Salve, Buteco! Qualquer torcedor do Flamengo que seja minimamente atento sabe do ônus que o clube sofre por ser o mais popular do futebol brasileiro. O Mais Querido, sem a menor sombra de dúvida, também é o "Mais Odiado", primeiramente no Rio de Janeiro, pois nenhum dos adversários aceita o seu protagonismo: o Fluminense não aceita o Flamengo, cujo Departamento de Futebol nasceu de sua cisão interna, ter se tornado muito maior; o Botafogo não aceita o único clube que já foi seu freguês, dentre os grandes da cidade, haver mudado o curso da História e colocado-o no seu devido lugar, e o Vasco da Gama simplesmente se recusa a aceitar o tamanho daquele que o impede de ser o maior e mais popular da cidade, e também de ser o mais identificado com o povo. O Mais Querido também é odiado em São Paulo, pois o trio-de-ferro paulistano (inclusos seus torcedores, dentre eles os jornalistas) não aceita que o maior do país não esteja no maior centro de futebol do país e talvez das três Américas. Já os atleticanos mineiros odeiam por não aceitarem que a Geração Zico tenha sobrepujado o maior time de sua História e, por sua vez, os gremistas, assim como a cachorrada carioca, incomodam-se muito com a perda de um freguês e a desconstrução de suas narrativas. O resto, como costumo dizer, vai na onda e sequer merece menção.
O ódio anti-Flamengo é facilmente identificável na imprensa esportiva nacional por quem não faz questão de fechar os olhos para não enxergar. Deixo claro que de minha parte jamais sairá qualquer discurso para perseguir jornalistas ou a liberdade de imprensa, sem a qual nenhuma democracia existe. Isso, é claro, não significa dizer que o produto da liberdade de imprensa, aquele que chega a seu destinatário final, o consumidor, não possa ser criticado, tanto mais quando se mistura, em um complexo emaranhado, com interesses comerciais milionários de uma grande corporação. Se não existe democracia sem imprensa livre, ninguém é obrigado a se sujeitar ao mau uso da liberdade de expressão ou do mau exercício dessa nobre profissão.
Não me cabe dizer como os torcedores do Flamengo devem se manifestar, mas não custa nada relembrar o contexto e o quanto o fracasso de Domènec Torrent significaria para quem trava importantes e milionárias disputas comerciais com o clube. Em meio à complexa tensão existente entre as forças políticas do futebol brasileiro, compostas por clubes, CBF e a imprensa esportiva, o torcedor rubro-negro tem a difícil missão de, mantendo sua saudável tradição de mais exigente do Brasil (quiçá do mundo), não entrar na onda do discurso de ódio anti-Flamengo.
O constante desafio da Nação Rubro-Negra é saber quando os limites da crítica construtiva são transpostos e se adentra no perigoso terreno da autofagia.
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Nesse início de trabalho de Domènec Torrent no Flamengo, um dos problemas que salta aos olhos é a dificuldade do sistema defensivo para conter situações de gol adversárias. A partir dessa incontestável premissa, porém, começa a surgir uma narrativa que, os mais serenos e atentos perceberão, serve justamente ao discurso de ódio anti-Flamengo ao qual me referi no início do texto. Essa narrativa nasce da inevitável, porém em algumas situações distorcida e precipitada comparação do sistema defensivo atual com o do treinador anterior, Jorge Jesus. O primeiro erro (em alguns casos, proposital) da comparação é atribuir à defesa do mítico e já legendário time de 2019 o dom da invulnerabilidade, pois a estratégia de marcar com as linhas altas pressionando a saída de bola adversária implica, inafastavelmente e independentemente do desenho tático, expor-se ao risco do contra-ataque adversário.
Podemos citar vários exemplos de lances nos quais o mítico time de 2019 esteve a um ombro ou uma fração de segundos de ter um lance de impedimento validado contra si, assim como de lances válidos nos quais esteve perto de tomar o gol, o que não aconteceu por imperícia do ataque adversário ou mesmo mérito do nosso goleiro.
No primeiro caso, podemos citar a correta e milimétrica marcação de impedimento de Willian Bigode aos 2'15" do primeiro tempo no histórico e inesquecível Flamengo 3x0 Palmeiras, que marcou a demissão de Luiz Felipe Scolari, campeão brasileiro em 2018, do comando da equipe palestrina.
No segundo caso, escolhi duas partidas as quais assisti no estádio e cuja elasticidade do placar não deve esconder dificuldades efetivamente vivenciadas na prática.
