Olá, Buteco.
Sei bem que, com o retorno do futebol do Flamengo, na quinta-feira
passada, nossa preferência seria falarmos do jogo com o Bangu, das atuações,
das jogadas, do comportamento do Mister (estava calmo na beira do campo e fez
as cinco substituições!), mas os fatos da semana passada (MP 984, patrocínio do
BRB e decreto flutuante do prefeito Crivella sobre a liberação do campeonato
estadual) impõem que esperemos mais um pouco para voltarmos a nos debruçar
sobre o tema que mais nos agrada, o futebol rubro-negro.
Da partida Bangu x Flamengo, que não pudemos ver por conta da disputa sobre
direitos de transmissão iniciada a partir da publicação da MP 984, falou-se de
um ataque contra defesa, com o Bangu fechado no seu campo e o Flamengo
repetindo o bom padrão de jogo que exibia antes da paralisação do futebol, mas
ficamos limitados aos melhores momentos.
Vamos, então, às movimentações estratégicas desenvolvidas pelo Flamengo,
que resultaram na edição da MP 984 pelo presidente Jair Bolsonaro, da qual
consta importante tentativa de mudança dos direitos de transmissão dos jogos de
futebol.
Em 07 de março, postei o seguinte comentário no Buteco:
“No meio do noticiário postado ontem aqui no blog, apareceu a notícia de
que o Flamengo retomou diálogo em Brasília por mudanças na Lei Pelé e na lei do
clube-empresa.
Enquanto os dirigentes do Flamengo vão sofrendo críticas em alguns
campos de atuação, vejo acontecerem interessantes ações estratégicas que,
desenvolvidas paralelamente à gestão dos assuntos mais imediatos, podem abrir
campo para novos saltos do clube em seu posicionamento desportivo e
mercadológico.
Dentre tais ações, a participação no Ferjão com time alternativo, os
movimentos políticos em Brasília, a negociação com a Amazon, a filiação à
plataforma de mídia @Dugout, a possibilidade de buscar ressarcimento de custos
pelas convocações de seus craques para a seleção e a "briga" com a
Globo por melhor remuneração no estadual e, na Justiça, por tratamento mais
adequado quanto à sua participação nas verbas pela transmissão do Brasileirão.
Não se muda o "status quo" sem luta.
Num ambiente futebolístico viciado, não apenas por práticas contrárias
aos clubes adotadas por federações e confederações, mas, também, pela própria
estrutura legal (lei Pelé e normas da FIFA), não dá pra imaginar que o Flamengo
percorrerá esses caminhos como se trafegasse numa autoestrada.
A estrada é longa, tortuosa e cheia de armadilhas, mas não me lembro de
ter visto, em décadas, uma movimentação estratégica tão ampla e, se o clube
conseguir pelo menos parte dos avanços que busca, tão promissora.
Os resultados dessas ações podem demorar, é até provável que demorem,
mas é bom que, ao mesmo tempo em que torcemos no dia a dia, não deixemos de
olhar para essa movimentação estratégica que pode levar a novos saltos do
Flamengo.”
O Gustavo leu o comentário, deu polimento na bola de cristal e escreveu:
“Esse comentário dava um post.”
Acertou, Gustavo.
No post de hoje, motivado pelos fatos da semana passada, volto ao tema.
Pra não dizerem que falei apenas de flores, cumpre fazer um “mea culpa”.
Afinal, algum tempo depois Rodolfo Landim apareceu ao lado do presidente
Jair Bolsonaro, numa foto que recriminei, acusando o presidente do Flamengo de
usar a instituição em cenas políticas.
A MP 984, publicada na semana passada, veio explicar o que Landim foi
fazer em Brasília e me dar o recado:
– Fica na sua, Carlos Cesar. Deixa o Landim trabalhar.
Publicada a MP, o momento ainda é de muita confusão e controvérsias,
algo que sempre acontece quando uma nova realidade é posta sobre a mesa.
No pior cenário, a MP 984 poderá caducar sem ser convertida em lei; num
meio termo, poderá tornar-se lei, mas com modificações que reduzam seu impacto;
num cenário mais otimista, poderá ser aprovada com as inovações mais relevantes
trazidas por seu texto original.
Então, o que me interessa destacar?
Em primeiro lugar e acima de tudo, a perspectiva da quebra de um quase
monopólio exercido pelas Organizações Globo no campo das transmissões do
futebol brasileiro da série A e de importantes campeonatos estaduais.
Não me incluo entre os que demonizam a Globo, mas a situação ocorrida em
2020 no campeonato estadual do Rio de Janeiro evidencia o quanto a condição
vigente antes da MP 984 (ausência de poder do clube mandante sobre seus jogos)
pode prejudicar uma instituição que não aceita as condições propostas pela
emissora.
Afinal, por manter contrato com todos os demais times participantes do
campeonato estadual de 2020, exceto o Flamengo, a Globo teve o poder de impedir
que os jogos do Mais Querido pudessem gerar algum tipo de receita de transmissão
para o clube.
Não estou aqui fazendo julgamentos morais.
Estou registrando um fato.
O Flamengo, clube de maior investimento do Rio de Janeiro, jogou o
campeonato carioca de 2020 com seu time repleto de estrelas e não arrecadou um
só centavo com a venda dos direitos de transmissão por TV, simplesmente porque
o regime antigo, agora alterado pela MP 984, criava essa possibilidade.
É claro que isto não resulta apenas do antigo regime, aquele em que
foram celebrados os contratos entre a Rede Globo e os participantes do
“Carioca” (exceto o Flamengo).
Existem carências financeiras desses clubes que os levam a uma crônica
dependência de antecipações de receitas, com as quais a Globo consolidou e
mantém um poder quase absoluto sobre os direitos de transmissão de algumas
competições.
