quarta-feira, 2 de maio de 2018

Alfarrábios do Melo


- Estou fora.
- Como é que é?
- Estou fora. Deu. Acabou. Tô saindo.
- Tem certeza, Paulo? Não é melhor se acalmar um pouco? Aqui, de cabeça quente… Vá pra casa, pense melhor…
- Não, não. Essa decisão eu já tinha amadurecido. Hoje a coisa só apressou. Eu sei e você sabe como isso vai evoluir. Tô só antecipando o que já é inevitável.
- Não tem chance de reconsiderar?
- Não. Nenhuma.
- Então tá bom. Só lhe peço uma coisa. Segura isso até amanhã, não fale a ninguém. Aí lá na Gávea a gente anuncia pra todo mundo.
- Ok. Isso eu posso fazer. Mas só até amanhã.
- Fechado. Até mais, então.

Lívido e aturdido, quase transtornado, o VP de Futebol sai se esbarrando, aos tropeções, em sujeitos semi ou totalmente despidos, microfones e câmeras que se acotovelam no úmido, abafado e confinado salão de banho azulejado do Maracanã. Após alguns angustiantes minutos, enfim encontra seu alvo. Esbaforido, aborda-o de trambolhão, quase derrubando seu interlocutor.

- Presidente, Presidente…
- Pô, o que foi? Vai ter um treco, assim!
- O Paulo, Presidente. O Paulo pediu demissão.
- (…)
- Ele falou comigo agora. Quer sair. Diz que não tem volta. Mas garantiu que não vai vazar até amanhã.
- Chama o pessoal. Vamos agora pro Le Coin.

O Flamengo acaba de derrotar o modesto Tiradentes-PI por 2-0, num jogo em que precisa de apenas 25 minutos para definir o marcador, com dois gols de Zico. No entanto, a atuação apática e burocrática no restante do tempo irrita a torcida, que passa a perseguir os jogadores com vaias e ofensas. Não por acaso. Desde a perda do Estadual e da Libertadores no final do ano anterior, há uma espécie de divórcio entre o time e seu torcedor. Atuações apagadas cobertas por vaias têm permeado a realidade do rubro-negro. No jogo contra os piauienses, apenas o jovem atarracado ponta-esquerda Edson vai mostrando algo parecido com um futebol moleque e alegre. Edson, egresso da base, já deixara uma assistência e arrumado um pênalti, que Zico desperdiçara, batendo pra fora. O “prêmio” ao garoto baixinho é ser o “eleito” para sair, dando lugar à estreia de outro jovem, o baiano Bebeto. A opção pela saída de Edson põe o Maracanã abaixo, num coro de “burro”, “jumento”, “vendido” e outros adjetivos pouco altaneiros desferidos ao treinador Carpegiani. Que, ao final dos 90 minutos, desiste. E avisa que está fora.

A reunião no Le Coin, restaurante (e reduto rubro-negro) tradicional no Leblon, é tensa e agitada. Se é verdade que Carpegiani já vivia um irreversível processo de desgaste, também é fato que a Diretoria é totalmente surpreendida pela saída do treinador. O Flamengo segue na disputa do Brasileiro e da Libertadores, e os dirigentes contavam com o Carpegiani. Sem ele, as opiniões se dividem. Uns querem um nome mais experiente, cascudo (fala-se em tentar tirar Edu Antunes do América). Outros defendem a efetivação de Carlinhos, atual treinador dos juniores. Outra parte prefere que se insista em fazer Carpegiani mudar de ideia, mas acede depois de ser lembrada do temperamento forte e pouco flexível do agora ex-técnico. O concreto é que ninguém pode se levantar da mesa sem que a decisão tenha sido tomada. O Flamengo tem uma partida fundamental no domingo, contra o Palmeiras, e na semana seguinte vai decidir sua vida na Libertadores em dois jogos na Bolívia. Não há margem para hesitação. E, quando os primeiros raios de sol já sugerem pincelar o firmamento, enfim surge o consenso. Seguindo o caminho que encontrou êxito com Coutinho e o próprio Carpegiani, o Flamengo vai apostar em um nome “da casa”. Que conhece o clube, os jogadores. E que conta com o respeito da torcida, que o reverenciava em seus tempos de jogador. É, a curto prazo, a solução mais adequada.

E assim, Carlinhos, com 43 anos, sem nenhuma experiência prévia como treinador profissional, é efetivado como o novo treinador do Flamengo.

A notícia da saída de Carpegiani é recebida com surpresa e inesperada frieza. A sensação é de que o ciclo, encerrado nas derrotas do fim do ano anterior, havia sido desnecessariamente estendido. As vaias do Maracanã apenas sinalizaram a necessidade de mudança premente. O Flamengo arrasta-se em campo, sem motivação ou competitividade. Vai se impondo contra times mais fracos e, com a exceção da ótima atuação no empate (1-1) em Porto Alegre contra o Grêmio pela Libertadores, tem sido inapelavelmente superado por adversários de melhor nível. Com a mudança na comissão técnica, a expectativa é que o elenco reaja positivamente.

