Choque de ordem. Mudar tudo.
Esse
é o mote na Gávea, após a frustrante perda do Estadual, decorrente
de três derrotas seguidas para o Vasco (uma delas ainda pelo
Terceiro Turno). A avaliação que se faz é que o elenco precisa ser
renovado, oxigenado, rejuvenescido. As principais referências já
caminham para a aposentadoria. O time é muito técnico, mas lento e
cadenciado em excesso. O plantel, curto, mostrou severas deficiências
ao longo do primeiro semestre, quando lesões e convocações fizeram
surgir a necessidade de utilizar alguns reservas sem a menor condição
de trajar o Manto. Enfim, o contexto que viabilizou, um ano antes, o
Tetracampeonato Brasileiro, não existe mais. Ao contrário,
aprofunda-se a necessidade, já identificada anteriormente, de se
promover uma profunda reformulação nas coisas flamengas.
Hora
de trocar.
A
primeira mudança parece óbvia. O treinador Carlinhos, visivelmente
desgastado pelo tempo no cargo e pela derrota no Estadual (onde
confrontou o vestiário ao barrar o zagueiro Leandro, tentando
desesperadamente conferir competitividade à zaga), é demitido. Para
seu lugar, a Diretoria faz sondagens por Renê Simões (jovem
talentoso com bom trabalho na Portuguesa e atualmente com contrato no
futebol português) e Valdir Espinoza (Campeão Mundial pelo Grêmio
e no momento dirigindo o Cerro Porteño-PAR). A opção por esses
dois nomes causa estranheza, uma vez que são treinadores de perfil
notadamente liberal no trato com seus elencos. No entanto, nenhuma
das duas conversas avança, por conta de seus compromissos
profissionais. O que faz o Flamengo se virar, enfim, para um nome de
caráter mais disciplinador.
E se
chega a Candinho.
Treinador
com cerca de dez anos de carreira, fortemente vinculado ao futebol do
interior paulista (onde dirigiu, entre outros, XV de Jaú, XV de
Piracicaba, São Bento de Sorocaba e América de Rio Preto), vem em
ascensão, com trabalhos recentes, posto que apagados, em Grêmio e
Santos. Candinho, agora à frente da Internacional de Limeira,
consegue chegar à Fase Semifinal tendo realizado a segunda melhor
campanha geral, o que chama a atenção de outros clubes, como o
Vitória de Guimarães-POR, que lhe apresenta proposta formal.
Mas,
quando o Flamengo aparece, Candinho não pensa duas vezes. Aceita com
entusiasmo o convite, desde que atendida sua principal premissa de
trabalho: “Só dirijo clubes grandes se houver dinheiro disponível
para contratações e liberdade total de atuação. Porque na
primeira fase ruim é o treinador que sobra. Já vi vários trabalhos
durarem três meses ou menos, terminando antes mesmo de começarem”.
Candinho
terá trabalho. A renovação preconizada pela Diretoria não é
meramente retórica. Dois dos principais destaques da equipe, o
atacante Renato Gaúcho e o volante Andrade, estão de malas prontas
para a Roma-ITA. O zagueiro Edinho segue cultivando atritos com
imprensa e torcida. Seu colega, o ícone Leandro, já parece não
reunir condições para atuar profissionalmente, como as Finais do
Estadual demonstraram amargamente. O craque maior, o ídolo Zico,
aparentemente estabilizou a lesão no joelho, mas agora sofre com
sucessivos problemas musculares e mesmo com botinadas de alguns
adversários, mal conseguindo atuar três jogos seguidos. Alguns
reservas, como os zagueiros Aldair e Zé Carlos II, que já
estouraram a idade dos juniores, começam a resmungar pela falta de
oportunidades no time (especialmente por, sempre que chamados,
melhorarem o desempenho da zaga). Restam os nomes no auge/em alta,
como Zé Carlos, Jorginho, Bebeto e Zinho, que já começam a sofrer
o assédio de clubes europeus. Enfim, o Flamengo terá que se
remontar para a disputa do Brasileiro de 1988.
