Manhã
preguiçosa de sábado.
Entregue
ao aconchegante abandono horizontal de um sofá, e ainda
reencontrando meu centro gravitacional e existencial após certa
travessura etílica na véspera, vou dedilhando sem pressa e sem
atenção a tela do pequeno aparelho que me está à mão, ansiando
para que a despreocupada, quase leviana busca por alguma nota
relevante se descortine vã. Sem paciência para ruminar qualquer
esboço de pensamento mais sofisticado que reações automáticas de
aprovação ou negação ao que se me escorre aos olhos, que ainda
teimam em se manter semicerrados, enfim me deparo com uma imagem que,
por repetida, suscita emergir um laivo de irritadiça curiosidade.
Afinal, por que catzo a foto do Petkovic comemorando o gol do tri
parece brotar do chão qual joio?
Sim,
naturalmente, alguém lembra lá de dentro da minúscula tela: amanhã
faz aniversário.
Ainda
ronrono, antes de renunciar à prerrogativa de tentar impedir que o
sono complete sua obra: “Caramba, dezessete anos...”
Em
que pese o quase irresistível ímpeto de recorrer a chavões
recitando a “inexorabilidade do tempo”, a “percepção de como
somos pequenos diante do passar dos dias” ou outras frases feitas
que encontraram vasto abrigo no imaginário popular, e por isso mesmo
se transmudaram nos tais clichês, prefiro trilhar outras vias,
embora seja impossível escapar das reminiscências que nos fazem
pulular espevitados, ignorando crateras temporais e nos trazendo a
hoje o pretérito mais que perfeito. Memória.
Foi
um campeonato místico. Não há outra definição que vista com mais
propriedade a saga daqueles primeiros meses do ano da graça de dois
mil e um. E o exercício da fé começava no nosso banco de reservas,
com o Velho Lobo Zagallo, devoto de Santo Antônio, sim senhor. O
homem que seria o condutor do tri, do qual já falava desde o final
do ano anterior, com uma obsessão quase religiosa. Fé.
Os
sinais começaram em outubro, 2000 ainda. O alemão Michael
Schumacher, depois de bater na parede por três anos, enfim conseguiu
se sagrar tricampeão de Fórmula 1, ao vencer o GP do Japão. Já
virado o ano, a Imperatriz cantou a cana-de-açúcar no Sambódromo e
cravou o tri do carnaval carioca. Ao longo de todo o primeiro
semestre, as tevês cobriram entusiasticamente a preparação do
tenista Gustavo Kuerten, em busca do tricampeonato de Roland Garros
(que acabaria conquistando em junho).
“Schumacher,
Imperatriz, Guga… Não tem jeito, esse ano é de tri”, eu
perturbava meu amigo vascaíno.
Começou
morno, como sempre começa. Com um regulamento mondrongo, que
mesclava duas fórmulas de disputa diferentes para cada turno, o
campeonato fez desfilar em suas primeiras rodadas as tediosas surras
dos grandes sobre os pequenos. Melhor para o Flamengo, que aproveitou
esses jogos contra os sparrings para entrosar seu ataque, e para o
Capetinha Edílson, que começou a fazer gol de tudo que é jeito e
tipo. Quatro escovadas contra Olaria, Americano, Volta Redonda e
Bangu (essa última mais sofrida, 3-2 de virada) e pimba, lá
estávamos em primeiro na chave, entre os quatro classificados para a
fase seguinte da Taça Guanabara. Sem zebras, os quatro grandes
classificados. Flamengo, Vasco, Fluminense e Americano.
E
na Semifinal, o primeiro encontro com o Vasco. E mais uma
manifestação esotérica. Pois, num jogo equilibrado em que
desfilavam em campo jogadores como Romário, Juninho Paulista, Viola,
Edílson e Adriano (que ainda não era o Imperador), quem fez a
diferença foi o inacreditável Roma, que entrou no segundo tempo
para incendiar o time e o jogo. Como que guiado por pés divinos, o
limitadíssimo Roma (uma espécie de imitação chinesa de um
genérico do Romário) começou a costurar meia defesa vascaína e
assim iniciou a jogada que rebentou num cruzamento para a cabeça de
Beto, a menos de dez minutos do fim. Flamengo 1-0, e ficou desse
jeito.
Passou
o Carnaval, veio a Final da Taça GB, num sábado para 70 mil no
Maracanã. Flamengo sem Petkovic (lesionado) e Edílson (convocado
para a Seleção), contra o Fluminense de Asprilla. Jogo ríspido,
corrido, trancado e muito pouco inspirado. Evidentemente o
Sobrenatural iria ter de agir. E soltou seus sinais. Primeiro, quando
Reinaldo, o reserva de Edílson, marcou talvez seu primeiro gol de
falta na vida, batendo perfeito no canto do goleiro, Zico assinaria.