E os sinais são animadores, ao menos nas declarações dos líderes do plantel. Zico deixa claro: “Carlinhos é uma figura espetacular. Merece todo nosso empenho e nossa dedicação. No que depender de nós, terá passagem muito vitoriosa aqui no clube”.

Com efeito, Carlinhos, desde sua aposentadoria em 1970, jamais escondera sua intenção de se tornar, um dia, o treinador do Flamengo. Radicado nas divisões de base, onde tem realizado um bom trabalho, especialmente na revelação de jovens valores, é muito querido no clube e possui bom trânsito entre dirigentes, jogadores e torcida. E vai mesmo precisar desses atributos.

O clima político na Gávea ferve. O ex-Presidente dos tempos de FAF, agora desafeto, dispara nos jornais: “Tudo isso é responsabilidade do Presidente, que não conhece a real dimensão do Flamengo e não sabe administrar conflitos. Porta-se como um gerentão que quer se meter nos problemas do time e dos jogadores. Pode trocar o treinador. Se não mudar o modelo, não vai demorar pra ter que trocar de novo.”

O vaticínio da última frase logo irá se revelar inacreditavelmente acertado.

Maracanã vestido a rigor com 80 mil para festejar o novo Flamengo, que enfrenta o Palmeiras. O jogo é tido como uma espécie de revanche (os paulistas haviam vencido por 3-1, com sobras, o jogo no turno) e, talvez por isso, o rubro-negro começa de forma arrasadora. Abre o placar, com Baltazar, e cria exatamente DEZ chances reais de gol (numa delas, Lico desperdiça sozinho na pequena área). Mas sofre o castigo no final, cedendo o empate com um gol irregular, frustrando uma multidão que sai desconfiada do estádio.

Carlinhos, visivelmente nervoso, quase gaguejando, tenta manter o otimismo. “Nossa atuação foi maravilhosa, os jogadores estão de parabéns. Pode ver que o goleiro deles foi o melhor em campo. Estamos no caminho certo”

A questão é que o empate com o Palmeiras complica a situação do Flamengo no Grupo. Para passar à Terceira Fase, o rubro-negro precisa de um empate contra o Americano, no alçapão do Godofredo Cruz. Mobilizada, a diretoria campista promete um bicho milionário e acena com a perspectiva de lotação máxima do acanhado estádio. Para piorar, Zico apresenta fortíssimo inchaço em um olho, que está quase fechado por conta de uma cotovelada sofrida contra o Palmeiras. Animado, o treinador do Americano proclama: “Vamos vencer.”

E por pouco não consegue. O Americano aproveita-se da péssima qualidade do gramado e do nervosismo do Flamengo (mesmo com Zico, que atua no sacrifício) e chega a estar duas vezes à frente no marcador, mas dois gols de Baltazar asseguram o empate em 2-2 e a sofrida classificação rubro-negra. Aos trancos e barrancos, o Flamengo segue no Brasileiro. Agora é a hora de se concentrar na Libertadores.

A situação na competição continental não chega a ser delicada, mas já é incômoda. É verdade que na estreia o Flamengo arrancou um importante empate contra o Grêmio em um Olímpico lotado (1-1, numa grande atuação de Baltazar, autor de um gol de placa contra seu ex-clube). Mas o Grêmio conseguiu vencer seus dois jogos na Bolívia (2-0 Blooming e 2-1 Bolívar), o que obriga o Flamengo a fazer o mesmo, sob pena de perder a vantagem estratégica obtida em Porto Alegre. E é em um ambiente de incertezas e tênue confiança que os jogadores embarcam para Santa Cruz de la Sierra, para o primeiro embate, contra o Blooming-BOL.

O primeiro adversário da jornada em terras bolivianas não assusta. Lanterna do grupo, vem de sofrer um estrondoso 6-0 para o Bolívar. Os jogadores do Blooming disfarçam, mas apenas se darão por satisfeitos se não sofrerem nova goleada para Zico & Cia. A fragilidade do adversário contamina Carlinhos e os jogadores, que a cada entrevista parecem apenas demonstrar preocupação com a altitude de La Paz, local da partida seguinte. A armadilha da falta de foco se revelará fatal.

Marinho, que vive ótima fase, volta ao time, o que traz a expectativa de melhora na defesa (que anda sofrendo muitos gols). Mas o Flamengo, desconcentrado e apático, não consegue se impor à correria do Blooming. O time, mal armado e muito exposto, faz um jogo aberto contra o adversário, e inúmeras oportunidades são desperdiçadas pelos dois lados. Com o tempo passando, o time perde o controle dos nervos e acaba flertando perigosamente com a derrota, especialmente após duas alterações equivocadas de Carlinhos (inexplicavelmente troca Marinho por Mozer e entra com um garoto inexperiente no final do jogo). No fim, um desastroso 0-0, com tintas de vexame, que começa a fazer ruir a trajetória flamenga na Libertadores.

Mas o pior ainda está por vir.

