Saudações
flamengas a todos,
Este mês de março tem sido rico em efemérides.
Aniversário especial de jogador vivo, de jogador que se foi, as já tradicionais
saudações “Natalinas”, enfim. Efemérides são úteis para nos fazer recordar as
obras e as trajetórias de figuras caras à nossa memória, ajudando a mitigar o
risco de que suas passagens restem reduzidas a manchas progressivamente
opalescentes em alguma fresta da nossa memória.
No entanto, a recente oferta de lembranças
evocando datas importantes de figuras que demarcaram de forma tão expressiva a
história flamenga fez-me irromper uma inusitada reflexão. Pois. Há jogadores
que sucumbem ao desafio de se erigir à estatura do Manto Sagrado. Outros o
transpõem, não sem certa dificuldade. Há alguns, no entanto, em quem o sacro
pano em negro e rubro se lhes veste suave, diáfano, quase se amalgamando à
pele. E há, por fim, os que, mais do que inteiramente à vontade nas terras
flamengas, logram conquistar vitórias, galardões, troféus e, principalmente,
corações. Não são guiados, guiam. A esses está reservado o bálsamo da primazia
da idolatria.
E se chega ao ponto da minha introspecção.
Neste ano da graça de 2019, completam-se
exatos quarenta anos desde que me vi, pela primeira vez, torcendo e gritando em
um jogo do Flamengo. Dessas quatro décadas pra cá, contam-se nos dedos das mãos
a quantidade de jogadores que me vi erigindo à condição de ídolos. Na verdade,
nos dedos de tão somente uma das mãos. Evidentemente, a coleção de soldados do
Manto pelos quais nutri profunda simpatia, admiração e até reverência é um
tanto mais ampla, embora igualmente não muito vasta. Donde, pus-me a pensar na
coisa.
E, nesse processo, grandes jogos, atletas,
temporadas, vão-se passando como um filme. Sensações adormecidas pousam em
retorno à mente, momentos de euforia, êxtase e dor giram em uma farândula que
faz passar décadas em segundos. Um processo do qual emerge, à guisa de “hall da
fama” (na falta de termo menos vulgar), uma relação de “eleitos”. Os jogadores
pelos quais desenvolvi, em minha existência de torcedor, algo mais do que o
mero contrato em que se reza que “vestiu rubro-negro, não tem pra ninguém”,
cujo corolário faz concluir que, a partir do momento em que não representa mais
nossas cores, resta a vala do anonimato.
Assim, trago, de minha mais absoluta convicção
pessoal, que não precisa nem deve ser semelhante à de mais ninguém, duas
listas. Uma, contendo aqueles que foram admirados, reverenciados, queridos,
festejados. A outra, bem mais restrita, contendo os jogadores que por mim foram
idolatrados. A eles, pois.
OS QUASE-ÍDOLOS
LEANDRO
Encabeça a lista justamente o jogador que
motivou estas reflexões. Homenageado com toda justiça nestes últimos dias,
Leandro talvez tenha sido o último dos atletas com alma de amador. Defender o
Flamengo se lhe bastava. Ignorando as severas limitações físicas que lhe
impunham a desumana necessidade de suportar dores lancinantes a cada partida,
Leandro exibiu durante cerca de uma década seu futebol exuberante, luxuoso,
sofisticado, uma espécie de Domingos reencarnado. Seja como zagueiro ou
lateral, cada desarme, cada intervenção fazia-me o chão sumir, desconcertado
com o nível do seu talento. De personalidade extremamente sensível, emotiva,
sempre à flor da pele, o “Peixe-Frito” era como aqueles passarinhos aos quais
só interessa voar em liberdade, pleno, sem amarras, gritando de peito aberto
sua alegria de ser rubro-negro. Impossível manter-se indiferente à forma como
exalava Flamengo em todos os seus poros.
ZÉ CARLOS
Quando somos crianças/jovens, em algum momento
chega a desagradável hora de, nas peladas de rua, ir para o gol. Logicamente,
aconteceu comigo. E eu não me apertava. A cada defesa, desajeitada ou não (até
que eu me virava bem), gritava, a plenos pulmões o nome do goleiro flamengo “da
hora”. Mas foi Zé Carlos quem me suscitou o maior prazer na incorporação do
papel. Com efeito, o “Zé Grandão”, desde que entrou no meio de um jogo contra o
Bangu, substituindo por contusão o instável Cantarele, a quem acabou barrando,
encantou-me com um carisma advindo de uma simplicidade e uma genuína vontade de
defender as cores flamengas. Bem antes das atuais “comemorações” midiáticas de
defensores que esbravejam com estardalhaço um simples desarme, Zé Carlos
exalava um prazer e uma satisfação arrepiantes a cada vez que impedia que o
negro e rubro bastião inexpugnável fosse vazado. Uma alegria surda, digna, que
saltava dos olhos. Zé Carlos era aquele cara que a gente torcia pra dar certo.