A
cerimônia de apresentação de Candinho é opulenta, ostensiva,
caudalosa. O Flamengo quer transmitir a mensagem de que o novo
treinador, conhecido por sua seriedade, disciplina e exigência por
competitividade, terá todo o apoio da Diretoria para desenvolver seu
trabalho. Instado a expor suas primeiras impressões, Candinho
ressalta que “trabalhar em Londres ou em Arapiraca é rigorosamente
a mesma coisa.” E emenda:
“É
uma baita de uma honra dirigir o Flamengo” - alguns se entreolham,
em silêncio.
O
primeiro trabalho de Candinho é definir a lista de dispensas, a
chamada “barca”. Que sai com nomes como Leandro Silva, Flávio,
Henágio, Luiz Henrique, Vandick, Paloma e Júlio César. Alguns
reforços, contratados antes da confirmação de Candinho, chegam,
egressos do América (numa troca que envolveu a ida de alguns jovens
da Gávea para os rubros): o lateral-esquerdo Paulo César, o volante
Delacir e a joia dos “diabos”, o meia-atacante Renato Carioca. No
entanto, Candinho deixa clara a necessidade de reforços,
especialmente em um setor específico:
“Vi
os jogos finais do Flamengo pela TV. Está bastante evidente que o
problema do time está na zaga”.
E os
reforços chegam, todos indicados por Candinho: o lateral-direito
Xande, do América de Rio Preto, o experiente volante Paulo Martins,
com passagens por Bahia e Atlético-MG, mas atualmente na reserva no
São Paulo, o atacante Cacaio, do Porto Alegre de Itaperuna, e o mais
conhecido de todos, o meia Luvanor, que se destacara no Goiás, mas
vindo de passagens apagadas no futebol italiano e no Santos.
“Luvanor
dará o toque de classe ao nosso meio-campo. Será nosso criador de
jogadas”.
O
Flamengo tem uma série de amistosos por Brasil e Europa para
entrosar seu novo time. Na estreia de Candinho, em Ponta Grossa-PR, o
time goleia o Operário local por 4-1, com grande atuação de Renato
Carioca, que anota três gols. No entanto, o primeiro problema já
acontece na partida seguinte, em que o rubro-negro é derrotado, de
virada, pelo modesto Esportivo de Passos-MG (1-2), em que a zaga
(formada por Leandro e Edinho) é facilmente envolvida pelo veloz
ataque dos mineiros. Algumas declarações atravessadas trocadas
entre Candinho e Edinho são abafadas pelo clube. Mas já se percebe
algo no ar.
As
coisas melhoram um pouco em Amsterdam, onde o Flamengo (na despedida
de Andrade) derrota Ajax-HOL (1-0) e Benfica-POR (2-0), com boas
atuações de Luvanor e Renato Carioca. Zico se integra ao elenco na
Espanha, e o time de imediato já colhe mais uma taça, o bonito
Trofeo Colombino, ao derrotar Zaragoza-ESP (2-1) e Recreativo -ESP
(1-0). Tudo parece caminhar como previsto, e o próprio Candinho
declara, esperançoso: “vejo evolução”.
Mas
o pano cai justamente na derradeira partida da excursão, em Atenas.
Numa atuação desastrosa, o rubro-negro é inapelavelmente derrotado
pelo Olympiacos-GRE, num jogo em que os velozes gregos empilham uma
oportunidade atrás da outra. A goleada histórica só não se
consuma por causa da brilhante atuação do goleiro Cantarele e
porque Candinho, num surto de ousadia e auto-preservação, troca os
dois zagueiros durante a partida, saindo Leandro e Edinho por Aldair
e Zé Carlos II. No fim, o placar de 3-1 sai extremamente barato pelo
que se vê em campo. Mas
haverá desdobramentos.
