Prezado Mister Paulo,
desde que bati os olhos pela primeira vez no seu currículo, fiquei positivamente impressionado. Como diriam os de vida mais simples aqui no Brasil, o senhor é um homem viajado. Inglaterra, País de Gales, Hungria, Israel, Suíça, Itália, China, França, Polônia e Brasil. Achei, e continuo achando, simplesmente fantástico. Ninguém traça um caminho desses sem ter a mente muito aberta, especialmente a diferenças culturais. Então, animei-me em te escrever esse bilhete, tendo por pano de fundo justamente esse tema, a cultura local, no caso, a brasileira e também a flamenga, até porque já ficamos sabendo do seu interesse por livros que contem a História do clube.
O pessoal aqui do Buteco do Flamengo já está familiarizado com esse assunto. Volta e meia retorno a essa questão da “Lei Bosman” e o fim do que chamamos aqui no Brasil de "Lei do Passe". Como as coisas por aqui normalmente são mais enroladas mesmo, a entrada em vigor, no Brasil, da “Lei Bosman”, por via da Lei 9615/98, a famosa “Lei Pelé”, demorou um pouco. O artigo 28, § 2º extinguiu o instituto do passe, porém só entrou em vigor três anos depois da publicação da lei, precisamente aos 26 de março de 2001, por determinação do artigo 92.
Faço essa ressalva porque, a meu ver, esse pequeno atraso em relação à Europa ajudou um pouquinho a Seleção Brasileira a chegar a duas finais de Copa do Mundo e conquistar o seu último título, em 2002. Lá se vão vinte anos, Mister Paulo, que o Brasil não vence uma seleção europeia de primeiro escalão em Copas do Mundo e anda perdendo até para algumas de escalão intermediário, mas veja só, a imprensa esportiva e os dirigentes locais ainda relutam para aceitar que a matéria-prima que antes existia para um treinador trabalhar neste país se foi e que é necessário buscar conhecimento acadêmico no Velho Mundo, de modo a tentar ao menos diminuir a distância. O futebol brasileiro, Mister Paulo, ainda vive no lúdico cenário do Século XX, da intuição, do individualismo e do coletivo inteiramente adaptado ao talento individual de nossos craques. Basta ler e assistir às resenhas esportivas que constatará facilmente o fato.
Fiz essa pequena introdução para chegar ao Flamengo. A essa altura, acredito que já saiba que um dos apelidos do clube é o de "Mais Querido do Brasil", e não é por acaso. As origens e as raízes do Flamengo são populares. É um clube que aceita ser amado como nenhum outro, sem distinção de credo, cor, condição social ou orientação sexual. Por isso mesmo, Mister Paulo, é também o mais odiado. Tenha certeza de que não é só o fato de ter a maior torcida. Fosse qualquer outro no lugar do Flamengo, o ódio existiria, mas seria menor e não teria a mesma intensidade. O Flamengo simplesmente não é aceito. Seus coirmãos cariocas têm, cada qual, seus ranços insuperáveis e unem-se contra o inimigo comum. Os paulistas, que já não admitem não ser o centro das atenções, temem e não aceitam que o maior seja justamente esse clube, popular e descolado. O resto acaba indo no vácuo (segue a tendência sem questionar, entende?).
Mister Paulo, quando afirmo que o Flamengo é gigante por conta da sua torcida, perceba que não é simplesmente uma questão de números, mas também de comportamento, de atitude. Ao ser xingada de urubu, em razão da cor do animal, transformou-o em mascote e símbolo; diante do brado para que se calasse por conta da condição social de grande parte de seus torcedores, deu dignidade à favela e passou a cantá-la como fator de identidade. Contudo, em um país tão preconceituoso, a alegria infelizmente gera em muitos rivais ainda mais ódio. A maneira como se referem à tragédia do incêndio no Ninho do Urubu não me deixa mentir.
Para complicar ainda mais as coisas, Mister Paulo, o clube ainda tem a tradição de confrontar a CBF e até a FIFA. Nos idos de 1992, questionou a reeleição do então presidente da entidade nacional e a briga terminou na justiça. O sogro do presidente reeleito, presidente da FIFA, suspendeu o clube, proibindo-o de disputar jogos internacionais. Imagine o tamanho da confusão. Contudo, o Flamengo é tão grande que, acredite, a FIFA perdeu. Mais recentemente, o clube voltou a processar a entidade por conta de jogos disputados em grandes altitudes na América do Sul. Dessa vez não deu em nada, mas aproveito o gancho para lhe contar que o senhor não perde por esperar, Mister Paulo. Asseguro-lhe de que será uma experiência inesquecível, que o levará literalmente às alturas.
Agora que lhe expliquei brevemente todo o contexto que lhe precede e que te recebe, Mister Paulo, fica fácil compreender que tudo o que envolve o Flamengo ganha enorme dimensão e grande resistência, tanto da mídia, como dos dirigentes. Imagine então a fúria despertada por esse clube, quando resolveu, no pleno exercício de sua grandeza, fazer o que os obtusos e ultrapassados dirigentes do futebol brasileiro não tiveram coragem, ao buscar, sistematicamente, em técnicos estrangeiros o conhecimento acadêmico sobre futebol, aquele ao qual jamais se deu importância por essas bandas. Não sei se tens boas relações com o Mister Jorge Jesus, mas se houver possibilidade, sugiro uma prosa com o "Velho". Não há melhor pessoa para te explicar o que lhe espera. Se quiseres uma segunda opinião, é só ligar para o professor Reinaldo Rueda, que inclusive trabalhou com alguns dos seus hoje comandados.
Chegou então o momento de falar do mais difícil. Sabemos que o jogo de posição é, para além de uma ferramenta tática excelente, uma filosofia (que considero elevada) de desprendimento do individual em prol do coletivo. Talvez por isso ainda seja pouco comum entre os gigantes do futebol mundial. Pode colidir com essa cultura do craque, da estrela, do ídolo da torcida e fonte de receitas publicitárias do clube, do grande protagonismo individual e também do jogo intuitivo, percebe? Acredito que nesse ponto entra a habilidade do professor, de modo que o processo seja de assimilação e persuasão, e não de imposição. Isso pode levar tempo, variando de acordo com a complexidade do que se deseja implantar. Só que o tempo não para, Mister Paulo, ainda mais no futebol brasileiro, e no próximo domingo já tem decisão.
Esse bilhete acabou se tornando uma carta, então é o momento de encerrá-lo. Antes de me despedir, porém, aproveitando o seu interesse em aprender sobre a História do Flamengo, permita-me sugerir a leitura de quatro artigos (um, dois, três e quatro) que poderão lhe dar uma boa noção do perfil, psicológico e histórico, do adversário do próximo domingo, bem como da rivalidade entre os dois clubes. Lendo-os, Mister Paulo, qualquer surpresa com a demora para a definição da sede e com a inusitada polêmica do hotel se dissipará.
Desejo-lhe toda sorte do mundo, Mister Paulo, não só porque o seu sucesso será a nossa felicidade, mas também porque a sua abertura para diferentes culturas é tudo o que o mundo de hoje precisa para ser menos bélico e mais convergente. Desculpe por qualquer coisa no texto da semana passada e fique com Deus, com a proteção de São Judas Tadeu.
Bom dia e SRN a tod@s.
* Texto escrito e programado antes da final do basquete e de Flamengo x Nova Iguaçu