Nos 3x0 sobre o Avaí no Mané Garrincha, já com 1x0 no placar, o time catarinense por pouco não empatou em uma perigosa sucessão de ataques entre os 14 e 16 minutos, em lances construídos a partir das nossas duas laterais. No primeiro deles, a zaga afastou a bola após uma perigosa infiltração pelo setor direito da nossa grande área, enquanto no segundo o reflexo de Diego Alves nos salvou de uma finalização na pequena área, "cara a cara", após um centro a meia altura da nossa lateral esquerda. Na etapa final ainda houve uma bola na trave e pelo menos dois contra-ataques muito perigosos dos catarinenses, também pelo setor esquerdo da nossa defesa.
Já nos 4x1 sobre o Vasco da Gama, também no Mané Garrincha, convido os Amigos a se recordarem da quantidade de perigosíssimos contra-ataques cruzmaltinos enquanto o placar ainda marcava 0x0, novamente tendo por destaque uma defesa à queima-roupa de Diego Alves, bem como, na segunda etapa, dos dois pênaltis cedidos ao adversário, ambos defendidos pelo nosso goleiro, e ainda do gol de cabeça que sofremos.
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Os melhores momentos dos três jogos que escolhi como exemplo para afastar o mito da invulnerabilidade do sistema defensivo do Flamengo de 2019 também mostram sensíveis diferenças na intensidade do time, especialmente de algumas importantes peças do ataque, como Bruno Henrique e Gabigol. Especialmente nos 3x0 sobre o Avaí, também podemos ver um Gérson bem diferente do que se arrasta em campo nos últimos jogos em que foi escalado. As críticas a Domè costumam desconsiderar o que a atual forma desses três representam para a falta de rendimento da equipe. Cobra-se do treinador a responsabilidade por problemas que não causou e estão além do seu alcance a curto prazo. De que adianta pedir a dupla Gérson e Thiago Maia se o "Coringa", no momento, não tem servido em nenhuma combinação? Então, não me custa lembrar que o time de Jesus, que sempre corria riscos e muitas vezes sofria na defesa, compensava com uma pujança ofensiva que desmantelava a resistência adversária. Ocorre que a pujança entrou de recesso durante a paralisação para a pandemia e, depois disso, inclusive sob o comando do Mister, ainda não deu o ar de sua graça, ao menos de maneira minimamente constante.
Em posts anteriores compartilhei com vocês a impressão de que, desde a volta da pandemia, o time não mais exibe a mesma superioridade física que em 2019 massacrou os rivais. Além disso, não se encontra em cada esquina treinadores capazes de replicar os treinamentos e o sistema tático do português, ainda mais em território brasileiro, o que, ao menos na minha opinião, tornam inevitáveis as mudanças que Domè tenta implementar. Reconhecer esses fatos não deve retirar a responsabilidade do catalão e nem imunizá-lo a críticas, mas tampouco deve cegar para problemas que dificultam o seu trabalho. Nosso amigo @bcbfla, durante os comentários no post de ontem, apontou com precisão alguns erros no posicionamento da primeira linha que contribuíram para os contra-ataques puxados por Osvaldo, do Fortaleza. Cabe a Domè corrigir esses defeitos e é justo que se cobre dele a melhora do time nesse ponto.
Por outro lado, não foi Domè que escolheu os sucessores do excelente e inesquecível Pablo Marí no elenco. Esses atletas, por serem inferiores ao espanhol, levarão tempo até se adaptarem ao novo clube e jamais renderão como o seu antecessor. Além disso, se Isla demonstrou dificuldades em marcar o atacante cearense, o problema talvez possa ser em parte explicado pelo longo tempo em inatividade seguido do fato de ter entrado em campo três vezes no espaço de uma semana. A dificuldade de Isla é a mesma do início de Filipe Luís em 2019. E quando lembro que as alternativas de Domè ao Isla recuperando a forma são o Renê improvisado e o Matheuzinho em processo de autoafirmação no profissional, constato que ter problemas no setor direito, por enquanto, faz parte do inevitável e aconteceria com qualquer treinador que estivesse no lugar do catalão.
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Espero que o torcedor rubro-negro, sem deixar de lado a exigência que lhe garante autenticidade única, não deixe de curtir o processo de mudança, já que a vida é não é estática e sim uma dinâmica e eterna jornada de renovação.
Quanto ao Domè, meu conselho de hoje é que se dê conta, o quanto antes, que um dos inúmeros fatores que fazem da Nação Rubro-Negra a maior e melhor do mundo é ser exigente e não se contentar com pouco. A paciência há de coexistir com a ambição.
Quarta-feira tem mais um Fla-Flu e a palavra está com vocês.
Bom dia e SRN a tod@s.