“O
treinador está querendo arrumar um bode expiatório pra sua
incapacidade de montar a equipe. Ele não sabe armar o meio-campo, aí
tudo estoura na gente, lá atrás”, dispara um irritado Edinho no
desembarque ao Rio. “Nada disso. O problema está é na zaga mesmo.
É lá atrás. Já fiz treino especial, treino específico, e nada.
Agora só vejo um jeito. É mexer nos nomes”, replica o treinador,
sempre pelos jornais.
O
bate-boca público segue: “Tenho uma imagem e uma reputação a
zelar. Não sou mais garoto pra ficar disputando posição com
ninguém. Se alguém questionar meu lugar no time, saio do Flamengo
na hora”. E, antes que se consume a esperada barração, Edinho
consegue negociar sua transferência para o Fluminense (possui passe
livre), a quem andara declarando amor recentemente. A Diretoria,
farta dos problemas criados pelo zagueiro, não dificulta a saída
(até porque o contrato já está no fim).
Candinho
vence o primeiro round. Mas logo descobrirá que sua “carta branca”
vale até a página dois.
O
Flamengo estreia no Brasileiro, contra o Vasco, sem Zé Carlos e
Bebeto (servindo à Seleção Brasileira nos jogos de Seul) e
Jorginho (em mais um penoso processo de renovação de contrato). Em
compensação, Zico está de volta. No entanto, nem a presença do
Galinho é capaz de reverter uma produção apática e desinteressada
de um time que se arrasta em campo. Lá pra meados do segundo tempo,
o jogo parece caminhar para um gelado 0-0. É quando acontece o fato
que marcará o clássico.
“Galo!
Sai você!”
O
ponta Alcindo faz questão de, ainda no aquecimento, avisar a Zico,
aos gritos. Resignado, Zico sai de campo e desce rapidamente ao
vestiário. A punição da bola é imediata. Momentos após a saída
de Zico, o adversário marca o gol que define a derrota rubro-negra.
E mais um atrito tendo Candinho como pivô.
“Eu
estava bem no jogo, sentia-me plenamente em condições de liderar o
time. Se o treinador preferiu alguém mais veloz pra mudar a
característica, paciência. Só acho que o Flamengo está partindo
para um caminho perigoso, ao abrir mão de gente experiente e
vitoriosa”. Um Zico visivelmente irritado segue em suas críticas:
“O time estava apático. E piorou de vez depois do gol. Aceitou a
derrota. Aqui isso não pode acontecer”.
Candinho
acusa o golpe. Alega que havia um acordo para que o Galinho fosse
substituído, “esquecendo-se” que o sinal deveria ser dado pelo
jogador. “Tirei porque ele precisa voltar aos poucos, ele vem de
lesão. Não entendo a polêmica”. Depois, recua. “Tudo bem. Nos
próximos jogos, só vou trocar caso ele peça pra sair. Vou dar essa
liberdade a ele”.
O
treinador começa a perceber que Londres não é Arapiraca.
“Darío
Pereyra”? O anúncio do novo reforço para a zaga causa estupefação
e incredulidade a muita gente. Nada contra a reconhecida capacidade
técnica do jogador, um dos melhores zagueiros da história recente
do futebol uruguaio, tendo construído sólida carreira no São
Paulo. No entanto, Darío já se encontra em visível declínio
físico, não encontrando mais espaço no elenco do tricolor
paulista. Em suas recentes atuações, tem sido criticado pela
lentidão e falta de agilidade. Justamente os atributos mais
criticados nas sistemáticas avaliações de Candinho à imprensa
sobre os problemas do Flamengo. A troca de um zagueiro lento por
outro não é bem digerida e Leandro, que também já não “fala a
mesma língua” de Candinho, aproveita para alfinetar o treinador:
“é no mínimo incoerente”. Irritados, os jovens Aldair e Zé
Carlos II pedem para ser negociados. Sem sucesso.
