O Flamengo vence a série por 6-5.
O
zagueiro Corti, do River Plate, ajeita a bola na marca da cal e se encaminha para a
cobrança. Sem tomar muita distância, corre para a bola e manda uma
bomba, um chute forte, no meio do gol, a tal “batida de segurança”.
Mas o tiro não ganha muita altura e o goleiro Gilmar, que já
antevera a intenção do argentino, consegue espalmar e realizar a
defesa que classifica o rubro-negro para as Semifinais da Supercopa
Libertadores, o que é comemorado com entusiasmo no gramado do
Maracanã por jogadores, dirigentes e torcedores.
Mal
sabem que o inferno está para começar.
Com
a conquista da vaga na Supercopa, o Flamengo precisa conciliar os
jogos decisivos da competição continental com a reta final do
Campeonato Brasileiro. O rubro-negro disputa uma das vagas para a
Segunda Fase, precisando, para isso, classificar-se entre os três
primeiros em uma chave com oito equipes. O Corinthians de Mário
Sérgio já está classificado e as duas vagas restantes são
disputadas por Flamengo, São Paulo, Internacional e, correndo por
fora, o Cruzeiro. Novembro se aproxima acenando para a disputa de
jogos decisivos, contexto tão apreciado pelos flamengos.
O
problema é o calendário.
A
política da Diretoria que assumiu o clube em janeiro é bem clara.
Ganhar tudo, sem priorizar. Os dirigentes entendem que apenas
jornadas vitoriosas são capazes de perpetuar seus comandantes e
fazê-los respeitados. Ainda são recentes na memória os mandatos de
alguns Presidentes tachados com a pouco altaneira alcunha de
“pé-frio”, pela falta de conquistas. Assim, o clube não pode
“dar-se ao luxo” de desprezar nenhuma conquista. Carlinhos, no
início do ano, tentou priorizar a Copa do Brasil e a Libertadores,
disputadas simultaneamente com o Estadual. Essa iniciativa lhe custou
o cargo.
Não
que falte qualidade ao elenco. Ao contrário, o Flamengo reúne uma
das melhores equipes do país, mesmo com baixas recentes (Gaúcho,
W.Gotardo e Uidemar). A consagrada sistemática de mesclar jogadores
de alto nível com jogadores formados pelo clube segue sendo adotada,
e agora enfim os egressos da fabulosa Geração da Copa SP 1990
parecem de fato prontos a exercer o tão esperado protagonismo na
equipe titular (apesar de uma baixa importante, o meia Djalminha,
talvez o mais talentoso da safra). Com isso, o Maestro Júnior, agora
treinador, dispõe de um respeitável time-base: Gilmar, Charles
Guerreiro, Júnior Baiano, Rogério e Piá (Marcos Adriano); Fabinho,
Marquinhos, Nélio e Marcelinho; Renato Gaúcho e Casagrande.
No
entanto, ao contrário de recentes temporadas vitoriosas, há
escassez de peças de reposição. A lenta e contínua debandada de
jogadores iniciada em 1992 tem sido reposta com jogadores medianos ou
que não conseguem se adaptar ao clube. O lateral-direito Jorge
Antonio, o volante Eder Lopes e o atacante Edu Lima, com atuações
frustrantes, estão em nível bem abaixo ao dos titulares. E os
jovens da base ainda parecem “verdes” (com poucas exceções,
como o zagueiro Gelson Baresi) para tamanha responsabilidade. O
diagnóstico, portanto, é claro. Se quiser disputar o Brasileiro e a
Supercopa no nível que as partidas finais exigirão, o clube terá
que escalar força máxima. Em ambas.
Sábado
dia 30 de outubro a tabela marca um confronto com o Internacional
(adversário direto na disputa pela classificação no Brasileiro) no
Beira-Rio. Na quinta dia 4, o jogo de ida contra o Nacional-URU pelas
Semifinais da Supercopa (jogo no Pacaembu, pois o Maracanã está
interditado para a realização de um show da cantora Madonna).
Permanecendo em São Paulo, o rubro-negro enfrenta o São Paulo no
domingo 7, no Morumbi. Depois, viagem a Montevideo para o jogo de
volta contra os uruguaios na quarta, dia 10. Desembarque praticamente
direto pro reaberto Maracanã, para na sexta, dia 12 enfrentar o
Botafogo, pela penúltima rodada do Brasileiro. E, fechando a
primeira fase da maratona, no domingo dia 14 a última partida,
contra o Corinthians, também no Maracanã.
Um total de 6 jogos num
espaço de 15 dias.
E
o Flamengo sobrevive.
