Irmãos rubro-negros,
Hoje irei compartilhar com vocês uma das primeiras colunas que tive a honra de publicar neste espaço maravilhoso, o Buteco do Flamengo. Lá se vão mais de oito anos.
Celebro com vocês um pouquinho da história do Clube de Regatas do Flamengo, dos primórdios do clube e da criação da República Paz e Amor, no casarão que servia de sede social e garagem dos barcos de remo. Nomes como Gentil Monteiro, José Bastos Padilha e Abelardo Melo fazem parte desta época de formação do Flamengo. Outra instituição daqueles tempos é o Café Rio Branco, que ficava no Centro do Rio de Janeiro e reunia fanáticos rubro-negros. Mas a história do Café Rio Branco ficará para a próxima ocasião.
Lá pelos idos de 1910, a sede do Flamengo, situada na Rua do Russel, nº 22 (atual Praia do Flamengo, nº 66), servia de garagem dos barcos do remo e de moradia para remadores e estudantes, uma “autêntica cabeça-de-porco em plena Praia do Flamengo”, nas palavras de Edigar de Alencar.
O Flamengo era um clube pobre, muito pobre, quando comparado aos seus adversários, e vivia quase que exclusivamente da contribuição dos seus poucos e abnegados sócios.
Embora pobre, o Flamengo já inspirava paixões avassaladoras e a fundação da República Paz e Amor é bastante representativa desse fato.
Em meio às brincadeiras, peraltices e à boemia desenfreada da turma do “Paz e Amor”, percebe-se, de modo claro, as manifestações do caráter rubro-negro: intrepidez, coragem, valentia, heroísmo, espírito galhofeiro e feliz, paixão e, acima de tudo, muito amor ao Flamengo.
Para a turma do “Paz e Amor” não havia grandes ou pequenos, ricos ou pobres, celebridades ou anônimos. O aviso estava dado: “que não se metessem com o Flamengo.”
Ante tantas histórias narradas por Mário Filho, e na impossibilidade de reproduzi-las integralmente, escolhi, com muito carinho, algumas passagens que considero significativas.
Com vocês, A República Paz e Amor.
Autor: Mário Filho
“Ao lado do Flamengo ficava um colégio de freiras. As boas irmãs não podiam chegar à janela dos fundos. No quintal da garage os remadores nus jogavam pelota. Para não viverem de janelas fechadas, as freiras mandaram levantar, sobre o muro, um tapume de zinco.
Então, na hora do recreio, os remadores nus deram para trepar nas árvores, agarrando-se nos galhos mais altos, de onde espiavam as meninas e bebiam um pouco daquela quietude de claustro.
As freiras levantavam os olhos, benziam-se, apressadas, e fugiam, arrastando as meninas que não podiam ver aqueles faunos enormes, musculosos, cabeludos, pendurados nas árvores, não como frutos, mas como macacos.
E aqueles demônios do 22, as freiras bem o sabiam, eram também bons rapazes, ou tinham, lá no fundo, sentimentos nobres.
Quando houve a grande ressaca, as ondas da altura de uma casa foram bater, com toda a fúria, no colégio de freiras.
E quem as salvou e salvou as meninas, indo e vindo, carregando-as no colo como se elas fossem criancinhas de peito, senão aqueles rapazes do Flamengo, justamente aqueles que eram como faunos trepados nas árvores que derramavam sombra no quintal do colégio.”
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“O ‘Estrada de Ferro’, por exemplo. Ninguém lhe guardou o nome. No primeiro dia em que foi ao clube contou vantagem: trabalhava nos correios. Um dia o trem em que ele vinha parou em Belém: o maquinista teve uma coisa. ‘Não havia ninguém que soubesse dirigir o trem. Eu não sabia, mas tinha de voltar para o Rio. Disse que sabia. Peguei na manivela, soltei o freio, não respeitei sinal. De repente olhei para o nome de uma estação e li: Cascadura. Freei o trem. A velocidade era tanta que ele foi parar na Central’.
Abelardo Melo olhou para os outros e sugeriu: ‘vamos dar nele?’
