Não é difícil se emocionar com a torcida do Flamengo.
Com
efeito, mesmo a alma mais renitente e refratária há de reconhecer,
ainda que tacitamente, a estonteante beleza do espetáculo
proporcionado pela nossa gente pulsante, ardente, febril em seu
sanguíneo amor pelas sagradas ondas em negro e rubro que nos
arrebatam e arrebentam as entranhas. Pouco, ou nada, logra ombrear-se
aos flamengos celebrando a alegria de ser rubro-negro.
Inobstante,
jogadores são norteados por outro prisma.
Evidentemente,
um atleta profissional de futebol, como estampado em sua literalidade
já na definição, é remunerado por seu trabalho, qual seja, a
oferta de sua capacidade técnica, tática, física e mental a uma
agremiação esportiva. Isto posto, é natural, aceitável e, até
mais do que isso, desejável que busque para si a vinculação a
contratos que lhe assegurem as condições mais favoráveis de
remuneração e valorização. É uma carreira curta, de no máximo
vinte anos, e lapsos de hesitação podem fulminar promissoras
trajetórias em questão de meses.
Donde,
a partir do momento em que a relação entre jogadores e clubes se
reveste profissional em essência, especialmente nas instituições
de alto orçamento e elevadas demandas por resultados, torna-se
inerente ao negócio a adoção de determinado “código de conduta”
para todos os atores que integram o processo. E isso inclui os
atletas, que, com o fito de demonstrarem seu profissionalismo e o
respeito pelo mercado que os cerca, recorrem a artifícios como
beijar o escudo do atual empregador, referir-se ao atual clube
utilizando um fraseado e linguajar que o aproxime de seus torcedores,
frisar estar “realizando um sonho” ao ser apresentado ao novo
contratante, e mesmo evitar comemorações efusivas ao marcar gols
contra equipes que defendeu (o que mantém certas portas abertas,
afinal o futuro é sempre incerto). Os mais esclarecidos e/ou
abastados contam com serviços de “media training” ou quetais, o
que os adestra a buscar externar declarações ou atitudes que os
mantenham conectados aos adeptos, que invariavelmente esperam um
comportamento “de torcedor” de seus jogadores, visto que
representantes das cores que lhes são tão caras. Puro business.
Ou
seja, quando um jogador chega a um clube como o Flamengo e “avisa”
estar realizando um sonho, beija nosso sagrado escudo, sorri quando
ostenta nosso Sagrado Manto e desfere licorosas declarações
acariciando tudo o que nos é afeto, provavelmente estará
interpretando uma personagem. Veja-se, não se trata de subestimar
nossos atributos, afinal se está tratando da mais expressiva
instituição esportiva do país. Celebrar um contrato de serviços
com o Flamengo sempre foi, é e será uma etapa bastante sedutora na
trajetória profissional de qualquer jogador de alto nível, seja
pelo seu inigualável alcance nacional, seja pela oportunidade de
desfrutar a experiência de atuar no Maracanã, seja pela
possibilidade de impulsionar sua reputação, seja pela proximidade
de conquistas de alto nível (processo que parece estar desaguando de
forma ainda lenta, mas inexorável, a uma inapelável realidade
contextual). No entanto, por mais relevante, gratificante e
agradavelmente desafiador que signifique atuar defendendo o Flamengo
(afinal, vários e vários jogadores são mesmo rubro-negros de
infância), nunca se deixa de levar em conta o caráter estritamente
profissional da avença. E que, como tal, demanda que certos papeis
sejam exercidos (justamente por isso, costumo relevar toda e qualquer
declaração emanada por jogador, a qualquer tempo, desde que, claro,
certos limites não sejam transpostos).
Mesmo
assim, ainda assim, com tudo isso, o futebol ainda é capaz de
surpreender.
Ouvi
falar de Vitinho pela primeira vez no ano da graça de 2013, quando
ainda defendia o Botafogo. De início, nutri certa desconfiança com
o excesso de loas e exaltações que pipocavam de jornais e programas
de televisão, normalmente bastante condescendentes e, digamos,
entusiasmados com tudo o que exara de General Severiano (torcedor
gosta de falar bem dos seus). Mas minha reticência logo se dissipou.
Vi alguns jogos do garoto, que realmente mostrou qualidades. Arisco,
enjoado, perigoso, ruim de marcar. Botafogo realmente parecia ter
encontrado um jogador realmente bom. Mas foi vendido e tal. Anos
depois, apareceu no Internacional. Começou a fazer gols e se
destacar, mas o time foi caindo pelas tabelas, ameaça de inédito
rebaixamento batendo à porta. Veio o fatídico jogo com o Flamengo
de Zé Ricardo, ainda postulante ao título. E o bravo Vitinho
simplesmente comeu a bola. Foi o melhor em campo e marcou o gol da
vitória que marcou o início do fim do sonho do hepta. Pouco depois,
com amarga satisfação se soube que Vitinho era Flamengo de
infância. Seguramente jogou tudo pra chamar a atenção, como tantos
o fazem.
Seguiu-se
longo namoro, que virou novela, com voltas, reviravoltas e
contravoltas. E, enfim, após muita conversa, choro, batida de pé,
posições demarcadas, ratificadas e retificadas, o Flamengo
conseguiu tirar Vitinho do CSKA Moscou, contra a vontade inicial dos
russos, que manifestavam satisfação com seu trabalho. E o atacante
agora é rubro-negro.
E
foi aí que aconteceu.
Sim,
Vitinho postou fotinha, vestiu camisa, beijou escudo, declarou amor,
falou do sonho, fez tudo isso. Seguiu todo o manual do “media
training”, mostrou-se um disciplinado seguidor dos preceitos que
regem o tal profissionalismo dos nossos tempos. Só que nesse
entretempo havia um jogo no Maracanã. E lá se foi Vitinho ser
apresentado, acenar e ganhar um pouco de carinho da nossa Nação.
Mas
antes disso sentou nas tribunas e se permitiu contemplar, em
silêncio, à mais bonita das celebrações. Toda aquela gente se
mescolando em uma indistinguível nuvem, tornando o mitológico
Maracanã uma grande panela em brasa e ébano, um leviatã
erigindo-se a urrar a grandeza e o gigantismo de uma Nação,
amalgamando-se aos onze herois, empurrando-os e sendo por eles
impelida, num irresistível moto contínuo que, inapelável, somente
suscitava a necessidade quase orgânica de seguir cantando, gritando
e saltando até o limite das forças.
E
ali, a tragar a mais profunda essência flamenga, Vitinho,
mantendo-se no mais absoluto silêncio, pôs-se a gritar. Explodir-se
e revelar-se, desnudar-se sem amarras, sem os freios impostos pelos
regulamentos e códigos engravatados e refrigerados. E se permitiu
trair, deixou-se mostrar por um olhar. Olhos que gritavam, olhos que
latejavam, olhos que pulsavam toda a sua humanidade. Porque naqueles
olhos febris se abriu o garoto que algum dia jogou descalço emulando
algum craque flamengo, o menino que jogou botão defendendo o
Flamengo, o jovem que berrou o Flamengo na arquibancada, o moço que
sofreu e vibrou com o Flamengo na tevê, no rádio, na internet, no
jornal. O homem que virou jogador e que agora é do Flamengo. Que
agora está pronto para dar as mãos a toda essa gente que canta seus
herois. Pronto para ser um desses herois.
Que
a passagem de Vitinho pelo Flamengo seja guiada por esse olhar. Um olhar de torcedor,
Um olhar de amador.
Um olhar de amador.