No
domingo, dia 17/11, dormi tranquilo. Mala (mochila) pronta, ingresso
para o jogo na mão e camisa do Mengão novinha, pronta para estrear
na grande final da Libertadores. Há uma semana havia trocado cerca
de 500 reais por 300 soles, a moeda do Peru, numa casa de câmbio na
Tijuca. Segunda pela manhã, peguei um táxi
e fui para um posto de gasolina no bairro da Glória (olha a
premonição aí), local de onde os ônibus com destino a Lima, no
Peru, partiriam.
Havia
três ônibus da patrocinadora do Flamengo. Nome e identidade
checados na porta, adentrei o ônibus e fiquei batendo papo com
outros torcedores rubro-negros enquanto a viagem não começava. De
dentro do ônibus vi alguns rubro-negros, com ingresso para o jogo
mas sem passagem, tentando sensibilizar alguém, seja da empresa de
ônibus, seja dos jornalistas que lá estavam para cobrir o início
daquela epopeia, para ver se conseguiam uma “vaguinha”, tentando
mesmo comprar a passagem ali na hora. Em vão.
Os
três ônibus, marcados para sair às 10h, só começaram a viagem às
11h 30min. De cara, uma preocupação: o tão falado wi-fi do ônibus
ficou fora do ar assim que saímos do posto. Não seria possível a
comunicação com o mundo exterior pela internet.
Primeira
parada dos ônibus foi em uma cidade na divisa do estado do Rio com
São Paulo, do lado de lá. Todos almoçamos, usamos os banheiros,
o wifi do restaurante era bom, tudo ali
estava tranquilo. O tempo passou bem rápido para mim, e não me
sentia nem um pouco cansado.
Quando
fomos partir, uma surpresa: havia um “clandestino” no nosso
ônibus, um cidadão que não tinha passagem mas embarcou mesmo
assim. Esse torcedor não pôde voltar ao ônibus, ficando por ali
naquela cidade mesmo.
A
viagem, fora o wifi, continuava tranquila. Nem senti o tempo passar.
Quando vi, já era noite. Depois de mais uma parada, continuamos o
nosso percurso. Havia três motoristas, que se revezavam, em cada
ônibus; assim não pararíamos para dormir, a viagem seguiria
madrugadas a dentro.
Finalmente,
peguei no sono, já era tarde da noite. Quando acordei, estávamos em
Foz do Iguaçu, prontos para cruzar a fronteira com a Argentina. E
foi aí que começaram os problemas.
Lembram-se
que eu mencionei
um passageiro clandestino no ônibus anteriormente? Pois é, a
checagem dos documentos antes da saída do Rio não foi lá muito
rigorosa... no posto de fronteira, os três ônibus ficaram parados
por algumas horas, porque havia passageiros que não estavam com a
carteira de identidade, documento necessário para a entrada na
Argentina. Tinham CNH, carteira de trabalho, menos a identidade (ou
passaporte). Conversa daqui, conversa de lá, no final não teve
jeito. Os rubro-negros sem a identidade ou passaporte tiveram que
deixar os ônibus e ficar no Brasil. Depois soube que a empresa que
fretou os ônibus, patrocinadora do Flamengo, conseguiu passagens
aéreas para que aqueles dois ou três fossem para o Peru. Parece que
tiraram passaportes de emergência na Polícia Federal de Foz.
Bem,
após a espera de mais de três horas na fronteira com a Argentina,
finalmente conseguimos entrar no país hermano.
Só que, dos três ônibus, dois “se mandaram” na frente e
deixaram o terceiro, no qual eu estava, para trás, sozinho. No
início não achei motivo para alarde, mas depois veríamos porque os
três ônibus deveriam estar sempre juntos.