As reações mais imediatas da Rede Globo, não transmitindo Bangu x
Flamengo apesar de autorizada pelo mandante (Bangu), e declarando que, embora
mandante, o Flamengo não poderá transmitir seu jogo contra o Boavista,
sinalizam que a Globo julgou necessário pintar-se para a guerra.
Tentando aprofundar um pouco a análise desse gesto, sou levado a crer
que a Globo “sentiu o golpe”, por ter percebido que se abriu uma fissura no
muro em que o Flamengo esbarrou ao recusar-se a fazer acordo com a emissora
dominante para a transmissão dos jogos do “Carioca”.
É cedo para cantar vitória. Muito cedo.
A luta vai ser dura e longa e, como eu disse acima, não dá pra imaginar
que o Flamengo percorrerá esse caminho de transformação como se trafegasse numa
autoestrada.
Há muito chão pela frente, mas é muito positivo que o debate tenha sido
aberto com um ato do Poder Executivo Federal que destravou essa discussão
absolutamente necessária.
Acho difícil fazer previsões neste assunto, mas o fato inegável é que,
ao propor uma revolução nas relações entre os clubes e a mídia tradicional, a
MP abre espaço para o estabelecimento de novas formas de relacionamento capazes
de mudar para melhor a vida dos clubes sérios do futebol brasileiro.
Volto ao meu comentário de 17/03:
“...vejo acontecerem interessantes ações estratégicas que, desenvolvidas
paralelamente à gestão dos assuntos mais imediatos, podem abrir campo para
novos saltos do clube em seu posicionamento desportivo e mercadológico.”
É motivo para se comemorar essa busca de evolução do Flamengo em
diferentes níveis, não apenas no relacionado à melhora de seu desempenho
esportivo de curto e médio prazo.
Vejo de forma muito positiva a atuação dos atuais dirigentes do Flamengo
no campo estratégico, promovendo tentativas concretas de mudança do ambiente de
negócios em que o clube atua, para que, ao longo do tempo, possa melhorar a exploração
da sua marca e da força da Nação Rubro-Negra.
Permitam-me enfatizar este aspecto da atuação dos atuais dirigentes
rubro-negros.
As gestões de futebol no Brasil estiveram voltadas, tradicionalmente,
para o trato da dimensão operacional dos clubes, com raras incursões na dimensão
estratégica e, quando feitas, mais voltadas para a busca imediatista de benesses
e de perdões tributários do que para a criação de um ambiente de negócios
esportivos estimulador do crescimento saudável dos clubes sérios.
As movimentações estratégicas que o Flamengo começou a liderar e que
ganharam uma cara com a edição da MP 984 mudam essa lógica e convidam os clubes
a entrar numa nova era.
Há muito a caminhar, mas diz o provérbio chinês que toda longa jornada
começa com o primeiro passo.
O primeiro passo foi dado.
...........
O post teria acabado com a frase acima, mas algumas questões foram
levantadas aqui no Buteco, quanto à atuação estratégica do Flamengo, e achei que
deveria externar minhas reflexões e opiniões a respeito.
1) Deve o Flamengo assumir liderança nessa luta que já gera desgastes e
promete ser dura e até sujeita a baixarias?
2) Não estaria o Flamengo criando condições que irão beneficiar mais os
nossos adversários do que a nós mesmos?
Entendo que o Flamengo não precisaria ser o líder, mas que, na ausência
de uma liderança no futebol capaz de representar lealmente os nossos
interesses, o clube não pode deixar de assumir esse papel, como passou a fazer.
Convém lembrar que, enquanto o Flamengo esteve menos atuante no campo
político, tramitou no Congresso um novo projeto de regulamentação do
clube-empresa e que a versão que se pretendia aprovar estabelecia condições
tributárias favoráveis aos clubes que adotassem o modelo clube-empresa, o que
levaria a prejuízo da competitividade dos que não aderissem à mudança (opção
preferencial do Flamengo).
Foi preciso que o presidente Landim fosse a Brasília e participasse das
negociações para que, segundo as últimas notícias que li a respeito, essa bomba
pudesse ser desarmada, equiparando-se, no projeto de lei, os regimes tributários
dos dois modelos, o dos clubes tradicionais e o dos clubes-empresas.
Por sua grandeza e pela dimensão dos interesses envolvidos, nem sempre
convergentes, o Flamengo não pode se omitir e, se necessário, creio que deve
exercer liderança no campo estratégico onde se definem as políticas e normas
que regem os esportes brasileiros, em especial o futebol.
Quanto a criarmos benefícios para nossos adversários, as notícias e
comentários publicados, inclusive com apoio de alguns presidentes de clubes,
informam que, com sua ação estratégica e sua liderança, o Flamengo está
influindo nas mudanças do ambiente de negócios do futebol, com o que, de fato,
os ganhos que podem advir não beneficiarão apenas o Flamengo, mas também
aqueles adversários que souberem viver no novo ambiente a ser criado.
A julgar pelo que disseram alguns presidentes de clubes adversários,
Landim e o Flamengo vêm exercendo uma liderança não predadora, capaz de propiciar
evolução para todo o ambiente do futebol brasileiro, não apenas para o
Flamengo.
É claro que não podemos ser ingênuos de imaginar que, no futuro,
estaremos imunes a rasteiras de algum ou alguns desses dirigentes que agora
apoiam a liderança do Flamengo, mas o padrão tradicional, no futebol carioca e
no brasileiro, sempre foi a presença de líderes predadores, que só pensavam nos
seus clubes, e o resultado não foi bom.
Então, defendo que se dê a Landim e sua equipe um crédito de confiança.
Creio que os acertos conseguidos nos dezoito meses de gestão do atual
grupo dirigente do Flamengo justificam a concessão desse crédito.