Caro, velho, preguiçoso, bichado e decadente.

Virou um come-dorme. Um peso morto.

Assim, para a criticada zaga chega Marinho, destaque do Londrina-PR. A lateral-direita é reforçada com Carlos Alberto, trazido do Joinville-SC (já prevenindo a provável saída de Toninho, que deseja se transferir para o exterior, o que só acontecerá no segundo semestre). Outras apostas são o meia Aderson, vindo do Remo-PA e o atacante Gerson Lopes, recrutado junto ao Operário-MT.
Mas há a “barca”, cujo principal integrante é o encrenqueiro atacante Beijoca, que caiu em desgraça na fatídica derrota para o alviverde, ao esmurrar um palmeirense e ser expulso, o que abriu caminho para a goleada. Beijoca, que se revelou um alto e inútil investimento que virou pó, é devolvido ao Bahia a preço camarada. Não se acerta todas. Junto com Beijoca, o zagueiro Nelson e o atacante Cláudio Adão, em litígio com o treinador Coutinho, também devem sair.
E Raul.
A aparente acomodação com a reserva (é notória a aversão do goleiro a treinamentos), o alto salário e a propensão a lesões engrossam o coro dos que desejam vê-lo fora do Flamengo. É chegada a hora de abrir oportunidades a jovens valores, seja de dentro ou de fora do clube. Se a terceira opção, o novato Hélio dos Anjos, ainda é tido como muito “verde”, que se contrate alguém capaz de fazer a adequada sombra a Cantarele. A questão é que o clube, que ainda convive com limitações financeiras, não pode se dar ao luxo de manter um jogador velho, inútil e caro em seu elenco.
Receptiva a essas perorações, a Diretoria admite negociar o arqueiro. E logo começam as especulações. Interessado no talentoso atacante Chico Fraga, destaque do Náutico-PE, o Flamengo oferece Raul e mais dois jogadores aos pernambucanos visando a uma troca em definitivo. Indagado sobre a transação, Coutinho desconversa, mas nas entrelinhas deixa clara sua posição: “Fraga é um ótimo jogador e nos interessa”. Outra possibilidade, mais sólida, é a venda para o Grêmio, que precisa de goleiro em função da despedida do veteraníssimo Manga, que aos 42 anos está de saída para o futebol equatoriano. Os gaúchos demonstram interesse e o Flamengo aceita conversar ao longo da pré-temporada, que está para começar.

A notícia cai como uma bomba nas hostes do Morumbi. Mas não é possível acomodar, dar um jeito, buscar uma rotina especial? - gritam vozes eivadas de inconformismo. Os médicos cravam, resolutos, em Medicina não existe talvez, ou é ou não é. E Bezerra, a seguir golpeando sua cabeça em jogos de futebol, corre risco de morte. Precisa encerrar imediatamente a carreira.
E assim se fará. E assim se faz. A Diretoria do São Paulo, sensibilizada, anuncia que promoverá um amistoso de despedida para Bezerra. Envidará todos os esforços para que o evento seja concorrido e tenha grande repercussão. E convida a equipe que julga mais apropriada para um jogo de alto nível, um acontecimento de real primeira linha.
O CR Flamengo.
Enquanto vai dando continuidade à montagem do elenco, o rubro-negro volta das férias com alguns problemas para a estreia da temporada de 1980, que será justamente no amistoso contra o São Paulo. Lesões, contratos vencidos e a perspectiva de contar com um time bastante desfalcado preocupam Coutinho, que sabe da importância psicológica dessa partida contra os tricolores. Com efeito, a derrota para o Palmeiras trouxe uma aura de incertezas e voltou a suscitar questionamentos indesejáveis acerca da qualidade da equipe. Outra derrota, especialmente em um jogo contra uma equipe de ponta, terá consequências imprevisíveis. E o Brasileiro já está à porta, começando em poucas semanas.
Nesse contexto, Cantarele aparece com uma torção no joelho. Está fora da pré-temporada, não poderá viajar para São Paulo e para os demais amistosos pelo país. Coutinho ainda cogita dar chances a Hélio, mas é convencido a dar o braço a torcer e se rende ao óbvio.
Escalará Raul.

E uma história pronta para ser escrita. E contada.


É o início de um recital.
Sentindo a falta de ritmo de jogo, o Flamengo não consegue se encontrar. Aceita a forte marcação dos paulistas. Mal passa da intermediária. Zico, irreconhecível, não dá sequência aos lances. E as chances tricolores se sucedem. Todas, invariavelmente, interceptadas por Raul, em uma tarde sacrossanta. Serginho emenda rasteiro, Raul defende. Serginho cabeceia, Raul espalma. Serginho bate de voleio, Raul agarra. Alguém manda de longe, Raul está lá, de mão trocada. Os primeiros 45 minutos se revestem de uma verdadeira aula ministrada pelo veterano arqueiro flamengo. Pasmos, todos perguntam: o que ele estava fazendo na reserva esse tempo todo? Sim, porque se o placar ainda está em branco, e o Flamengo não está perdendo por dois, ou mais, gols de diferença, isso se deve única e exclusivamente às defesas de Raul.


E trila o apito. E termina em 0-0 o espetáculo.

Seja como for, o amistoso no Morumbi traz respostas. Surpresos, os dirigentes flamengos acolhem a enésima lição dada por esse maravilhoso troço chamado futebol. Sim, porque um profissional que ostenta um currículo da envergadura de um Raul Plassmann, até aqui o mais vitorioso jogador do elenco, um atleta desse nível pode ser criticado. Pode ser confrontado. Pode ser cobrado. Pode até ser barrado. Ou mesmo, eventualmente, ignorado. Mas nunca, jamais, descartado. Ainda mais em um plantel sedento das glórias e das conquistas cujo caminho um homem como Raul já trilhou várias vezes.
Porque há os momentos de pressão. E há os instantes de pressão extrema, opressiva, esmagadora, que convidam o atleta a testar os limites de sua existência. E se a maioria sucumbe, cambaleia, se esconde ou simplesmente fenece a essa pressão, há os que nela encontram abrigo e paz. Os anjos bestiais que dela se alimentam.
E esses estão, inapelavelmente, condenados ao êxito.
* * *
* Bezerra somente suportou dois anos de aposentadoria forçada. Em 1982, contrariando as ordens médicas, voltou a atuar pelo modesto Fernandópolis-SP. Em 1985, após rodar por equipes de menor expressão do interior paulista e mineiro, encerrou definitivamente a carreira. Hoje é comerciante.
* Raul seguiu mantendo o alto nível de suas atuações nos amistosos restantes da pré-temporada, o que o fez recuperar a posição de titular do gol do Flamengo. E, como titular, conquistou um Mundial, uma Libertadores, três Brasileiros e um Estadual, entre outros troféus. Encerrou a carreira em 1983.
* No Brasileiro de 1980, o primeiro conquistado pelo Flamengo, o rubro-negro teve a oportunidade de se vingar da goleada sofrida para o Palmeiras no ano anterior. E não a desperdiçou. Numa atuação de gala, enfiou 6-2 nos paulistas, vitória que é considerada o marco inicial da arrancada para aquele título.