Pra fazer as coisas acontecerem. E, efetivamente, o fez. Intervenções
portentosas em jogos grandes, decisivos (Goiás-90, Atlético-87, Vasco-86, entre
várias outras). Uma pena que, quando voltou anos mais tarde, não exibiu o mesmo
nível. Houve goleiros melhores, mais completos. Houve goleiros de passagem mais
duradoura. Mas poucos foram tão marcantes como Zé Carlos. O “Zé Caaaaaarlos”
das minhas peladas de menino.
JÚNIOR
Uma das figuras mais emblemáticas de toda a
história do Flamengo, colocando-se a serviço das cores rubro-negras por quase
vinte anos. Primeiro foi o Capacete, bravo escudeiro de Zico, tido como seu
sucessor natural na tarefa de liderar a equipe dentro de campo após a saída do
Galinho para a Udinese. Mas não houve tempo, pois Júnior acabou seguindo a rota
dos “fuoriclasse” da época, indo brilhar em campos italianos. Sua saída, em
1984, a poucos dias das Semifinais da Libertadores (em cuja Primeira Fase o
Flamengo, num grupo dificílimo, voou e cravou a melhor campanha do torneio),
foi mais um duro golpe do qual se demorou a absorver. Sem Júnior, perdeu-se um
pouco da malandragem sadia, da malícia, da habilidade, da versatilidade e da
irreverência que se revestia numa segunda pele flamenga capaz de esmurrar um
torcedor do Fluminense que, invadindo o gramado do Maracanã, ousou tripudiar do
Manto Sagrado. Voltou anos depois, e aí estampou-se a segunda etapa da sua
trajetória. Agora era o “Vovô Garoto” que, como um vinho que soube maturar com
primor, contrapôs com classe o ímpeto gaiato de uma jovem geração que surgia.
Enfim, o timoneiro, o comandante que levou o Flamengo a mais duas conquistas
nacionais, entre outros títulos. O Maestro. Júnior, por tudo o que significa e
o que significou, evoca-me reverência. Respeito. E gratidão.
PETKOVIC
Marrento, enfezado, encrenqueiro, criador de
caso. Mas dotado de um talento cintilante. Admito que um Camisa 10 típico,
daqueles que chegam a andar meio de lado, com aquela passada de boleiro, um
Camisa 10 desses é algo extremamente prazeroso de ver atuar. E Petkovic era
desses. Dono de um drible curto e desconcertante, exímio finalizador, ótimo
lançador, o sérvio chegou a me fazer deslocar para o inóspito Estádio do
Barradão para apreciar seu luxuoso talento ainda defendendo as cores do EC
Vitória. Mais tarde, já no Flamengo (com cuja contratação exultei), mostrou-se
flamante, porejando passionalidade em seu futebol nervoso e sua incrível
capacidade de arranjar desafetos. Protagonista dos dois mais festejados títulos
do Século XXI e ao mesmo tempo capaz de processar o Flamengo em semana de jogo
decisivo (Semifinais da Copa Mercosul, 2001), Pet foi daqueles caras
peculiares, incapazes de suscitar qualquer sentimento que remeta à indiferença.
Daqueles que se ama odiar. E amar.
ROMÁRIO
A segunda quinta-feira do ano pode ser apenas
mais um dia útil, sem nada especial no calendário. Não para os baianos, que
nesse dia comemoram a Lavagem do Bonfim, mais importante festa pré-carnavalesca
do verão. E foi num dia de Lavagem do Bonfim que, após dias de apreensão, foi
confirmada a bombástica contratação de ninguém menos que Romário, o melhor
jogador do planeta, Campeão Mundial meses antes na Copa dos EUA. Completamente
mergulhado num porre de felicidade, lembro-me de parar o trânsito do Centro de
Salvador dançando no meio da rua, qual um trôpego Gene Kelly, aos gritos de
“Romááááááário!”. O sujeito tinha tudo para virar-me ídolo. Mas, em que pese
uma trajetória que varou meia década, faltou clube e jogador se “entenderem”
melhor. Romário foi, seguramente, na minha opinião, o melhor atacante que vi
vestir as cores rubro-negras. Desnecessário tecer loas à sua eloquente
capacidade de marcar gols e mais e mais gols. Irrequieto, provocador, polêmico
ao extremo, e genuinamente impressionado com o ardor da Nação Flamenga, Romário
viveu uma passagem que, embora tão prolífica em gols, mostrou-se pálida em conquistas
(nas quais, ironicamente, foi coadjuvante ou mesmo ausente nos momentos
finais). Restou a frustração que marcou uma Era.