Após o péssimo resultado em Santa Cruz, Carlinhos começa a ser questionado pela imprensa. Poucos entendem porque o treinador sacou Marinho do jogo (“eu estava bem, não senti nada”, alega o zagueiro), desperdiçando a chance de mexer no meio ou no ataque. Ou a incompreensível opção por fazer praticamente estrear entre os profissionais, logo num jogo de Libertadores, o jovem ponta-direita Felipe, jogado numa desnecessária fogueira.

Os sintomas de problemas no ambiente interno seguem expostos. Criticado por um suposto cansaço excessivo dos jogadores no final do jogo, o preparador físico não poupa palavras: “O time está correndo. É só ver a quantidade de chances que criam até o final. Agora, eu não posso ser culpado se os jogadores não põem a bola dentro do gol.”

Visivelmente tenso, o Flamengo alinha para o decisivo duelo de La Paz, contra o bom time do Bolívar e, principalmente, contra a temida altitude da capital boliviana. Carlinhos, irritado com as entrevistas de Marinho questionando sua substituição em Santa Cruz, saca o zagueiro do time. O jovem Felipe, dessa vez, entra desde o início, em mais uma demonstração de confronto. “Felipe tem bom desempenho físico. Eu sou o treinador, e coloco e tiro quem eu quiser”. A pretensa manifestação de força é recebida como demonstração de insegurança. E isso passará pro campo.

Para surpresa de poucos, o rubro-negro sofre uma das mais humilhantes derrotas de sua história recente. Com incrível facilidade, o Bolívar abre três gols de vantagem e perde a chance de construir uma goleada histórica. Apenas no final do jogo, quando o adversário reduz o ritmo, o Flamengo consegue um gol (Edson) numa jogada esporádica. No fim, a derrota por 3-1, num jogo em que nem o empate servia, praticamente sela a eliminação. O rubro-negro, salvo um improvável milagre, está fora da Libertadores.

E o Flamengo explode em crise.

A confiança em Carlinhos se vaporiza. Mesmo o elenco, que antes apoiava o treinador, perde a crença em seu trabalho, após as escolhas erradas na Bolívia. Um dos líderes do elenco dá um recado velado: “Agora é hora de parar e começar tudo de novo". A percepção é que, embora flexível e com boa capacidade de "enxergar" o jogo, Carlinhos ainda não reúne a experiência necessária para agir com desenvoltura em um ambiente impregnado de pressão, como é o cotidiano do Flamengo.

Os jornais deitam e rolam. Longos editoriais discorrendo sobre a “decadência do Flamengo” e “o fim de uma Era” preenchem caudalosas páginas dos matutinos cariocas. Parece difícil retrucar. O Flamengo, de fato, não exibe um futebol competitivo e convincente desde a Final da Taça Guanabara do ano anterior, que já vem de longínquos meses. Lesões, atritos entre jogadores e comissão técnica e mesmo o desgaste de um sistema de jogo já absorvido pelos adversários trazem a sensação de que nem mesmo a luxuriante oferta de talento individual é capaz de reverter a tendência de queda de produção mostrada pelo Flamengo. A hora, pensa-se, é de renovar.

A Diretoria age rápido. “Rebaixa” Carlinhos à condição de interino enquanto procura um nome mais experiente no mercado. Tenta Evaristo de Macedo, mas não consegue tirá-lo do Qatar, onde está preso por um bem amarrado contrato. Enquanto isso, o jovem treinador junta os cacos para o jogo contra o Goiás, na estreia da Terceira Fase do Brasileiro.

Carlinhos saca Figueiredo e Edson do time, voltando com Marinho e deslocando Adílio pra ponta-esquerda. Os jogadores barrados reclamam, “viramos os bodes expiatórios”, e Adílio não esconde seu incômodo em atuar, novamente, em uma posição que detesta: “Que jeito, né? Pior que tenho que render, senão vão dizer que estou de corpo mole.”

“Adílio pipoqueiro”, “Time sem raça”, “Júnior bailarino”, “Show de fracassos”. São algumas das faixas “carinhosas” com que a torcida recebe, no Maracanã, os jogadores na gelada noite de segunda-feira em que o Flamengo, atuando burocraticamente, derrota o Goiás por 2-0, com gols de Robertinho e Zico. As faixas são condenadas pelo colunista João Saldanha, que alude à “politicagem barata e selvagem daqueles que querem se servir do Flamengo em um momento ruim”.

No momento em que o caldeirão da Gávea arde, o Presidente está nos Estados Unidos. Viaja, licenciado, para acompanhar o pai, seriamente doente. Enquanto segue no exterior, acompanha com apreensão as notícias vindas do Rio de Janeiro. Em New York, aproveita o ensejo e se encontra com um velho amigo. Ex-jogador consagrado, recentemente aposentado, atualmente ajudando a recrutar jogadores para seu ex-clube, o NY Cosmos. A conversa é boa e vai se estendendo. À medida que os problemas do Flamengo vão sendo colocados à mesa, discutidos de forma direta, franca e sem subterfúgios, uma ideia, aparentemente desconexa, vai tomando forma na cabeça do Presidente. Sim, talvez dê certo. Por que não?

- Capita, e se…?
- E se… o que?
- E se… Isso mesmo que você está pensando. Topa?

Com quatro meses de atraso, vai começar o ano de 1983.