No
Brasileiro, o time “perde quando pode” nos jogos fora de casa e
consegue encaminhar a vaga ao derrotar (2-0) o moribundo (mas
supostamente turbinado por uma “ajudinha” financeira externa)
Botafogo e administrar um empate contra os corintianos, resultado
suficiente para assegurar a classificação. E, na Supercopa, o time,
apesar de desperdiçar a chance de golear em São Paulo (vencia por
2-0, perdeu inúmeros gols e sofreu um preocupante tento nos
descontos), profana o Estádio Centenário e enfia retumbantes 3-0 no
Nacional, placar que não resulta ainda mais elástico em função
das pedras atiradas pelos torcedores, o que suspende o jogo a quinze
minutos do fim.
Mesmo
assim, há problemas. O evidente desgaste físico começa a expor os
nervos dos jogadores. Nélio é expulso com apenas seis minutos de
jogo na partida contra o Corinthians, obrigando o time a correr com
um jogador a menos por quase noventa minutos numa ensolarada tarde de
um Maracanã sob horário de verão. Renato reclama publicamente de
ter sido substituído por Júnior na vitória sobre o Nacional no
Pacaembu, e o Maestro, também publicamente, o adverte diante do
elenco. As desavenças de Renato com os “pratas da casa” seguem
intensas, especialmente com Júnior Baiano. Rogério não se entende
com Gilmar, queixando-se da gesticulação excessiva do goleiro em
lances de gol. Casagrande, após bom início, cai de rendimento e
demonstra dificuldade em lidar com as críticas que entende
excessivas. Como agravante, o elenco não recebe salários há três
meses, e os jogadores extraem da Diretoria o aviso de que a crise
financeira somente poderá ser amenizada com vitórias e títulos.
É
esse Flamengo, esgotado fisica e mentalmente, que irá começar a
decidir os títulos da Supercopa e do Brasileiro.
17
de novembro, quarta-feira, três dias após o empate contra o
Corinthians. O Flamengo está em campo novamente. É o primeiro jogo
da Final da Supercopa, contra o São Paulo, no Maracanã. Muito se
comenta sobre um paralelo entre o desgaste das duas equipes, já que
os paulistas enfrentam um calendário tão severo quando o do
rubro-negro. Mas há atenuantes para os de Telê, que lidam com mais
naturalidade com a perspectiva de poupar alguns titulares quando
necessário, sem falar na diferença de estrutura entre os clubes,
que começa a se fazer notar de forma inapelável. Por exemplo,
enquanto o tricolor paulista freta aviões para suas viagens, o
rubro-negro, assolado em dívidas, faz uso de voos comerciais,
retendo seu plantel por até três horas nos aeroportos.
O
Flamengo faz bom jogo. Inicia perdendo, mas vira a partida com dois
gols de Marquinhos e pressiona para ampliar o placar quando Júnior
Baiano acerta uma voadora em Cafu e é expulso. Com um a mais, o
adversário cresce na partida e chega ao empate de 2-2. A atitude do
zagueiro acende nova crise no vestiário. “Se não inventasse
querer fazer o que não sabe, seria um ótimo zagueiro”, dispara
Renato.
Não
há tempo para germinar crises. Sábado, dia 20. Agora o Flamengo
está na Fonte Nova para enfrentar o Vitória, primeiro jogo da
Segunda Fase. Além dos baianos, Santos e Corinthians completam o
grupo do qual sairá um dos finalistas. O jogo, disputado sob sol
escaldante, é equilibrado e decidido quando Renato Gaúcho comete um
pênalti infantil em Pichetti, que é convertido por Roberto Cavalo.
O Flamengo larga mal na disputa. Pessimista, o Presidente desfere
mais um de seus “vaticínios reversos”: “Perdemos pontos
irrecuperáveis. Esse time do Vitória é muito fraco e não vai
tirar ponto de mais ninguém”.
Alheios
ao dirigente, os jogadores seguem se desentendendo. De alma lavada,
Júnior Baiano devolve cada alfinetada aos jornais: “Pois é.
Perdemos. Jogador não resolve lá na frente, vem aqui pra trás
fazer bobagem. Acontece.”
Quarta-feira,
dia 24. Data da Final da Supercopa, no Morumbi. A grande chance
rubro-negra de erguer um troféu na temporada, embora o adversário
seja considerado, não sem razão, franco favorito. Joga em casa e
possui uma das melhores equipes do planeta (até porque é o atual
Campeão Mundial). Mas o Flamengo, jogando com muito brio e
inteligência, protagoniza um dos mais espetaculares jogos da
temporada, que termina em um novo 2-2. Nos pênaltis, Marcelinho (um
dos destaques da equipe) desperdiça sua cobrança e o título
escorre pelo ralo. O jovem, triste, dá de ombros: “Até Zico, que
é Zico, perdeu pênalti decisivo. Tem que levantar e seguir.”