Deram uma surra no ‘Estrada de Ferro’. Ele precisava aprender a respeitar os mais velhos no clube. Para contar uma vantagem, o sócio tinha de esperar um pouco.
O ‘Estrada de Ferro’ fugiu, saiu correndo pela praia, os outros atrás dele, ‘pega, pega ladrão!’ Desapareceu numa esquina.
‘Amanhã ele está aqui’, disse Gentil Monteiro. Abelardo Melo duvidou: aquele não havia de querer saber mais do Flamengo.
Quem tinha razão era Gentil Monteiro. No outro dia, de manhã cedo, o ‘Estrada de Ferro’ apareceu, como se nada tivesse acontecido. Daí por diante não contou mais vantagem, ficava escutando vantagem dos outros.”
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“Foi quando entrou para o Flamengo o doutor Anibal Varges. O doutor Anibal Varges tinha um automóvel, dos primeiros a aparecer no Rio: alto, de rodas enormes, comprido. O automóvel ficava encostado junto ao meio fio.
E enquanto o doutor Anibal Varges estava se preparando, já depois de remar, para sair, o pessoal da República Paz e Amor amarrava um jacá atrás do carro.
O jacá tinha uma grande vantagem: não fazia barulho. Lata velha era campainha de alarma. O carro rodava dois metros, parava logo. O doutor Anibal Varges saltava, desamarrava as latas, ia embora. E não ficava zangado com aquelas coisas de rapazes.
O jacá era silencioso. Ficava amarrado atrás do carro toda a vida. Só quando parava em frente ao consultório, era que o doutor Anibal Varges dava pela história.
O carro parava, juntava gente, todo mundo rindo, apontando para trás. O doutor Anibal Varges, muito grave, para não dar confiança, ia desamarrar o jacá, e depois esfregava as mãos, pedia licença. A pequena multidão se abria. Ele subia a calçada e enfiava-se pelo prédio onde dava consultas.
No outro dia, estando com a turma do Flamengo, na hora de levar o barco para a rampa, não pedia que acabassem com aquilo. Tudo cansa, até amarrar jacá na traseira do carro dos outros.
A melhor maneira de acabar com aquilo era não dar importância. E o doutor Anibal Varges tratava de se impor ao respeito da República Paz e Amor, dando conselhos. Bons conselhos.
Por exemplo: o Flamengo só tinha um chuveiro de água fria. Água fria, só, todos os dias, não era bom. Depois de um exercício tão saudável como o do remo, o que se devia tomar era uma ducha de água fria e de água quente.
O doutor Anibal Varges se demorava enumerando os benefícios da mudança brusca da temperatura da água. Um golpe d’água bem frio, um golpe d’água bem quente. Depois de uma ducha assim a gente podia trabalhar quantas horas quisesse, sem sentir o menor cansaço.
Ah! O doutor Anibal Varges achava que era bom mudar a temperatura da água?
Compraram seis pedras de gelo, bem grandes, entupiram a caixa d’água com as pedras de gelo. De manhã cedo a caixa d’água estava suando.
O doutor Anibal Varges era o primeiro a chegar. Chegava às quatro e meia da manhã, tirava um barco, remava. Ninguém entrava debaixo do chuveiro antes dele.
De propósito, naquela manhã, os outros demoraram mais, deixaram-se ficar na garage.
O doutor Anibal Varges voltou, alegre, trancou-se no banheiro, abriu o chuveiro. Do lado de fora os outros ouviram um verdadeiro rugido. O barulho do chuveiro durou instante, o tempo de abrir e fechar.
Do Flamengo, o doutor Anibal Varges foi diretinho para a cama.
O doutor Anibal Varges foi vingado. As pedras de gelo dentro da caixa d’água, a caixa d’água suando, e todo mundo tendo de tomar banho. Quando alguém saía do banheiro, estava roxo, tremendo de frio. Saía aos saltos uh! uh! uh! botando fumaça pela boca.
Outro tinha de entrar. Quem não tomara banho ainda ficava na porta, achando graça. ‘Agora é a sua vez.’ Quem estava na vez era levado para dentro do banheiro. Por bem ou por mal. Não adiantava fugir.