Depois, como que para arrebentar as retinas dos céticos, já na
decisão de pênaltis decorrente de um empate árido, quando o
lateral-esquerdo Cássio, jovem e razoável reposição para a saída
de Athirson, executou mal sua cobrança, defendida pelo goleiro
Murilo, mas a bola, numa trajetória transcendental, repicou, ondulou
e quicou para dentro do arco tricolor. “Gol da bola”, gritaram os
jornais. Era o além.
Flamengo
campeão. “Falta só uma etapa pro tri”, e a frase de Zagallo já
avisava como seria a Taça Rio. O Segundo Turno se arrastaria em uma
longa fase de pontos corridos. Acomodado e vivendo seus problemas
internos (salários atrasados, elenco desunido), o Flamengo logo se
viu fora da disputa ao perder dois jogos seguidos para Americano e
América (ambos por 2-1). Melhor para o Vasco, que enfim reencontrou
sua competitividade e ganhou com facilidade o turno, com direito a
espancar o Botafogo por 7-0. Na última rodada, Flamengo e Vasco, num
jogo que virou “amistoso”, meteram os seus respectivos reservas.
Aliás, o Flamengo nem o Manto principal vestiu, arrumou uma camisa
vermelha pra colocar em campo. E só o loirinho Nélio valeu a pena
naquele cansativo 0-0, emulando Sávio e se revestindo no maior
craque de todos os tempos de um jogo só.
E
para surpresa de ninguém, Flamengo e Vasco se encontraram pela
terceira vez seguida para mais uma final de campeonato. E pela
terceira vez seguida o Vasco era tido como favorito. Vivia momento
melhor (vinha de títulos das Copas Mercosul e João Havelange) e seu
time era considerado mais equilibrado que o rubro-negro. E sua
Diretoria vinha obcecada em impedir que o clube sofresse a terceira
derrota seguida para o maior rival em finais. Romário, Juninho
Paulista, Jorginho, Viola, Euler, Helton, Alexandre Torres, contra
Júlio César, Juan, Gamarra, Leandro Ávila, Petkovic, Adriano e
Edílson, essas eram as duas bases.
E
depois do primeiro jogo pareceu mesmo que aquela seria a vez da caça.
O Flamengo jogou melhor, incomodou mais, abriu o placar com um belo
gol de Petkovic, mas duas falhas individuais no final da partida
deram a vitória aos vascaínos por 2-1. Pela primeira vez nessa
trilogia o Flamengo teria que construir uma vantagem de dois gols
para conseguir o tão almejado tri.
Mas
ainda havia um jogo a ser disputado, e aqui o clichê me pede licença
para avisar que “estava escrito”. E foi quando o infernal
Edílson, logo no começo do segundo tempo, finalizou de cabeça uma
jogada espetacular de seu desafeto Petkovic e abriu 2-1 no placar que
sobreveio a certeza. Porque ficou tudo na conta do drama. E, quando
se abre espaço para a emoção, o épico, a epopéia, a batalha
cardíaca, o Flamengo está à vontade, talhado que está para viver
as sensações mais extremas. E, de mãos dadas com todas as
divindades da bola, sua gente se preparou para a glória que lhe
estava esboçando sorrir. É como se soubesse como as coisas
terminariam.
Entretanto,
foi necessário exercitar a fé. Crer. Entender os sinais divinos,
presentes em cada intervenção do jovem goleiro Júlio César, cujas
defesas definitivamente não eram resultado de uma obra humana. Havia
algo de bíblico em cada um dos milagres que se multiplicavam das
suas mãos como fungos ao longo daqueles trinta, quarenta minutos
restantes. E aquele dois a um teimava em repousar pétreo no placar
do Maracanã, derramando escaldantes tintas de extasiado desespero
aos dois lados do apinhado estádio. O relógio escorria, célere,
aproximando-se do abismo. O Flamengo, exangue, parecia impotente
diante da parede montada pelo Papai Joel Santana. Parecia amparado
apenas e tão somente pela crença de sua gente, que seguia cantando
nervosa a sua esperança de felicidade. “Seremos campeões”.
Quarenta
e três minutos. Um ataque suicida, falta. A bola está distante do
gol. Petkovic, que durante o jogo dispôs de um punhado de
oportunidades semelhantes e invariavelmente despejou a bola para as
arquibancadas, persevera. Não admite interferência. Ajeita a
pelota. E, subitamente, rebenta o mistério divino. Uma multidão de
dezenas, centenas, milhares, milhões de flamengos ergue as mãos aos
céus. Invoca sua fé. Clama, chama, evoca, invoca a santos, orixás,
anjos, arcanjos e tudo o que é de mais sagrado, numa irresistível e
inesquecível manifestação de força coletiva. E se dá o milagre
da união, da sintonia de todos os povos flamengos canalizada e
concentrada em apenas uma e uma só vontade. Não há quem não se
arrepie. Petkovic segue ajeitando a bola. Alessandro reza. Reza o
estádio. Reza a cidade. Reza o país. Reza a Nação. Trila o apito.
Petkovic parte pra cobrança.
Dezessete
anos. Tempo pra burro.