Na
sequência do Brasileiro, o Flamengo, atuando muito mal, derrota
América (2-1) e Corinthians (1-0), já sem Zico, que sente nova
fisgada muscular e desfalca a equipe por algumas semanas. Chama a
atenção o time-base que o rubro-negro manda a campo, especialmente
quando se coteja com o time do Tetra de 87: Cantarele, Ailton,
Aldair, Zé Carlos II, Leonardo, Delacir, Paulo Martins, Luvanor,
Alcindo, Luís Carlos, Zinho.
Para
a partida seguinte, contra o Bahia na Fonte Nova, mais problemas.
Leandro volta de uma lesão e reivindica vaga no time. “Precisa
treinar mais”, rechaça Candinho. “Se não sirvo para jogar,
também não sirvo pro banco”, e Leandro se recusa a viajar. “Como
quiser. A Diretoria que resolva”. Sem Leandro, mas com Xande,
Delacir, Luvanor e Cacaio, o
Flamengo perde para o Bahia na Fonte Nova, em jogo onde o terceiro
goleiro Milagres (que está em campo substituindo Cantarele,
suspenso) realiza atuação de gala, impedindo um placar mais
elástico do que o 1-0 final. O jogo marca a estreia de Darío
Pereyra, que falha no gol dos baianos.
A
derrota para o Bahia provoca os primeiros questionamentos mais
sólidos ao trabalho de Candinho. A Diretoria, reconhecendo a
necessidade de reforçar um ataque que ainda se ressente da saída de
Renato Gaúcho, contrata o ponta Sérgio Araújo, em litígio com o
Atlético-MG, por US$ 400 mil, à vista (“era muito dinheiro, não
tinha como segurar”, resigna-se o Presidente atleticano). O
Presidente flamengo
é tão sucinto
quanto claro: “agora fechamos o elenco. Que é bom e pode jogar
mais do que vem jogando”.
Na
semana da partida contra o Santa Cruz, no Maracanã, Candinho obtém
uma última vitória, quando a Diretoria resolve “estimular”
Leandro a aprimorar a parte física em
separado
(mais tarde, o zagueiro tentará uma arriscada cirurgia para salvar a
carreira, sem sucesso). Enquanto isso, o treinador define: “a zaga
é Aldair e Darío Pereyra. Ponto”. Com a convicção dos
prestigiados.
É
uma lástima. O Flamengo, realizando sua pior partida na competição,
sofre para arrancar um suado 2-2 no tempo normal contra o Santa Cruz,
uma das mais fracas equipes do campeonato. Um dos gols pernambucanos
surge de uma falha clamorosa de Cantarele, que tenta sair driblando
vários atacantes “à Domingos”, perde a bola e toma o gol. Para
piorar, na decisão por pênaltis (novidade no regulamento), o
rubro-negro é derrotado, enfurecendo os 6 mil torcedores presentes
no Maracanã. Alguns jogadores, e principalmente Candinho, saem de
campo escoltados pela PM.
O
resultado, como esperado, faz explodir uma crise na Gávea. Candinho
é cobrado, principalmente, por ter escalado dois volantes para
enfrentar o frágil adversário. O treinador, já irritado, rebate:
“Escalo o que há de melhor. Mas não posso fazer nada se o goleiro
é
irresponsável, o atacante pipoca na hora do pênalti e o time não
faz o que eu mando”. Incandescente, o ambiente interno faz emergir
declaração do Presidente, que percebe a hora de intervir. E o faz,
novamente de forma lacônica, mas contundente:
“Não
sei o que está acontecendo. Vou me informar com o pessoal do
futebol. Mas uma coisa é certa: o Flamengo não pode, sob nenhuma
circunstância, perder nos pênaltis, no dado
ou no
par
ou ímpar
para esse time do Santa Cruz dentro do Maracanã”.
Candinho
entende o recado. E resolve sinalizar positivamente para uma sondagem
do Al Ahli, da Arábia Saudita. Entrega seu pedido de demissão à
Diretoria, que o aceita de imediato. É o fim da passagem de Candinho
como treinador do Flamengo.
Durou pouco mais de dois meses.