Salve, Buteco! Estava dando uma espiada no calendário da CBF para futebol brasileiro em 2021 para tentar ter uma ideia do quão apertado será o ano para o Mais Querido e cheguei à mesma constatação de anos anteriores: o segundo semestre será "puxado" e o desgaste do elenco será proporcional ao avanço do clube nas Copas do Brasil e Libertadores da América. Contudo, por conta da temporada/2020 haver terminado em fevereiro/2021, o calendário/2021 será ainda mais apertado. A título de exemplo, estão previstas apenas dez datas de meio de semana exclusivamente para o Campeonato Brasileiro da Série A. Percebam o detalhe do "exclusivamente": é claro que muitas datas das copas (Liberta, Sula e CB) serão utilizadas para tanto, mas isso ocorrerá à medida em que ocorrerem as eliminações dos participantes da Série A.
Contudo, a situação inevitavelmente piorará, haja vista o adiamento da rodada dupla de março das Eliminatórias para a Copa do Mundo/2020, ainda não remarcada. A FIFA chegou a falar em novembro, mas nada foi definido, por enquanto. Ocorre que o mês de novembro já tem a sua rodada dupla (dias 11 e 16) e a previsão da final da Copa Libertadores da América, em jogo único no (dia 20, sábado). Como a pandemia de COVID-19 encontra-se fora de controle, especialmente no Brasil, não é absurdo temer por novos adiamentos e um aumento ainda maior da pressão sobre o calendário, com efeitos especialmente negativos para o Flamengo, que possui em seu elenco atletas "convocáveis" para as seleções brasileira, chilena e uruguaia.
Parece inegável que tanta indefinição aumentará o grau de aleatoriedade da temporada/2021, de modo que simplesmente não consigo dar ao Flamengo o mesmo favoritismo de temporadas anteriores, especialmente a de 2020, conclusão a que chego sem precisar tecer a menor consideração a respeito do trabalho da comissão técnica. Qualquer treinador e qualquer comissão técnica teria dificuldades em semelhante contexto e no comando do clube. Então, aonde o Ceni entra nessa conversa?
Analisando a entrevista concedida por Rogério Ceni ao Mauro Cézar Pereira, diria que a resposta começa pela maneira de lidar com a inevitável pressão de trabalhar no Flamengo, ainda mais no que promete ser a dificílima temporada de 2021, que, como se não bastasse a pressão sobre o calendário, ainda terá as eleições presidenciais dentro do clube. Logo no início da entrevista (retornam ao assunto posteriormente), quando Mauro busca, com duas perguntas, descontrair o ambiente, Ceni aponta, de maneira clara e transparente, o quanto deseja ser aceito e o incomoda a desconfiança sobre seu passado (25 anos) como atleta e ídolo do São Paulo Futebol Clube. O incômodo é tão grande que chegou a falar em arrependimento por haver aceitado dirigir o time no primeiro confronto da Copa do Brasil, contra o próprio São Paulo. Não vou repetir o texto da semana passada, mas posso apontar nesse trecho da entrevista um bom exemplo de como a psicologia pode ajudar no futebol profissional.
Torcedores de clubes brasileiros de futebol invariavelmente reclamam bastante, o que naturalmente aumenta proporcionalmente de acordo com o tamanho da torcida. Como se não bastasse ser a maior do mundo, a torcida do Flamengo ainda tem o hábito, enraizado ao longo de décadas, de utilizar a vaia como instrumento de cobrança sobre o time, claro que visando a melhora de rendimento. Não precisa de muito para um jogador ou treinador levar uma vaia, convenhamos. E como a pandemia obrigatoriamente afastou o clube dos estádios, a pressão é toda canalizada paras as redes sociais.
Todavia, Ceni não tem do que reclamar. É verdade, como disse o treinador, que a falta de público afeta mais o Flamengo do que outros clubes, haja vista o papel que historicamente a Nação exerce sobre o time, especialmente no Maracanã. Ocorre que também há o reverso da medalha: assim como seu antecessor Domènec Torrent, que também reclamou da falta de público, Ceni não teria escapado de sonoras vaias em algumas partidas. Só em um universo paralelo ou realidade alternativa poderíamos conhecer as consequências dessas imaginárias vaias.
O que me parece certo é que Ceni deveria evitar o assunto (críticas), até para não deixá-lo "crescer" ainda mais e influenciar negativamente a avaliação dos torcedores sobre outros pontos que destacou, como, por exemplo, o fato do time de 2019 também ter "sofrido". É que, ao apontar o fato, abre a perigosa porta da comparação, na qual inevitavelmente sai perdendo, especialmente nos aspectos da criação e da produção ofensiva do time nas temporadas de 2019 e 2020. Apesar disso, não custa para a torcida observar que o treinador não contou nenhuma mentira. Aliás, preciso ser coerente, pois, quando o time ainda era dirigido por Domènec Torrent, eu mesmo também apontei o fato neste post.
Como escreveu o Mauro, comentando a própria entrevista que conduziu, Ceni tem mesmo uma certa dificuldade para reconhecer os próprios erros e, digo eu, acaba se enrolando ainda mais ao tentar se defender de algumas obviedades, característica que é normalmente qualificada como arrogância. Contudo, ninguém pode negar que essa mesma característica também estava presente em seus tempos de atleta, quando conquistou quase tudo o que era possível para um atleta brasileiro. Na verdade, o Ceni treinador é uma versão mais madura, embora também mais insegura, e até por isso (ainda?) está bem distante do Ceni atleta, mas também é inegável que o treinador sequer chegou à metade do que pode ser a sua carreira, a longo prazo, e que ainda tem um bom espaço para crescer na profissão.
A grande superioridade tática e qualitativa do time de 2019 não pode ou não deveria retirar do torcedor a consciência de que os sucessores de Jorge Jesus não ocupam o mesmo patamar do Mister. E também é bom ter em mente que, acaso Ceni "caia" no curso da temporada/2021, o momento atual não permite que sonhemos com uma reposição por um treinador de primeiro patamar para os padrões sul-americanos ou mesmo cogitar que um treinador brasileiro faria melhor.
Talvez Ceni seja "o que tem pra hoje", assim entendido como a temporada/2021. Dá pra ganhar com ele, mas calculo que será bem mais fácil se ele e a torcida se ajudarem. Como é impossível (e indesejável) "domar" mais de 40 milhões de aficionados, torço para que o nosso jovem treinador, por quem torço muito, dê o primeiro passo, importante inclusive para o seu processo de autoafirmação.
Antes de passar a palavra a vocês, deixo-os com a inesquecível lição de um conhecido tricolor:
"Para qualquer um, a camisa vale tanto quanto uma gravata. Não para o Flamengo. Para o Flamengo a camisa é tudo. Já tem acontecido várias vezes o seguinte:- quando o time não dá nada, a camisa é içada, desfraldada, por invisíveis mãos. Adversários, juízes, bandeirinhas, tremem, então, intimidados, acovardados, batidos. Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnicos, nem de nada. Bastará a camisa, aberta no arco. E diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável."
Nelson Rodrigues
Bom dia e SRN a tod@s.