Caro, velho, preguiçoso, bichado e decadente.
A cesta de adjetivos pespegada no goleiro Raul neste verão de 1980 não é das mais altaneiras. Com efeito, a usina de verdades definitivas do futebol, ao se deparar com um jogador veterano, dado a lesões, que permaneceu na reserva por praticamente toda a temporada anterior em função de lesões e das atuações de Cantarele, que enfim parece ter se firmado após anos e anos de insegurança, já estampa em fria lápide seu vaticínio. Raul, aos 34 anos, está acabado.
Virou um come-dorme. Um peso morto.
O Flamengo reina onipresente no território estadual (de cujo campeonato é tricampeão sem perder sequer um turno), mas parece incapaz de saltar em busca de conquistas mais robustas, acumulando frustrações nas últimas competições nacionais. A mais recente delas ainda lateja na carne rubro-negra, ferida com a goleada sofrida em pleno Maracanã para o apenas aplicado Palmeiras de Telê (1-4), diante de 120 mil almas atônitas, desastre que selou a eliminação de um Brasileiro pelo qual os flamengos nutriam vasta expectativa (a derrota custou a vaga para as Semifinais). Sensível à voz rouca das bocas malditas, a Diretoria pretende levar adiante uma moderada reformulação. Busca encontrar o elo perdido, o elemento que falta para que esse time, enfim, decole.
Assim, para a criticada zaga chega Marinho, destaque do Londrina-PR. A lateral-direita é reforçada com Carlos Alberto, trazido do Joinville-SC (já prevenindo a provável saída de Toninho, que deseja se transferir para o exterior, o que só acontecerá no segundo semestre). Outras apostas são o meia Aderson, vindo do Remo-PA e o atacante Gerson Lopes, recrutado junto ao Operário-MT.
Mas há a “barca”, cujo principal integrante é o encrenqueiro atacante Beijoca, que caiu em desgraça na fatídica derrota para o alviverde, ao esmurrar um palmeirense e ser expulso, o que abriu caminho para a goleada. Beijoca, que se revelou um alto e inútil investimento que virou pó, é devolvido ao Bahia a preço camarada. Não se acerta todas. Junto com Beijoca, o zagueiro Nelson e o atacante Cláudio Adão, em litígio com o treinador Coutinho, também devem sair.
E Raul.
A aparente acomodação com a reserva (é notória a aversão do goleiro a treinamentos), o alto salário e a propensão a lesões engrossam o coro dos que desejam vê-lo fora do Flamengo. É chegada a hora de abrir oportunidades a jovens valores, seja de dentro ou de fora do clube. Se a terceira opção, o novato Hélio dos Anjos, ainda é tido como muito “verde”, que se contrate alguém capaz de fazer a adequada sombra a Cantarele. A questão é que o clube, que ainda convive com limitações financeiras, não pode se dar ao luxo de manter um jogador velho, inútil e caro em seu elenco.
Receptiva a essas perorações, a Diretoria admite negociar o arqueiro. E logo começam as especulações. Interessado no talentoso atacante Chico Fraga, destaque do Náutico-PE, o Flamengo oferece Raul e mais dois jogadores aos pernambucanos visando a uma troca em definitivo. Indagado sobre a transação, Coutinho desconversa, mas nas entrelinhas deixa clara sua posição: “Fraga é um ótimo jogador e nos interessa”. Outra possibilidade, mais sólida, é a venda para o Grêmio, que precisa de goleiro em função da despedida do veteraníssimo Manga, que aos 42 anos está de saída para o futebol equatoriano. Os gaúchos demonstram interesse e o Flamengo aceita conversar ao longo da pré-temporada, que está para começar.
Neurocisticercose. Larva de tênia/solitária (parasita encontrado em carne de porco mal cozida) alojada no cérebro. O diagnóstico, que enfim traz a causa das lancinantes, torturantes, sufocantes dores de cabeça que se revestem em uma dolorosa e angustiante rotina diária, enfim pode ser uma luz para o ansiado fim desse tormento. No entanto, o preço a pagar é enfeixado por um caráter de crueldade inerente aos mais dramáticos enredos de folhetim. Bezerra, o melhor zagueiro do São Paulo FC, um dos melhores defensores em atividade no futebol paulista e brasileiro, que vive o auge de sua carreira e é especulado para a próxima convocação da Seleção Brasileira, o valente Bezerra, ídolo da torcida são-paulina, terá que parar de jogar futebol. Neurocisticercose. É o adágio implacável, irretorquível e irreversível. Como nos mais tristes filmes.
