As portas da aeronave se
fecham.
As moças cuidadosamente uniformizadas
vão dando andamento, com entediada simpatia, à praxe que precede a decolagem.
Enquanto isso, o alegre grupo uniformizado que ocupa as fileiras de assentos a
ele reservadas, vai formando, dentro do que permite o contexto, simulacros de
rodinhas onde se vão cantando resenhas e “causos” com o fim de disfarçar o cansaço
já visível nos semblantes de alguns. Outros, mais diretos, estampam a cara com
revistas, almofadas, vendas e tudo o que mais sirva para lhes acelerar um
ansiado cochilo. Nesse entretempo, as rodinhas acabam por se desfazer, a gentis
e mecanizados pedidos das bonitas moças de farda. Aos poucos, todos vão
ocupando suas poltronas. E assim os vinte e sete lugares reservados à delegação
se revelam preenchidos.
Menos um. Justo o principal.
Não foi fácil organizar o
processo de embarque no voo com destino a Vitória do Espírito Santo. Um
verdadeiro dilúvio alagou várias avenidas no Rio de Janeiro, especialmente na
Barra da Tijuca, promovendo colossais engarrafamentos, que tornaram inviável ao
Flamengo tomar o voo de 10 da manhã, conforme previsto. Porque apenas um ou
outro jogador conseguiu efetivamente chegar ao Galeão. No entanto, ao longo do
tempo o clima foi melhorando, as pistas tornando-se transitáveis, e com isso
todos os atletas lograram apresentar-se ao Supervisor rubro-negro a tempo de
tomar outro voo, agendado para o meio da tarde.
Menos Romário.
A funesta temporada de
1995 abre expressivas feridas no relacionamento entre o milionário craque e a
Diretoria do Flamengo. O Presidente rubro-negro avisa, em alto e bom som, que
as regalias e os mimos dedicados ao goleador estão extintos ou, no mínimo,
severamente mitigados. O jogador terá que se submeter à rotina normal de
treinamentos de todos do elenco, compensando eventuais faltas. Está obrigado a
viajar com todos, seja de ônibus ou avião, sendo vedado o deslocamento por meio
de jatinhos ou helicópteros, como enjoara de usar no ano anterior. A
contratação de “parças” ou “peixes”, como jogadores e mesmo fisioterapeutas,
também está enfaticamente desencorajada. Enfim, o Flamengo faz questão de
demonstrar ao jogador que não está satisfeito com o retorno amplamente negativo
que, até então, sua contratação tem proporcionado. O Presidente, antes um
entusiasta e “amigo” declarado de Romário, agora adota tom lacônico em
entrevistas e reportagens em geral.
“Será tratado como os
outros”.
Romário também anda
ressentido. A notícia de que o Flamengo escutou, de forma receptiva, sondagens
do Sevilla e do Salamanca, enfureceu o jogador, que encarou a atitude como uma “traição”.
O Baixinho também está incomodado com os rumores, cada vez mais robustos, de
que o Flamengo irá atravessar o Vasco na repatriação de Bebeto ao futebol
brasileiro. Arisco, calado e desmotivado, Romário, nas poucas entrevistas que
concede, limita-se a reconhecer que “vacilou” na temporada anterior e promete
dar a volta por cima, pois se diz “em dívida” com a torcida do Flamengo. “E
apenas com ela”.
A temporada inicia com
turbulências. É bem verdade que, sob o comando do novo treinador, Joel Santana,
o Flamengo parece buscar uma competitividade que insistiu em negligenciar por
quase todo o ano anterior. Mais equilibrada defensivamente, a equipe já começa
a chamar a atenção de alguns analistas mais atentos, que não estão alheios ao
bom nível dos jogadores, que enfim montam um conjunto equilibrado, resolvendo
outro grave problema de 1995. No entanto, o Flamengo perde por detalhes o
primeiro torneio amistoso do ano, a Copa Euro-América, ao empatar por 1-1 com o
Borussia Dortmund, em jogo que Romário desperdiça um pênalti nos minutos finais,
e pelo mesmo placar com o Palmeiras, sofrendo o gol do título já praticamente
nos descontos.
Na sequência, a Taça
Cidade Maravilhosa (torneio amistoso criado pela FERJ para manter seus
principais filiados ocupados), o rubro-negro segue ajustando a equipe. Empata
com Vasco (0-0) e Madureira (1-1), em jogos onde Romário chama a atenção pela
inacreditável quantidade de gols perdidos, “consagrando” os goleiros Carlos
Germano e Acácio. As coisas melhoram quando o Baixinho anota os dois gols nos
2-0 contra o Bangu e marca um dos tentos da vitória por 2-1 sobre o Fluminense
(o outro gol é de Nélio, de canela, a dois minutos do fim), quebrando um jejum
de sete jogos e um ano e meio sem derrotar o rival.
Mas, se é inegável que
Romário segue marcando gols (seis dos sete gols do Flamengo nos primeiros jogos
do ano), os problemas dentro e, principalmente, fora do campo surgem com
impressionante fartura. Romário questiona o sistema de premiações adotado pela
Diretoria e ameaça liderar um movimento de “greve” do elenco, sendo dissuadido
após ser docilmente ameaçado de multa e corte de salários. Depois, queixa-se de
dores no joelho e declara, com todos os “efes e erres”, que o incômodo é
agravado por causa da precariedade dos aparelhos da Sala de Musculação da Gávea,
o que gera uma inédita e surpreendente (pela sua rispidez) carta-aberta da Diretoria
do Flamengo, repreendendo o atleta. Alegando lesões (além do joelho também se
ressente de dores nas costas), começa a faltar aos treinamentos da equipe, o
que começa a incomodar Joel Santana (“ele precisa estar conosco, estamos
montando um time e ele é peça fundamental”).