ADRIANO
“Aos súditos, eis o Imperador!”. O menino grandalhão e
meio desengonçado, que, aos insultos de “boneco de posto”, saiu da Gávea quase
escorraçado, voltou consagrado como um dos mais letais atacantes do mundo. E,
após tolerar coisas como Dimba, Dill, Negreiros e Josiel, vi pousar diante dos
meus olhos aquele leviatã de dimensões descomunais devastando, qual um trator,
sistemas defensivos inteiros. Um monstro imparável, imarcável, indomável. Que
retormou ao Rio para ser feliz de pés descalços marcando gols pelo Mengão.
Durou um ano. Um ano turbulento, regado a gols, troféus e encharcado de
confusões e escândalos. Adriano apenas queria ser feliz na favela em que
nasceu. E nos fez feliz. De um jeito meio estabanado, abilolado, quase
irresponsável. Mas fez. Com todos os problemas, com todo o sofrimento de uma
“Ressaca do Hexa” que durou meses, com toda a deprimente tormenta à qual a
Nação Rubro-Negra foi forçada a se submeter, Sim, Adriano me deixou enfurecido
com suas confusões e sua imaturidade. Mas é impossível deixar de lembrar com
carinho da sua passagem tão efêmera quanto grandiosa.
OS ÍDOLOS
GAÚCHO
“Ê ô, ê ô, o Gaúcho é um terror!”. Até hoje me arrepio à
lembrança de 70, 80 mil vozes cantando e gritando em festa, camisas girando às
mãos, as peripécias de Gaúcho. Era o início dos anos 90, e Gaúcho, centroavante
de técnica mediana e cabeceio mortífero que andava encostado no Palmeiras foi a
improvável solução que o Flamengo arrumou para fazer a torcida se esquecer de
vez do apóstata Bebeto. Coisas do Flamengo. Gaúcho, cria da Gávea que, a
exemplo de Nunes, precisou ser dispensado e correr mundo até ser repatriado,
“chegou chegando”, assumindo responsabilidade, marcando gol atrás de gol. Não
demorou pra se tornar o “menino grande” que, junto com a brilhante “Geração
90”, tornou-se a cara de um time competitivo e vencedor. Carismático, virou
“Seu Boneco”, mandou “beijinho beijinho, tchau tchau” aos botafoguenses,
decidiu jogos e campeonatos. Ergueu taças. E bagunçou o coração de uma torcida
que, após alguns anos de apreensão, enfim se via representada em campo com
talento e sangue. Quando o Flamengo ganhava, eu ficava feliz. Mas, se a vitória
viesse com gol de Gaúcho, aí a festa estava completa. Gaúcho foi a essência do
que eu penso de um atacante, de um Camisa 9. Um jogador que vivia do e para o
gol. Vertical. Sem floreios. Recebeu, manda. Nisso, decidia jogos e tirava
onda. Machucava rivais. Não pipocava (certa vez, na Bombonera, esbofeteou um
zagueiro que o intimidava). Mas o futebol cobra preços. E um dia, Gaúcho precisou
ir embora. Restou a saudade de tardes de sol faiscante, em que uma torcida
enlouquecida estremecia o Maracanã enquanto os Gaúcho's Boys rodopiavam em mais
um trenzinho à beira das gerais. Sim. Foi muito intenso. Foi febril. Foi
Flamengo.