Seguir
em frente é o lema. Até porque não há espaço para divagações,
já que a saga continua. Inacreditavelmente, o Flamengo, menos de 48
horas após a Batalha no Morumbi, está novamente em campo, dessa vez
para enfrentar, em uma gelada noite de sexta, o Santos no Maracanã.
Alguns jogadores parecem no limite da estafa. Casagrande, esgotado,
chama os jornais e se entrega: “Não quero mais jogar pelo
Flamengo”.
As
instruções táticas são transmitidas durante os voos, com
conversas entre Júnior e os jogadores. O Flamengo adota a prática
de viajar apenas horas antes das partidas, tentando proporcionar ao
elenco um mínimo de descanso. Os atletas são orientados a
permanecerem deitados e dormindo nos espaços entre os deslocamentos.
Não há treinamentos desde outubro. É apresentar, viajar, jogar e
descansar. Uma rotina quase desumana que acaba por se tornar, mais do
que os adversários, o principal inimigo do Flamengo na temporada.
O
jogo contra o Santos termina empatado, 1-1. E domingo, DOIS dias
depois, tem jogo de novo, dessa vez contra o Corinthians, também no
Maracanã, em mais uma tarde de calor de cerca de 30 ºC. Alguns
jornalistas demonstram indignação. “É algo inacreditável. O
Flamengo está jogando quase diariamente”.
O
público, saturado e desconfiado, permanece em casa. Contra o Santos,
4 mil testemunham o melancólico empate. Na partida diante dos
corintianos, cerca de 13 mil vão ao Maracanã presenciar um enredo
já repetitivo. O Flamengo, enquanto tem pernas, inicia pressionando,
valendo-se da maior qualidade de seus jogadores. Abre o placar. E
começa a rodar a bola para administrar a vantagem. No entanto, o
time cansa na segunda etapa. E o adversário, já conhecendo o ponto
fraco flamengo, começa a imprimir maior velocidade. Chega ao empate
e não vence por conta das defesas milagrosas de Gilmar, cuja fase o
levará à Copa do Mundo do ano seguinte. Foi assim contra o Santos.
É assim contra o Corinthians. Mais um empate. Outro 1-1. O Flamengo
respira por aparelhos no Brasileiro.
O
rubro-negro ainda não está eliminado porque os outros resultados,
com muitos empates, embolam a chave, num enredo parecido com o do ano
anterior (que terminara em final feliz). Ainda resta o returno e o
Flamengo depende somente de si para chegar à Final. Mas a “decisão”
será na quarta-feira seguinte, contra o Corinthians, no Morumbi.
Somente a vitória interessa.
E,
atuando no limite extremo das suas forças, o Flamengo realiza uma
das suas melhores exibições do ano, impondo-se ao adversário (de
nível técnico inferior ao do São Paulo), dominando e controlando
amplamente as ações. Mas esbarra na atuação lastimável do
árbitro Renato Marsiglia, que deixa de assinalar um pênalti
clamoroso em Renato, expulsa o goleiro Gilmar após este ter recebido
uma entrada criminosa de Rivaldo, inverte e inventa faltas próximas
à área rubro-negra, a ponto da equipe que transmite o jogo pela TV
pontuar que “é uma atuação muito ruim, mas estranhamente ele só
erra para um lado”. Assim, a partida, também extremamente
emocionante, termina com mais um empate, um 2-2. É o fim.
No
sábado seguinte, o Flamengo, extenuado e desmotivado, arrasta-se em
campo e é derrotado pelo Santos (2-1), num jogo em que o único fato
positivo é a atuação do jovem Sávio, que enfim recebe uma
oportunidade entre os profissionais. Na quarta, diante do Vitória
que, ao contrário das “previsões” do Presidente, lidera a chave
e precisa apenas de um empate para chegar à Final, o Flamengo
novamente atua de forma apática (muitos jogadores, irritados com a
arbitragem no Morumbi, parecem não demonstrar muita vontade de
correr para classificar justo os corintianos) e encerra a temporada
com um melancólico 1-1, comemorado “discretamente” pelos pouco
mais de 1.500 torcedores que se aventuram a ir ao Maracanã.
E
assim, após uma sequência de 14 jogos em 38 dias, termina a
temporada 1993, com números eloquentes. 103 jogos (9 com reservas).
Seis competições. Nenhum título.
Estão
chegando as férias.
Vai
começar o desmanche.