De qualquer forma, o ambiente
é amenizado com as vitórias sobre o Bangu e, principalmente, o Fluminense.
Romário se declara “motivado” para a estreia da Copa do Brasil, contra o
desconhecido Linhares, campeão capixaba, no Estádio Kléber Andrade, em
Cariacica. O rubro-negro precisa vencer por dois gols de diferença para evitar
a realização do jogo de volta.
“Se não embarcou aqui conosco,
não precisa vir mais”. Joel Santana é bem claro na sua altivez, cioso da
necessidade de mostrar imposição a um elenco formado por alguns jogadores de
Seleção, muitos inclusive com certa rodagem. Assim, Joel deixa clara a mensagem
de que não conta com Romário para o jogo no Espírito Santo. O Supervisor ainda
tenta um último recurso, reservando uma passagem para um voo noturno. Mas ainda
assim Romário não aparece.
“Estava preso na Grajaú-Jacarepaguá,
não passava nada”. A justificativa de Romário, que sustenta só ter conseguido se
livrar do trânsito às 01:30 da manhã, não convence a Diretoria, até porque todos
os demais jogadores conseguiram chegar a tempo de embarcar à tarde. Há
elementos que fundamentam a desconfiança. O Baixinho segue se queixando de
dores nas costas, e uma inoportuna viagem para um jogo de expressão menor poderia
agravar o problema. Ademais, as boas atuações recentes podem servir como salvo-conduto
para a volta de determinadas regalias e, afinal de contas, o Rio já respira a
semana de Carnaval. Injustas ou não, essas ilações ajudam a complicar a já
negativa imagem do Baixinho. Dividida, a Diretoria em princípio não define o
que fazer com o jogador. Vai aguardar o retorno da delegação. Enquanto isso,
Romário está convocado a se apresentar na Gávea para treinar, enquanto a equipe
está no Espírito Santo. Alguns dirigentes defendem a aplicação de multa e mesmo
uma penalidade mais severa.
“Multa? Que história é
essa de multa? Não fiz nada de errado. Fiquei preso na estrada e ainda vou ser
multado? Se me multarem nunca mais ponho os pés aqui”! Enfurecido, Romário “grita”
aos jornais que não admitirá qualquer tipo de punição emanada da Diretoria.
Parte abertamente para o confronto. “Estou jogando no sacrifício, com dores, fico
atolado na estrada e ainda vou ser punido? Não aceito em hipótese alguma”. A
ira do atacante é amplificada por conta das sucessivas negativas da Diretoria
às soluções propostas pelo jogador, que se prontificara a viajar no dia da
partida (junto com o Presidente) ou mesmo fretar um jatinho de seu bolso. “Esse
ano ninguém receberá tratamento diferenciado. Perdeu o voo, perde o jogo”.
O Flamengo derrota o
Linhares por 1-0 (gol de cabeça do zagueiro Jorge Luís, escorando escanteio cobrado
pelo novato Iranildo), mas a essa altura o assunto é Romário. A imprensa,
curiosa em saber o que a Diretoria fará com o jogador, começa a dar ares de “novela”
ao caso. Matreiros, o Presidente, o VP de Futebol e o Supervisor começam a
apagar o fogo. “Trata-se de um assunto menor, que receberá da gente o peso que
merece. Vocês estão perdendo tempo”.
Com efeito, a solução
acaba frustrando aqueles que esperavam um desfecho mais sangrento. Após reunião
razoavelmente rápida, a Diretoria resolve aceitar os argumentos e as alegações
de Romário, e descarta punir o jogador. Satisfeito, o Baixinho evita comentar o
caso, que se desvanece como mais um factoide que nasceu, floresceu e feneceu em
um espaço de três dias.
No entanto, há um
desdobramento relevante. Joel segue se queixando das ausências de seu craque
maior e pede proteção. Recebe a garantia de que tem carta branca para lidar com
Romário do jeito que melhor lhe aprouver. Que, mais do que o treinador, há uma
Diretoria que não medirá esforços para conquistar o Estadual que lhe escorreu
pelos dedos em 1995. Que contratará quem tiver que contratar, e descartar quem
tiver que ser descartado. Assim, Joel pode, e deve, usar de todos os meios
possíveis para colocar em campo um time vencedor. Mesmo que, no percurso, tenha
que cortar cabeças.
Ou barrar jogadores.
* * *
Romário seguiu com
rendimento instável nos jogos seguintes, faltando a treinos e alternando gols
com atuações discretas. Acabou barrado na partida contra o Coritiba, no Couto
Pereira, pela fase seguinte da Copa do Brasil. Entendeu o recado e enfim passou
a levar a temporada a sério. No jogo seguinte, marcou 5 gols numa goleada sobre
o Olaria (6-2). O Flamengo sagrou-se Campeão Estadual Invicto, vencendo os dois
turnos. Romário, com a impressionante marca de 26 gols (contra 15 do segundo
colocado), terminou a competição como artilheiro e melhor jogador. No entanto,
com a confirmação da contratação de Bebeto pelo Flamengo, aceitou retornar ao
futebol espanhol, para defender as cores do Valencia.