A notícia cai como uma bomba nas hostes do Morumbi. Mas não é possível acomodar, dar um jeito, buscar uma rotina especial? - gritam vozes eivadas de inconformismo. Os médicos cravam, resolutos, em Medicina não existe talvez, ou é ou não é. E Bezerra, a seguir golpeando sua cabeça em jogos de futebol, corre risco de morte. Precisa encerrar imediatamente a carreira.
E assim se fará. E assim se faz. A Diretoria do São Paulo, sensibilizada, anuncia que promoverá um amistoso de despedida para Bezerra. Envidará todos os esforços para que o evento seja concorrido e tenha grande repercussão. E convida a equipe que julga mais apropriada para um jogo de alto nível, um acontecimento de real primeira linha.
O CR Flamengo.
Enquanto vai dando continuidade à montagem do elenco, o rubro-negro volta das férias com alguns problemas para a estreia da temporada de 1980, que será justamente no amistoso contra o São Paulo. Lesões, contratos vencidos e a perspectiva de contar com um time bastante desfalcado preocupam Coutinho, que sabe da importância psicológica dessa partida contra os tricolores. Com efeito, a derrota para o Palmeiras trouxe uma aura de incertezas e voltou a suscitar questionamentos indesejáveis acerca da qualidade da equipe. Outra derrota, especialmente em um jogo contra uma equipe de ponta, terá consequências imprevisíveis. E o Brasileiro já está à porta, começando em poucas semanas.
Nesse contexto, Cantarele aparece com uma torção no joelho. Está fora da pré-temporada, não poderá viajar para São Paulo e para os demais amistosos pelo país. Coutinho ainda cogita dar chances a Hélio, mas é convencido a dar o braço a torcer e se rende ao óbvio.
Escalará Raul.
Existe, em qualquer trajetória, o que se chama de momentos-chave. A passagem em que se descortina a tal bifurcação de estradas tão explorada nos clichês de desenho animado. Costuma-se dizer que nossos caminhos são definidos por nossas ações. Somos o que fomos e o que seremos, recita pimpão o poeta de guardanapo. Seja como for, Raul se vê envolto exatamente por um desses momentos. Sabe que sua continuidade no Flamengo, e talvez até no futebol, está diretamente relacionada ao que produzir em campo nessa partida. Raul não atua em sequência há praticamente um ano, conta com a desconfiança da Comissão Técnica, da Diretoria, da torcida e da imprensa. Terá um estádio contra si, com transmissão pela TV espraiando seus atos para todo o País. Um ambiente de altíssima pressão, ao qual poucos resistem.
E uma história pronta para ser escrita. E contada.
Tarde de sábado tipicamente paulista, nublada, garoa esparsa. Um Morumbi com 50 mil presentes (público excepcional para um feriadão) se enfeita para uma grande festa. Revoada de pombos, queima de fogos, inauguração do placar eletrônico, preliminar entre veteranos do São Paulo e de uma Seleção Brasileira, a presença de Falcão, craque e estrela do Internacional que acaba de se sagrar Tricampeão Brasileiro, que chega ao estádio de helicóptero, tudo concorre para amplificar as expectativas dos torcedores locais para o prato principal da tarde. O jogão que, além de assinalar a emocionante despedida de Bezerra, também servirá para que o São Paulo apresente aos seus adeptos os seus novos reforços: o treinador Carlos Alberto Silva, o zagueiro Nei, os meias Ailton Lira e Assis (que se destacará anos mais tarde, no Fluminense) e o atacante Paulo César. O Flamengo, por sua vez, estreará Marinho e Carlos Alberto, mantendo ainda a base do ano anterior. Ajustes, sem terra arrasada.
Cinco minutos. a bola vem da direita e chega a Serginho Chulapa, que fuzila rasteiro. Raul mergulha e espalma de forma espetacular. O rebote vai a Zé Sérgio, que, na cara do gol, emenda a bomba. Mas o inacreditável acontece e Raul, caído, voa para espalmar o torpedo a córner. Assombrados, os torcedores murmuram.
É o início de um recital.
Sentindo a falta de ritmo de jogo, o Flamengo não consegue se encontrar. Aceita a forte marcação dos paulistas. Mal passa da intermediária. Zico, irreconhecível, não dá sequência aos lances. E as chances tricolores se sucedem. Todas, invariavelmente, interceptadas por Raul, em uma tarde sacrossanta. Serginho emenda rasteiro, Raul defende. Serginho cabeceia, Raul espalma. Serginho bate de voleio, Raul agarra. Alguém manda de longe, Raul está lá, de mão trocada. Os primeiros 45 minutos se revestem de uma verdadeira aula ministrada pelo veterano arqueiro flamengo. Pasmos, todos perguntam: o que ele estava fazendo na reserva esse tempo todo? Sim, porque se o placar ainda está em branco, e o Flamengo não está perdendo por dois, ou mais, gols de diferença, isso se deve única e exclusivamente às defesas de Raul.
