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Saudações flamengas a todos.
2004. Buscando soluções para a montagem de um
time a partir de um elenco de baixo orçamento e visivelmente limitado, a nova
Diretoria do Flamengo recorre a Abel Braga, nome em ascensão no mercado
nacional de treinadores emergentes, com passagens bem-sucedidas pelo futebol
português e com certa experiência (e alguns títulos) em equipes brasileiras,
como Vasco, Botafogo, Atlético-MG, os três principais do Paraná, Vitória, Santa
Cruz e Internacional, onde conseguiu o Vice Brasileiro de 1988 e chegar às Semifinais
da Libertadores do ano seguinte.
Abel inicia a temporada com o seguinte
time-base: Júlio César, Rafael, Júnior Baiano, Fabiano Eller, Roger; Da Silva,
Ibson, Fábio Baiano, Felipe; Jean, Andrezinho.
Os resultados iniciais mostram-se
preocupantes. É bem verdade que o Flamengo, pela Taça Guanabara, consegue uma
virada espetacular sobre o Fluminense de Romário, Léo Moura e Ramón (desfalcado
ainda de Edmundo e Roger Flores), revertendo de 1-3 para 4-3 um jogo em que o
Maracanã ferve ao som de “Poeira”. Mas na sequência o rubro-negro acumula um
psicodélico empate em Maceió em 4-4 contra o modesto CRB-AL, pela Copa do
Brasil e, em Edson Passos, sofre virada semelhante ao do “Fla-Flu da Poeira”,
ao ser derrotado pelo América pelos mesmos 3-4 do clássico. São ONZE gols
sofridos em três jogos. O sistema defensivo da equipe, evidentemente, não
funciona. É necessário agir.
E o treinador não titubeia. Saca Júnior
Baiano, Andrezinho e Fábio Baiano da equipe, promove o retorno do veterano
Zinho ao meio e efetiva o jovem Henrique na zaga. Na frente, o garoto Diogo
(que estreara de forma retumbante, marcando quatro gols em dois jogos) ocupa o
lugar de Andrezinho. Dá certo de início, mas Abel, sentindo a necessidade de
compactar ainda mais o meio, saca Diogo e entra com mais um volante, no caso
Douglas Silva. Felipe vai para a frente, jogar na ponta-direita. Com essa
formação (e poucas variações), o Flamengo, com um time substancialmente
defensivo, conquista, com inesperada facilidade, o Estadual e chega às Finais da
Copa do Brasil, comandado por Felipe, que chega à Seleção. Depois, sucumbirá às
limitações do elenco e do próprio treinador, o que foge ao escopo dessas
linhas.
Mexer no que não está funcionando.
Passam-se quinze anos.
2019. O Flamengo mudou. Saneado e capaz de
grandes investimentos, o rubro-negro monta um dos mais fortes elencos do país.
Um plantel que, a despeito de alguns pontos fracos, reveste-se de plena
capacidade de conquistar os principais títulos em disputa e, principalmente,
quebrar um jejum nacional/internacional de taças que já avança para o seu sexto
ano, marca sem precedentes na história recente do clube. E, para comandar um
grupo formado por nomes como Arrascaeta, Gabigol, Bruno Henrique, Rodrigo Caio,
Diego Alves, Everton Ribeiro, Diego Ribas, Vitinho, Cuellar etc, o rubro-negro recorre a Abel
Braga.
Abel, que vê se aproximar o crepúsculo de uma
carreira vitoriosa, Campeão Brasileiro, Continental e Mundial, é escolhido por
seu perfil experiente e pragmático, capaz de trazer competitividade a um elenco
que havia demonstrado, nas últimas temporadas, certa incapacidade de lidar com
momentos de pressão extrema. A opção flamenga (decorrente da recusa de Renato
Gaúcho à proposta do clube) é repelida pela torcida, que ansiava por um nome
mais “antenado” e “moderno”, preferencialmente estrangeiro.
Cinco meses depois, a avaliação do trabalho de
Abel Braga converge, na mais benevolente das abordagens, à sensação de que
falta algo. Ao senso comum, é ruim mesmo. Bem ruim. Abaixo da crítica.
Medíocre. A ponto de ter sua permanência no comando do clube seriamente questionada,
mesmo (segundo alguns) em caso de classificação logo mais, na “guerra” contra o
Peñarol em Montevideo.
O que está dando errado?
Abel sempre foi um expoente do tal “futebol
reativo”, nome moderninho para designar as equipes que gostam de atuar retraídas,
em velocidade, no contragolpe. Seus times, por mais qualificados que fossem,
usualmente atuavam exercendo pressão inicial e, conquistada a vantagem no
marcador, entrincheiravam-se atrás da linha da bola para, aproveitando o
desespero do oponente, fustigá-lo e abatê-lo em estocadas certeiras. Ou, em
contingência, “estacionar o ônibus” na porta da área e garantir o resultado com
suor e sofrimento.
Assim o treinador construiu sua carreira.
Assim ganhou e perdeu. Assim se fez admirado, respeitado, rejeitado e odiado.
