Esta
NÃO é uma história de ficção.
Daí
que a galera do Bola desafiou a do Bidu.
Quem
veio com a novidade foi o próprio Bidu. “O Bola montou um time e
quer armar um baba contra o nosso”. E ele já chegou avisando qual
era o time. Justo, imaginei, já que era dono do campinho que ficava
no quintal da casa dele, um barrão com duas traves sem rede. Três
de linha e um goleiro.
“Dezinho,
Guga e Sergim. Eu vou pro gol. Quem arma um time pra jogar contra o
nosso? Precisamos de um sparring”.
Até
falando difícil o bicho tá agora, imaginei. Questão é que já
estava no final de uma manhã de férias escolares e já havíamos
passado as duas horas anteriores jogando e jogando. Os garotos
estavam mortos, esgotados. Ademais, ninguém queria passar a vergonha
de ser escovado pela “Seleção do Bidu”. Que tinha, de fato,
juntado os melhores do nosso baba. Um time que nunca havia sido
formado junto, “pra não desequilibrar”. E que estava descansado,
pois os “eleitos” tinham passado o tempo tratando do tal jogo
contra o Bola. Daí, quem estava sentado, assim permaneceu. Em
silêncio.
“Eu
vou”. Fui
o primeiro a levantar. Era fominha de bola ao extremo. Também estava
cansado, mas enquanto houvesse futebol no campinho eu sempre estaria
dentro. Não me incomodava se o outro lado era fraco ou forte. A
ideia era o jogo em si. A
diversão da disputa.
“Eu
também quero”. “Eu também”. Olhei pro lado e quase não
segurei o muxoxo. Pebinha e Paulim haviam se candidatado também. Ao
menos estavam descansados, pudera, eram os piores do baba e nunca
jogavam. “Se não tiver mais ninguém, eu posso jogar”. E assim a
última vaga foi ocupada por meu irmão. Que detestava futebol mas às
vezes jogava “só de onda”.
Quando
se definiu o cotejo, os outros meninos não seguraram a risada. “É
com isso aí que a Seleção vai jogar?”, “Eu ia embora e nem vou
mais. Só pra ver o massacre”. “Se não for de zero, é
vergonha”. E assim os moleques que correram da peleja no campo se
aboletaram ao seu redor, esperando sermos jogados aos leões romanos.
A
disparidade era grotesca, de fato. Bidu era um goleiro instável, mas
razoável, tinha reflexo. Sergim jogava na zaga, era muito técnico e
bom no jogo alto, mas meio lento. Guga tinha um lançamento perigoso
e tabelava muito bem. E tinha Dezinho, que jogava como um “10”
clássico, cabeça levantada, excelente passe, muito bom domínio de
bola, embora não fosse muito dado às divididas.
Enquanto
os moleques riam, chamei meus “companheiros”. Paulim era um
goleiro espetaculoso, “de lua”. Fazia defesas sensacionais com a
mesma frequência que erigia uma granja de frangos, daí ser
apelidado “Mão de Minhoca”. Pebinha, um pivete miudinho, corria
muito, mas muito mesmo, pior que notícia ruim. Só que tinha certos
problemas com o manejo da bola, que talvez fosse redonda em excesso
pra ele. Meu irmão era um zagueiro que praticava um futebol um tanto
rural, exclusivamente físico, incapaz de tratar a pelota com um
mínimo de zelo. Gostava do codinome que lhe davam, “Brabo”.
E
havia eu. Que nunca fui propriamente um sujeito talentoso, mas era
voluntarioso. E competitivo ao extremo. Nunca gostei de perder nem
par ou ímpar. E não estava com a menor intenção de tornar as
coisas mais fáceis para os de Bidu.
Chamei
o time. “Quem estiver com medo, pode ir embora
agora. Eu estou aqui pra ganhar. E nós vamos ganhar”. Falava
gritando, o que fez explodir os adversários e a assistência em
risadas. “Bora logo, que a gente tá com pressa”, desdenharam.
Seria
um baba a quatro gols. Normalmente era de três, mas Bidu insistiu
que fosse pra quatro, “pra ficar mais bonito o placar”.
Começa
a bagaça, primeiro ataque da seleção, gol. Saímos com a bola,
logo depois, gol. O esquadrão dos caras já abria 2-0.
“Não
vamos subir. Vamos esperar os caras atrás do meio. Estamos indo de
vez”. Rosnei, e os moleques obedeceram. Eles estavam nitidamente
incomodados com as gozações e a chacota. Pebinha quase chorava de
raiva. Eu tinha que usar isso ao nosso favor. Bastaria uma
demonstração de altivez, de reação, e a coisa melhoraria.
Não
demorou. Tocaram uma bola pra Dezinho, eu cheguei pra dividir. E fui
pra dentro. Joguei bola, Dezinho, terra e público pra lá da linha
lateral. Sabia que Dezinho era meio pipoqueiro e não ia aguentar um
hálito quente. Chegou reclamando, “que é isso?”, “Ué, fui na
bola, fui de pé baixo. Você acha que o Bola vai jogar macio? Vai é
lhe engavetar. Tô lhe fazendo um favor.”