RENATO GAÚCHO
“Esse time do Inter, pra chegar ao nível do nosso,
precisava de mais uns seis jogadores. Não tem a menor condição de nos tirar o
título no Maracanã”. Poucos mortais teriam a capacidade de, a poucos dias de
uma nervosa Final de Campeonato Brasileiro, desferir tal petardo sem sequelas
futuras. Mas Renato Gaúcho, detentor de uma autoconfiança que resvalava à
insensatez, falava, provocava e fazia acontecer. Era arrepiante a sua
capacidade de agigantar-se nos grandes palcos, de crescer nos momentos que separavam
os homens das crianças. Tal como o Flamengo. Bon-vivant, falastrão e mesmo
capaz de angariar amizades e desavenças (muitas das quais movidas por ciúmes),
Renato, a despeito da personalidade controversa (que, suspeita-se, derrubou
treinadores e mesmo dirigentes), era dos que puxavam fila em treino. Jamais
sonegou uma gota de suor dentro dos gramados, exigindo dos companheiros o mesmo
comportamento. Um verdadeiro dínamo de sangue e músculos, fazia o diabo com as
defesas adversárias, semeando terror e caos entre torcidas em pânico. Meus
olhos brilhavam, febris. Sempre vi naquela máquina de dribles e arrancadas algo
de Flamengo em essência. De vitalidade. De vontade de vencer. De se negar a
sair de campo derrotado. Talvez por isso, tenha se conectado tão bem ao
rubro-negro, ao qual sempre se manteve atraído qual ímã. Quatro passagens,
algumas vitoriosas (dois títulos nacionais), outras controversas. Lembro-me de,
numa delas, jogar peladas com uma fita na cabeça, emulando o sujeito.
Infelizmente, depois virou treinador e andou, em outros clubes, falando umas
bobagens. Também, contrariando seu comportamento nos gramados, já deu umas
pipocadas quando confrontado com a oportunidade de se reencontrar com o Flamengo.
Enfim. Se o Portaluppi atual parece algo reticente e assustado com a expressão
e a grandeza do Flamengo, resta a lembrança da época em que o camisa 7 (depois,
9) arrebentava defesas dentro e fora de campo. Do tempo de uma relação que foi
intensa e pulsante enquanto durou.
ZICO
Complicado
falar de Zico sem cair no lugar-comum. O Galinho, mais do que ídolo, foi meu
super-herói de infância, o 10 do meu jogo de botão. O cara que comandava o
Exército do Bem, engalanado de vermelho e preto, contra as coloridas falanges
do Mal. E que, invariavelmente, vencia jogos e taças. Zico executava com
perfeição todos os fundamentos da bola, sabia atuar em todas as posições do
meio pra frente, possuía notável inteligência e leitura de jogo. Mas o que mais
tornava-lhe especial era a forma como se entregava de maneira quase desumana ao
ímpeto de defender as cores flamengas. A absoluta recusa de sair de campo sem
que o Flamengo retivesse a última palavra. A competitividade extrema, sem
concessões. Tudo isso dentro do mais perfeito espírito de jogo limpo, ético.
Exemplos que levei, e levo, para toda a vida. O que Zico sofreu e padeceu
durante dois anos, e sua espetacular reviravolta por cima, Brasil a seus pés, é
algo de roteiro de Hollywood. Zico, mais do que a personificação do Flamengo,
era o próprio Flamengo em campo. Poucas instituições se confundiram de forma tão
indelével com um atleta como a relação estabelecida entre o Flamengo e Zico. Uma
relação cuja energia até hoje movimenta e impulsiona toda uma Nação.
* * *
Restou,
ao final dessa variada rodagem, a constatação de que, com toda a admiração, o
respeito, a reverência e a idolatria que esses, e outros não listados, nomes merecem,
minha relação maior de devoção, de fé, de fanatismo quase religioso, jamais se
estendeu a qualquer jogador, por mais expressivo que fosse. Com efeito, percebo
que nunca, jamais, em tempo algum, ostentei em algum Manto Flamengo algum nome
que identificasse algum atleta do clube. Não que alguém não se me merecesse.
Longe, muito longe, disso. Mas é que, nesse arco de quatro décadas, agora percebo
que, independente de quem venha ou vá, quem de fato arranca-me das entranhas arroubos
taquicárdicos, faz-me perder a vez, a voz e a razão, nubla-me os olhos,
embota-me de sangue a existência, quem me faz rebentar em suspiros e urros
capazes de me sequestrar a existência, é o próprio CR Flamengo em si. O
Flamengo, e não mais do que o Flamengo, é o que paira sobre um altar anímico ao
redor do qual deixo, entregue, minha alma exangue a cada jogo. E assim é, e
assim será enquanto vivo for.
Sou
Flamengo. E uma vez assim, será até perecer. Como no Hino.