As equipes voltam do intervalo com alterações. No São Paulo, Bezerra, após comovente ritual, dá lugar a Jayme de Almeida (ex-Flamengo). Já pelo rubro-negro, um irritado Coutinho troca Rondinelli por Manguito e Adílio por Andrade. Dá certo. Mais consistente atrás, o Flamengo consegue trocar passes, reter a bola e, enfim, criar chances. Zico melhora, e comanda a equipe, que passa a exigir de Valdir Peres. O goleiro são-paulino também faz bonitas defesas e impede que os visitantes estraguem a festa dos da casa. Mas está escrito que a tarde terá um e um só protagonista.
O São Paulo, cansado pelo esforço da primeira etapa, encolhe suas linhas e passa a atuar em contragolpes, explorando os velozes Paulo César e Zé Sérgio. As chances escasseiam, mas seguem agudas. Numa delas, Assis recebe livre dentro da área e emenda, mas Raul, sempre Raul, está lá. Noutra, Raul neutraliza Serginho pela enésima vez. E assim o tempo vai passando, com o Flamengo mantendo a posse de bola, o São Paulo fazendo o tal “jogo reativo”, num espetáculo que vai compreensivelmente perdendo intensidade com o passar do tempo. Mas ainda resta um último laivo de emoção, nos minutos derradeiros. Júnior tenta emular Domingos dentro da área, erra e perde a bola, que sobra para Paulo César completamente livre, nas franjas da pequena área, pronto para mandar às redes o gol da vitória. E o atacante manda um balaço, alto, buscando o ângulo, como manda o manual. Cinquenta mil vozes se erguem em um grito de gol, bruscamente interrompido diante da visão daquele animal alado em cinza, que num gesto desumano logra esticar-se ao limite das últimas forças, erigindo-se em um sopro místico que roça e desvia a pelota para a linha de fundo. Uma defesa monstruosa, sobrenatural. Depois disso, a verdade indelével é estampada na cara de todos os felizes espectadores do cotejo. Não há força da natureza capaz de varar o arco guarnecido por Raul Plassmann nessa fria tarde de sábado. Resta a uma resignada plateia encharcar-se em caudalosos aplausos ao goleiro do Flamengo.
E trila o apito. E termina em 0-0 o espetáculo.
Uma nuvem de microfones recobre o protagonista da tarde. E Raul não deixa barato. Com a frieza que lhe é peculiar, desfere um cínico desabafo, sem mover um músculo da face ou alterar qualquer átimo do timbre de sua voz: “Bem, acho que resolvi me mexer um pouco, né? Parece que não estou morto, então. Ora veja… De qualquer forma, se estivesse velho já estaria de bengalas, deitado no sofá...”
Seja como for, o amistoso no Morumbi traz respostas. Surpresos, os dirigentes flamengos acolhem a enésima lição dada por esse maravilhoso troço chamado futebol. Sim, porque um profissional que ostenta um currículo da envergadura de um Raul Plassmann, até aqui o mais vitorioso jogador do elenco, um atleta desse nível pode ser criticado. Pode ser confrontado. Pode ser cobrado. Pode até ser barrado. Ou mesmo, eventualmente, ignorado. Mas nunca, jamais, descartado. Ainda mais em um plantel sedento das glórias e das conquistas cujo caminho um homem como Raul já trilhou várias vezes.
Porque há os momentos de pressão. E há os instantes de pressão extrema, opressiva, esmagadora, que convidam o atleta a testar os limites de sua existência. E se a maioria sucumbe, cambaleia, se esconde ou simplesmente fenece a essa pressão, há os que nela encontram abrigo e paz. Os anjos bestiais que dela se alimentam.
E esses estão, inapelavelmente, condenados ao êxito.
* * *
* Bezerra somente suportou dois anos de aposentadoria forçada. Em 1982, contrariando as ordens médicas, voltou a atuar pelo modesto Fernandópolis-SP. Em 1985, após rodar por equipes de menor expressão do interior paulista e mineiro, encerrou definitivamente a carreira. Hoje é comerciante.
* Raul seguiu mantendo o alto nível de suas atuações nos amistosos restantes da pré-temporada, o que o fez recuperar a posição de titular do gol do Flamengo. E, como titular, conquistou um Mundial, uma Libertadores, três Brasileiros e um Estadual, entre outros troféus. Encerrou a carreira em 1983.
* No Brasileiro de 1980, o primeiro conquistado pelo Flamengo, o rubro-negro teve a oportunidade de se vingar da goleada sofrida para o Palmeiras no ano anterior. E não a desperdiçou. Numa atuação de gala, enfiou 6-2 nos paulistas, vitória que é considerada o marco inicial da arrancada para aquele título.