Segunda
arrepiada e o Dezinho começou a se encolher. Mandei o time marcar
sempre com dois, porque os caras, apesar de bons, cadenciavam demais,
tocavam demais. “Marca com dois, quando a gente tomar a bola,
Pebinha dispara”. A ideia era aproveitar a velocidade desumana de
Pebinha pra lançar, aproveitando o ponto fraco do Sergim, a
lentidão. “Tomou a bola, dá no gol. Goleiro deles é fraco”, eu
gritava, já pra desestabilizar Bidu, que nunca teve um temperamento,
digamos, de gelo. “Boa, Brabo. Aqui ninguém passa”. “Não vim
aqui pra perder”, e gritava ensandecido, qual um obdulio do baba.
A
coisa começou a perder a graça. Ou a de fato ficar interessante, a
depender da perspectiva. Questão é que os “iluminados” não
esperavam uma resistência tão tenaz. Os meninos do meu time
entendendo que, se dessem a vida, no mínimo teriam de volta a
dignidade. Os adversários tinham espaço até o meio. Mas passou disso, era
Guga dominar uma bola, vinham dois mordendo o pescoço. Era a bola
chegar em Dezinho, eu vinha com minhas espanadas “carinhosas”.
Fora as bicudas pro gol. A primeira Bidu quase aceitou. A segunda
zuniu na trave. E a terceira foi pra dentro. Logo depois, trombei com
Dezinho e, como combinara, estiquei pra Pebinha, que do jeito que
recebeu mandou pro gol. A coisa estava empatada. Ninguém mais ria.
Agora
só se ouvia a minha voz. “Mantém, mantém! Aqui ninguém passa!”.
Os caras resolveram começar a chutar de longe. Mas Paulim Minhoca
estava no dia bom. Começou a pegar tudo. Bola na gaveta, bola
rasteira, e as que não pegava iam na trave. “Time ruim não tem
sorte!”, eu gritava a cada gol perdido deles. Estava em transe.
Mais duas bicudas de longe e fechamos a conta. 4-2. Ninguém,
absolutamente ninguém estava entendendo. O melhor time jamais
formado ali no campinho do Bidu acabava de ser derrotado por um
catado de pivetes, alguns sem a menor estrutura física inclusive.
Os
meninos ameaçaram comemorar de forma heroica e tal, mas eu botei a bola debaixo do braço
e, com toda a marra que o momento permitia, berrei: “e aí, vão
querer revanche?”, “tá louco?”, um dos nossos retrucou.
“Ganhamos uma vez e vamos ganhar de novo, pra não dizer que foi
sorte.” Enlouquecidos pelo rubor da vergonha, os de Bidu
evidentemente aceitaram, clamando vingança.
“Eles
estão desnorteados. Agora vem a melhor parte”. Eu estava
degustando cada momento daquilo. Era o momento de demolir os caras.
Provocar, pirraçar. Porque, quando se fustiga um oponente
determinado e concentrado, rapidamente a coisa reverte contra. Mas,
quando se atiça um adversário nervoso e desequilibrado, ele
derrete.
“Vamos
logo com isso que eu quero ver o Globo Esporte!”, “É esse catado
aí que quer ganhar do Bola?”, “Toca aqui que tá fácil!”.
Metade dos garotos já havia ido embora. O time do Bidu, como eu
imaginava, perdeu de vez o pouco controle que tinha. Começaram a
discutir entre eles. Agora Dezinho se negava a dar a bola a Guga.
Sergim por pouco não foi embora. Bidu dava socos na trave de
nervoso. "Ô Dezinho, toca a bola, deixa de ser mascarado", eu berrava, infernizando.
E
então deitamos. Passamos a chegar no gol dos caras em três toques.
Numa dessas tabelas, metemos o mais belo tento da jornada. Bidu quase
deu umas bolachas em dois garotos que gritavam “olé” do lado de
fora. Pebinha fez menção de rebolar pra cima de Sergim, aí tive
que dar um esporro: “Epa, respeita os caras. Jogo tá limpo!
Provocação só sadia!”.
Encurtando a conversa,
os caras cruzaram uma bola na área. Ganhei na cabeça e deixei pra
meu irmão, o Brabo. Que rebentou um balaço lá do Deus me livre,
uma bola que varou o arco quase abrindo um rombo no muro que ficava
atrás do gol. Era o último. Acabávamos de fazer 4-0. Pebinha ria
como se não tivesse amanhã. Paulim Minhoca não parava de
tagarelar. Os derrotados sumiram , evaporaram antes que eu, extenuado ao limite
das minhas forças, terminasse de matar a sede na torneira que tinha
atrás do gol.
De
volta pra casa, andando pra superar a distância de pouco mais de 200
metros que nos separava do campinho do Bidu, meu irmão me perguntou,
“como fizemos aquilo?”
“Simples.
Eu imaginei que a gente era o Flamengo.”
PS:
mesmo com a derrota, a Galera do Bidu enfrentou o time do Bola. E venceu por 3-2.