo sob vaias e
respondendo a insultos de torcedores. Ou o empate em 2-2 contra o Goiás, também
no Maracanã, em que o time, displicente, não viu a cor da bola, desceu pro
intervalo debaixo de vaia perdendo por dois gols e, mordida com os insultos,
buscou o empate na segunda etapa. Pior, contra equipes mais intensas e
dispostas a marcar o campo todo, eventualmente sob pressão, o Flamengo também
sofre. Fillol evita a derrota nos empates contra Goiás (0-0) e Palmeiras (1-1),
mas não impede reveses desastrosos contra Brasil de Pelotas (um enganoso 0-1,
dado o volume dos locais) e Internacional (vexatório 0-4 no Beira-Rio).
Também há sinais inquietantes
fora das quatro linhas. Rumores velados de excesso de participações em festas e
noitadas incomodam, especialmente quando se comenta que jogadores e dirigentes
teriam participado, no Sul, de uma celebração decorrente de uma eleição de
miss, uma festa “bastante animada”, segundo relatos (o assunto virará escândalo
no ano seguinte, ao ser relembrado por um jogador em entrevista).
Enquanto lida com os problemas, para
o jogo contra o América o Flamengo anuncia que irá estrear uma camisa
ostentando a logomarca do óleo Lubrax, seguindo tendência iniciada no ano
anterior e já adotada por outras equipes, como Santos (Auto-Center HM),
Corinthians (Cofap, Duchas Corona), Vasco (Bandeirantes Seguros), Internacional
(Aplub), Coritiba (Banestado) e várias outras. Mas as novidades irão além
apenas de uma nova camisa.
A nervosa classificação da fase
anterior (conseguida apenas num tenso 2-0 contra o Internacional, no Maracanã)
traz a Garcia a certeza de que mudanças são necessárias. É necessário
rejuvenescer e oxigenar a equipe. Assim, efetiva de vez o jovem Bigu no meio,
ao lado de Andrade. Saca Lúcio e João Paulo, adianta Adílio como “falso-ponta”
e dá a primeira oportunidade, como titular, ao jovem Bebeto, que anda voando
nos treinos. Também pensa, nos próximos jogos, em aproveitar mais o habilidoso
Adalberto, o vigoroso Heitor e o polivalente Élder, jogador de técnica limitada
mas dotado de grande fôlego. O Flamengo, pensa Garcia, precisa de um choque de
competitividade. E logo.
* * *
Três a zero. Os luminosos números
que refulgem no placar eletrônico do Maracanã não são capazes de descrever o
que acaba de acontecer no gramado do estádio. Mas sugerem. Pela primeira vez no
ano, o Flamengo apresenta um futebol sufocante, irresistível, veloz, intenso,
impositivo e dominante. Após certa hesitação no início, a equipe toma as rédeas
da partida e reduz o adversário a uma caricatura, despojando-o de qualquer
índole de reação, sobrando-lhe pouco mais que a dignidade. A torcida, outrora
desconfiada e exigente, gargalha em euforia a cada tabela, cada arrancada, cada
movimento agudo e vertical do rejuvenescido “onze” flamengo. Mesmo alguns
veteranos sobem de rendimento, anabolizados pelo clima irresistível que a união
entre time e torcida cria dentro da partida.
Após o jogo, Júnior, contente com
o desempenho e com a escovada, é perguntado sobre a atuação de Bebeto, um dos
grandes nomes do jogo, e, ao se referir ao jovem, acaba cravando um adágio que,
cedo ou tarde, terá que ser encampado por toda a Gávea, aplicando-se não apenas
a Bebeto, mas a toda uma filosofia. A um caminho. A uma solução.
“Esse
garoto não pode mais sair do time”