O Manoel de Almeida, o ‘Jacaré’, foi tirado do bonde. E passou por uma vergonha, Gentil Monteiro gritando: ‘tem de tomar banho, tem de tomar banho’.
O ‘Jacaré’ a princípio fez força, não queria ir de jeito nenhum. As senhoras, um pouco escandalizadas, não compreendendo direito como se podia ter tamanho horror à água.
O ‘Jacaré’ cansou-se, deixou de lutar, ficou quieto, manso. Só pediu uma coisa: ‘me larguem que eu vou sozinho.’
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“O Lamas inaugurou um cartaz. De noite, quem chegava sabia logo de todos os resultados dos jogos.
O Fluminense ganhou do Flamengo, o ‘Paz e Amor’ exigiu que o placar fosse retirado.
Não retiraram.
Então o placar foi quebrado, arrastado para a rua.
Em dia de jogo, a turma do ‘Paz e Amor’ chegava na arquibancada, escolhia um lugar. ‘Quem não for Flamengo trate de ir para bem longe. Se não vai apanhar.’”
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“E o Vasco saiu da segunda divisão: foi para a primeira, deu em todo o mundo. O Flamengo apanhou uma vez; para a segunda se preparou.
O ‘Paz e Amor’ distribuiu paz e remos pelos remadores. Naquele dia o ‘Jornal do Comércio’ e o ‘Jornal do Brasil’ se esgotaram nas bancas do Largo do machado até a Galeria Cruzeiro. Tudo para embrulhar pá de remo. Os vascaínos não estavam prevenidos: gritavam ‘Vasco!’ e levavam pá de remo no alto da cabeça.
O Flamengo venceu e o ‘Paz e Amor’ fez um carnaval pela cidade.
Um tamanco de dois metros de comprimento foi arrancado de uma tamancaria na Rua do Catete; as quitandas tiveram de abrir para vender cebolas. Fez-se uma enorme réstia de cebolas de não sei quantos metros de comprimento, para engrinaldar a estátua de Pedro Álvares Cabral.
Um cortejo de automóveis. Itinerário: Praia do Flamengo, Glória, parada em frente à estátua de Pedro Álvares Cabral, Lapa, bem junto do ‘Capela’, o bar dos vascaínos, e por aí fora.
No Mercado das Flores comprou-se uma coroa de defunto. Quando, na madrugada do dia seguinte, os vascaínos apareceram em Santa Luzia (antiga sede do clube), encontraram uma coroa de defunto dependurada na porta da sede.
Aquilo não podia ficar assim. De noite o Vasco organizou um cortejo de automóveis. Ia dar uma lição de boas maneiras à turma do ‘Paz e Amor.’ Nada de coroa de defunto: uma ‘corbeille’ gigantesca seria oferecida ao Flamengo, o único clube que derrotara o Vasco.
Lá se foram os automóveis, Vasco! Vasco!
Havia pouca gente no Flamengo, àquela hora. A porta da frente foi fechada; uns subiram para o primeiro andar, outros para o segundo.
E outros para o telhado da pensão da ‘Espanhola’, para o telhado do colégio de freiras. Lá de cima começou a cair uma chuva de telhas.
Cá de baixo os vascaínos responderam com pedras. Pedras de baixo para cima, telhas de cima para baixo.
Destelharam a pensão da ‘Espanhola’, o colégio de freiras: não se tocou no telhado do Flamengo.
Havia uma coisa sagrada para aquela gente do ‘Paz e Amor’: o clube, tudo que fosse do clube, até uma telha. Não respeitavam nada, exceto o Flamengo.
Por isso tinha escrito na parede, em letras grandes, só um cego não leria, a letra F dos estatutos, que tratava das obrigações dos sócios:
‘Zelar pelo material do clube.’
Ai de quem, sendo sócio ou não, quebrasse um remo, um barco da flotilha do Flamengo. Levava uma surra.”
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Autor: Mário Filho.
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A coluna entrará de férias. Desejo a todos os amigos do Buteco do Flamengo um Feliz Natal e um ótimo Ano Novo.
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Abraços e Saudações Rubro-Negras.
Uma vez Flamengo, sempre Flamengo.