segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Abel e a Fatalidade

"Beautiful Boy (Darling Boy)"
Double Fantasy; 1980, Geffen Records
Salve, Buteco! Outro dia por mero acaso escutei novamente, depois de muitos anos, essa música composta por Jonh Lennon em sua carreira solo. Como de costume, a maravilhosa letra continha ao menos uma frase daquelas para emoldurar e refletir bastante a respeito de nossas vidas. Traduzindo, quer dizer mais ou menos o seguinte: "Vida é o que acontece contigo enquanto está ocupado fazendo outros planos." Ah, a vida e sua imprevisibilidade... Ao me recordar de vários acontecimentos da minha vida marcados pelo imprevisto, acabei me dando conta que em muitos (quase todos) os casos o que aconteceu em seguida (de bom e de ruim) teve influência no que eu havia feito antes. Complicado para entender? Nem tanto. Um defeito inesperado no carro ou um vazamento imprevisto no apartamento terão maiores ou menores consequências em meu orçamento a depender do quão organizado e contido sou com minhas finanças. A oportunidade de emprego que eu nem imaginava poderá ser ou não aproveitada a depender do quanto fui persistente e cuidadoso com minha formação. Minha empresa terá maior, menor ou até nenhuma responsabilidade pela morte de um funcionário durante o serviço a depender das condições de trabalho que foram disponibilizadas.

***

Contratações de impacto do meio para frente e promessa de outros investimentos na defesa, ao que parece, dependendo apenas do novo patrocínio master, o qual, alguns dizem, estava bem encaminhado, em vias de ser fechado e anunciado. Apesar da defesa causar preocupação, o cenário era de otimismo, e não poderia deixar de ser diferente, até porque nesse início de ano o calendário é bem menos severo.

Mas aconteceu a tragédia e, com ela, como não poderia deixar de ser, veio a crise.

Administrativa e financeiramente, o clube parece preparado para lidar a crueldade do destino, tendo ou não sido (muito ou pouco) negligente. Já no futebol profissional, apesar do evidente desequilíbrio em investimento no elenco entre os setores defensivo e de criação/ofensivo, o plantel de jogadores está acima das médias brasileira e sul-americana. Um bom treinador não teria dificuldades para bolar um sistema de jogo que permitisse ao clube ser competitivo em todos os torneios que disputará na temporada.

Ah, o treinador... Tem esse pequeno detalhe...

***

Desde 2016 o Flamengo tem por filosofia de jogo valorizar a posse de bola. É bem verdade que muitas vezes o "efeito arame-liso" se manifestou, prejudicando principalmente (na minha opinião) o desempenho em competições eliminatórias. É que também penso que, no Campeonato Brasileiro/2018, o Flamengo provavelmente teria conquistado o título se o houvesse priorizado.

Mas não se deixem perder na polarização sem sentido entre "jogo propositivo x jogo reativo". Até 2018, o Flamengo praticou as duas modalidades, a depender do contexto. Em 2017, por exemplo, os treinadores brasileiros adotaram curiosa estratégia tática de ceder a posse de bola ao adversário jogando como mandante, invertendo-se a equação como visitantes. Foi uma tendência, que ainda hoje tem várias ocorrências na prática. 

O Flamengo de Zé Ricardo cansou de jogar dessa forma e até mesmo em um único jogo pode-se encontrar exemplos exitosos da utilização de ambas as estratégias. O melhor exemplo está nos gols da vitória (2x1) sobre o Atlético/PR pela Libertadores/2017: no primeiro gol, Trauco pega a defesa paranaense desprevenida com um longo lançamento, bem aproveitado por Guerreiro; já no segundo uma troca de passes bem construída encontra Diego bem posicionado para ampliar a contagem.

São múltiplos os exemplos. Com Barbieri, o time decidiu jogos graças à esfuziante explosão de Vinícius Jr., em um jogo no qual foi muito pressionado por noventa minutos, como também com belíssimas jogadas construídas à base da troca de passes desde a própria grande área, como no Fla-Flu de Brasília. Ainda com Barbieri, na mesma partida o Flamengo conheceu o céu e o inferno, suportando massiva pressão do Grêmio e buscando o empate com grande percentual de posse de bola, até encontrar aquela jogada muito bem trabalhada que culminou na finalização de Lincoln.

Valorizar a posse de bola não significa abdicar do jogo reativo, muito menos da bola aérea. Sampaoli que o diga: em seu primeiro clássico, levou o São Paulo às cordas com a intensidade do jogo propositivo, mas o nocaute veio em dois lances, um de bola parada, outro de contra-ataque. Propor o jogo pode inclusive ser estratégia defensiva, como mostrou o Talleres na de Córdoba última quarta-feira, ficando com a bola e com isso impedindo o São Paulo de pressioná-lo. Saiu com a vaga após os noventa minutos, numa zebra para ficar na história das fases preliminares da Libertadores. 

Um time de ponta não precisa propor o jogo o tempo todo e nem em todos os jogos, mas em hipótese alguma pode abrir mão dessa estratégia, tanto mais no caso do Flamengo, que tem um elenco com jogadores de características muito mais propensas ao jogo ofensivo e propositivo. As circunstâncias de um jogo podem levar um time grande e forte a ser muito pressionado a maior parte dos noventa minutos, mas o ideal dificilmente será chamar o adversário para atacá-lo o jogo todo. Aliás, o Flamengo não tem sistema defensivo forte o suficiente para tanto.

O time que tem por filosofia valorizar a posse de bola tem muito mais condições de alterar circunstancialmente a estratégia e jogar de forma reativa do que o contrário.

***

Não deveria, mas ainda me surpreendo com o deslumbramento de profissionais que chegam ao Flamengo. É comum o sujeito encarar o contrato como a independência financeira e se considerar no topo da carreira, o centro das atenções. Acontece muito com atletas, mas acho mais pitoresco quando o fenômeno ocorre com treinadores, em tese pessoas mais experientes e menos suscetíveis ao deslumbramento. Atleta a comissão técnica e a diretoria podem enquadrar, mas e quando o próprio treinador viaja na maionese?

O que diabos pretende Abel? Não é minimamente defensável a ideia de migrar subitamente do Flamengo do último triênio para um time com as características do Palmeiras de Luiz Felipe Scolari. Ao tentar contrariar os fatos e retroceder no tempo, Abel piorou muito um cenário que só poderia ser negativo após a tragédia do Ninho.

É claro que dá tempo de resgatar o que foi feito entre 2016 e 2018 e é óbvio que, com o elenco atual, é possível, a partir desse marco, inclusive subir de patamar. Mas será que Abel enxerga o cenário da mesma forma? Pior: teria ele capacidade para executar essa ideia?

***

A palavra está com vocês.

Bom dia e SRN a tod@s.