Eis que a versão 2019 do “Abelão” resolve
“reinventar-se”. O treinador, que cansou de suspirar à imprensa as virtudes do
elenco flamengo, ao mais perfeito modo “ai, se eu te pego...”, acena com uma
forma de jogo mais arejada. Marcação alta, pressão no campo adversário,
triangulações e infiltrações dos lados do campo, jogo de posse de bola. Uma
posse mais “nervosa”, vertical, mas, ainda assim, posse. Algo mais compatível
ao perfil do elenco do Flamengo, e efetivamente ao que o rubro-negro tem
apresentado, salvo exceções, nos últimos dois/três anos.
Problema é que Abelão nunca foi disso.
Esta
coluna, publicada no dia da graça de 30 de janeiro de 2019, já questionava
a possibilidade de Abel, ao fugir de suas características inatas, ver naufragar
seu trabalho nas mesmas águas onde feneceu Muricy Ramalho, que em nenhum
momento logrou montar uma equipe minimamente confiável. E a constatação é a de
que esse risco é cada vez mais palpável. É bem verdade que o Flamengo de 2019
já conquistou algumas taças de relativa expressão (raivosamente defendidas pela
nova Diretoria, ao melhor estilo “Mozer”. Como é mais fácil ser pedra…), algo
de que Muricy sequer chegou perto. Mas, a exemplo do consagrado ex-treinador de
São Paulo, Inter e Santos, Abel não consegue trazer equilíbrio à equipe, que se
ressente de uma defesa exposta e vulnerável, que não transmite a mais remota confiança,
sofrendo gols e mais gols sempre que fustigada (semana passada, quando o
Flamengo pressionava para empatar o jogo contra o Internacional, cheguei a
comentar num grupo de WhatsApp: 'se o Flamengo empatar, não vai demorar pra
levar o segundo'. Não deu outra). Um time que até funciona quando se presta a
pressionar. Mas que entra às raias do colapso quando confrontado e espremido em
seu campo.
Repetindo o que se foi escrito por aqui, Abel
não foi contratado pra dar espetáculo, pra emular o Flamengo de Coutinho, pra
revolucionar o futebol brasileiro. Abel veio pra competir, guerrear e vencer,
mesmo que jogando lateral na área. Pra fazer o que sabe. Estacionar ônibus e
meter contragolpe. Seguir sua natureza. A partir do momento em que tenta emular
uma forma de jogo cuja execução não é simples e com a qual não está habituado,
cai na vala comum dos jovens imberbes ou dos nomes inexpressivos de mercado.
Torna-se incapaz de repetir o desempenho de um Dorival. De um Barbieri. Porque
não é a sua praia. Seu métier. Sua expertise.
Poderia mencionar as escolhas equivocadas e a
repetição daquilo que sempre foi o ponto fraco de Abelão ao longo de sua
carreira, no caso, a dificuldade de interpretar e interferir no que ocorre no
gramado durante os 90 minutos. Seguramente dedicaria linhas e parágrafos para
“enaltecer” a colossal bobagem em apostar num jogador inócuo como Willian Arão,
um atleta de nível periférico que detém severas deficiências em todos os
aspectos do jogo (técnico, tático, físico e mental). Um “volante” com índole de
meia, cuja presença na equipe inviabiliza qualquer tentativa de se construir um
sistema defensivo sólido e robusto. Há outras opções equivocadas (resiste em se
desvencilhar de Diego, atrapalha-se com as posições de Gabigol e Bruno
Henrique, demonstra aguda incapacidade em fazer Arrascaeta render etc), mas a
insistência em Arão é o grande erro pontual de Abel Braga (repita-se, não o
único). Que, ao contrário de 2004, resiste em identificar e corrigir.
Desnecessário pontuar que o contexto que
enfeixa as coisas do futebol monta-se e se desfaz como nuvens. As verdades
absolutas de hoje são desmentidas em minutos (como mostrou o hilário Grêmio 4-5
Fluminense, com o superestimado Fernando Diniz sendo “demitido” e “recontratado”
um cacho de vezes durante o jogo). De qualquer forma, o ambiente rubro-negro
segue fortemente carregado e adverso, quase hostil, à permanência de Abel Braga
no comando técnico do plantel. Não acredito em demissão em caso de
classificação no “Campeón del Siglo” (e vamos nos classificar, com toda a força
da fé flamenga), mas igualmente não creio em um ciclo muito duradouro além
disso. Ao primeiro tropeço, bandeiras e hashtags tremularão fortes e vibrantes,
troando seus “Fora Abel” aos quatro cantos. Como tem sido desde janeiro.
Não que isso não possa ser mudado. Longe de ser fácil, está nas
mãos de Abel Braga respeitar sua história. Aproximar-se de seu melhor. Ignorar
as vozes que clamam pelo “jogo bonito” e passar a perseguir o jogo que sabe
fazer funcionar. Abel precisa voltar a ser Abel. Entender que, mais importante
que jogar pra frente ou jogar atrás, é jogar certo. Mais relevante que time
propositivo ou reativo é o time que funciona.
Do contrário, sairá pela porta dos fundos.
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Em
tempo: caso a trajetória de Abel no Flamengo seja encerrada, que a Diretoria do
Flamengo, tão diligente em enaltecer os fracassos da mal-sucedida gestão do
Futebol no triênio anterior, adote CRITÉRIOS coerentes para escolher o próximo
treinador. Que traga alguém sabendo o que quer e o que o contratado é capaz de
entregar. Do contrário, daqui a três ou quatro meses estaremos tornando a esse
tipo de discussão. Que já anda bastante cansativa, aliás.