Nossos
três motoristas, logo apelidados de “Os Três Patetas”, pareciam
que não sabiam o caminho. Eles tinham um mapa de papel,e parece que
só um havia feito aquele trajeto antes. Deveriam os três ônibus
andar juntos para seguir o caminho correto. Mas não. Nos deixaram à
própria sorte com os Três Patetas e seus desvios no trajeto. Como
não sabiam onde ir, também não sabiam onde parar, e as paradas
daqui para frente foram em lugares, digamos, muito longe das
condições ideais.
Num
barzinho argentino na beira da estrada, numa de nossas paradas,
assisti pela TV a invasão da torcida no caminho do ônibus do Fla
que iria do Ninho do Urubu até o aeroporto, contrastando com a saída
do River, sem aquela massa de torcedores em volta. Fantástico.
Voltamos
ao ônibus. Mais algumas horas vendo mato nos dois lados da estrada,
começamos a subir. Era a Cordilheira dos Andes. Subimos, e subimos,
e subimos... o ar ficou rarefeito. Muitos começaram a passar mal.
Eu, incrivelmente, não senti nada. Mas um rapaz sentado na frente do
ônibus sentiu e, quando ele começava a descer a escada (os ônibus
tinham 2 andares), desmaiou. Caiu escada abaixo. Dos males o menor:
abriu um corte grande abaixo do olho direito, sangrou, mas logo
depois foi atendido se recuperou e estava doido para prosseguir
viagem.
Continuamos
a subir e chegamos à fronteira da Argentina com o Chile. Que estava
fechada. Por causa dos atrasos devido aos Três Patetas se perderem
no trajeto, chegamos à fronteira depois do horário de fechamento
para os ônibus de turismo, que era às 23h. Chegamos uns 10 minutos
depois, mas estávamos muito atrasados. Os outros dois ônibus, que
nos largaram de mão, já estavam no Chile fazia horas.
Nosso
ônibus, então, desce um pouco na estrada e para em um posto, onde
passaremos a madrugada até a abertura da fronteira, às 8h.
8h
da manhã do dia seguinte, a fronteira reabre, mas nosso ônibus não
está lá. Os três patetas resolveram SAIR às 8h de onde estávamos,
e não CHEGAR na fronteira naquela hora. Resultado: quando finalmente
chegamos na fronteira já havia outros ônibus de turismo na nossa
frente. E haja demora na travessia.
Enquanto
aguardávamos, parados no alto do morro, resolvemos sair um pouco do
ônibus. Esticar as pernas. E, quando olhamos para trás, o que
vemos: um ônibus da torcida do River Plate! Todo mundo ficou meio
ressabiado, “será que vai rolar briga aqui?”, mas era o
sentimento também dos torcedores argentinos. Alguns vieram falar
comigo, que emendei um espanhol bastante meia-boca mas conseguimos
nos comunicar.
Ao
meio-dia conseguimos cruzar a fronteira com o Chile. E, no Chile,
mais morro e deserto. Ficamos sabendo que os dois ônibus que nos
largaram ficaram parados num protesto na estrada. Bem feito.
Nossos
motoristas, perdidos, pararam em alguns locais para pedir informação.
Sorte que nos indicaram os caminhos certos. Numa parada, o ônibus
foi abastecer. Na hora de pagar, os Três Patetas não tinham peso
chileno, a moeda local. Um torcedor pagou o combustível no cartão
de crédito. Mas vamos que vamos.
Chegamos
à fronteira com o Peru. Nessa não demoramos muito. Mas ainda
tínhamos um longo caminho a percorrer. Depois de tanto subir
montanha, achamos que tudo melhoraria agora, pois iríamos pelo
litoral. Ledo engano. As estradas no litoral do Pacífico são em
cima do morro – a gente via o mar lá embaixo. E a estrada é
estreita, parece que a qualquer momento o ônibus iria despencar
de lá de cima.
Num
movimento brusco do ônibus, outro torcedor machucou o ombro,
deslocando a clavícula. Enquanto ele reclamava que queria ser
atendido num posto de saúde ou hospital, estávamos próximos apenas
de cidades pequenas, e, se desviássemos do nosso trajeto, talvez nem
chagássemos a
Lima a tempo do jogo. Acalmamos o rapaz e falamos que quando
chegássemos a uma cidade maior, como Cusco, a chance de ter um
hospital seria bem maior.
Chegamos
a Cusco. Estávamos mais perto da cidade da Final, Lima. O rapaz que
lesionou o ombro foi embora para um hospital e abandonou o ônibus.
Seguimos viagem. Estávamos na noite de sexta-feira, dia 22/11. Era
para termos chegado naquele dia à tarde em Lima, mas, por causa de
tantos contratempos, estávamos muito atrasados.
Quando
derradeiramente chegamos a Lima era manhã de sábado dia 23/11, dia
da final. Eu estava cansado, revoltado com o atraso, sem tomar banho
há 2 dias... mas feliz de ter chegado. Fui para o albergue que havia
reservado, mas porque chegamos tarde (minha reserva começaria na
sexta), eu perdi a reserva. Logo, não teria lugar para ficar. Por
muita sorte, o atendente do albergue me indicou um outro albergue,
próximo dali, em que havia apenas UMA vaga disponível. Saí
correndo para garantir o quarto, mas o check-in só estaria
disponível às 15h. 15h era o horário do início da partida. Eram
onze e trinta da manhã. Fui num banheiro coletivo do albergue e
tomei banho, depois de dois dias. Deixei minha mochila na “sala de
malas” (pois não podia entrar no quarto, só após o check-in) e
saí. Parei num boteco para comer alguma coisa (um sanduíche e uma
coca-cola). Peguei um táxi
e fui para o ponto final (ou inicial) de um ônibus especial que
levava os torcedores até o estádio.
Cheguei
ao estádio próximo das 13h. A entrada foi tranquila, apesar de
andar bastante pois o estádio era longe de onde os policiais
montaram as barreiras impedindo o trânsito de veículos. A polícia
também, não deixava entrar com nada: faixa, bandeiras, cartazes...
tudo deve que ser deixado num muro próximo à entrada.
Entrei
no estádio, arquibancada toda cheia de pó (não aquele pó...) e
grades separando os torcedores do gramado. Para quem já se acostumou
com os novos padrões dos estádios brasileiros, parecia uma viagem
aos anos 90.
Não
estava nem um pouco cansado naquela hora, apesar de tudo. Ainda tive
que aturar a abertura com um show de Anitta e uns cantores argentinos
que nem sei quem eram, uma enrolação da Conmebol antes do que
interessava: a partida. Depois de 6 dias de viagem, passando por
quatro países, era chegada a hora da ver o Mengão campeão. O que,
como todos sabem, aconteceu da forma que aconteceu.
Bem,
esse foi meu relato da viagem de ida para a final da Libertadores de
2019. A minha “Ilíada”, por assim dizer. Já a “Odisseia”, a
viagem de volta, foi bem mais tranquila. Dessa vez, os três ônibus
foram em caravana, um atrás do outro. Muita gente não voltou no
ônibus, seja porque já tinham passagens de avião, seja por medo
mesmo; medo de acontecer novamente o que aconteceu na ida. Esses
ficaram no Peru e ganharam, da empresa que fretou os ônibus,
passagens aéreas para voltarem, como forma de desculpas. Mas tinham
que ficar em Lima por mais uma semana, pois o avião só partiria no
sábado seguinte. Eu, como tinha que voltar ao trabalho e nem
dinheiro tinha mais, fui no ônibus. Na quarta-feira dia 27/11
estávamos em Foz do Iguaçu, de onde assistimos, num restaurante, a
vitória do Flamengo sobre o Ceará pelo campeonato Brasileiro. Nos
primeiros minutos da sexta-feira estava chegando em casa, no Rio, com
a missão cumprida e boas histórias para contar.
Jean Valjean
Jean Valjean