Saudações
flamengas a todos.
Há
cerca de vinte anos, no final da década de 1990 portanto, eu viajava
periodicamente à cidade de Vassouras, no interior do Rio de Janeiro,
por motivos profissionais. Durante a estadia, costumava me refestelar
com uma prosaica iguaria servida no restaurante de um dos principais
hoteis da simpática cidade. O acepipe consistia de uma lajota de
picanha servida inteira sobre uma chapa ardente, com um garçom,
facão às mãos, retalhando-a em delgadas lâminas que, após
grelhadas, rapidamente migravam aos pratos dos comensais. Eu fazia
questão de indicar meu ponto preferido entre “cru” e “semicru”,
algo como uns dois pontos antes do malpassado. Até hoje me recordo
do arrepiante ímpeto selvagem com que eu me entregava ao ritual de
destroçar com os dentes aqueles tenros nacos de carne, que gotejavam
um orvalho que tingia e umedecia de um rubro cintilante a pequena
colina de farofa que, margeando o prato, prestava-se a escoltar a
primitiva refeição. Uma sensação que emanava das entranhas e
suscitava ondas de uma agressividade outrora reprimida, represada,
mitigada. Pupilas dilatadas, boca salivando, uma incontrolável gana
de arrebentar, espicaçar, esfacelar, numa espiral que desconhecia os
limites do razoável. Ali eu me sentia, em toda a plenitude de minha
existência, um animal.
Sensação
semelhante irrompeu na quinta-feira próxima passada, quando o CR
Flamengo anunciou a demissão de alguns integrantes do Departamento
de Futebol. Com efeito, a saída de Rodrigo Caetano, Carpegiani,
Mozer e Jayme de Almeida, entre outros, fez rebentar um espasmo de
irrefreável euforia, algo catártico, quase tribal, tendo em vista a
perspectiva da inevitável e infalível imagem metafórica das
cabeças sendo cortadas pela afiada lâmina dos justos. Enfim a voz
da torcida, materializada nas declarações do Vice-Presidente
Ricardo Lomba, revestiu-se em eventos de efeito prático. Parecia
que, finalmente, o CR Flamengo seria sacudido por um fato novo.
Parecia.
Durou
menos de vinte e quatro horas. Após danças, contradanças,
declarações oficiais, notícias “vazadas” e toda uma sorte de
artifícios e artimanhas políticas, resolveu-se desdizer o dito,
retratar-se com os “ofendidos”, ratificar o “caminho certo”,
celebrar missas pelas almas que se foram (numa arrogante e vã
tentativa de romantizar a incompetência), e deixar bem claro que o
Futebol do CR Flamengo segue nas mãos de quem sempre esteve,
mantendo-se as mesmas prerrogativas e conceitos. E, ao torcedor,
restou a amarga indigestão do jantar servido na véspera, a ilusão
das mudanças dissipando-se em uma densa bruma.
Seria
repetitivo e redundante discorrer, pela noningentésima vez, acerca
das evidentes limitações do Presidente do CR Flamengo, no que
concerne à sua nervosa insistência em demonstrar a mais remota
capacidade de liderar a condução do futebol do clube. Desprovido de
preparo técnico, incapaz de exarar alguma análise minimamente
lúcida sobre desempenho e resultados esportivos, eivado de conceitos
de gestão de pessoal que soterram a mais tênue pretensão de
espraiar um ambiente competitivo e voltado para conquistas, dado a
práticas de ingerência e intervenção que mitigam a atuação de
alguns subordinados, enquanto desfere ampla liberdade de ação a
outros profissionais igualmente despreparados e órfão do mais caro
atributo inerente a um comandante, a prerrogativa de avaliar a
necessidade de correção de rumos, tudo isso envolto em uma pétrea
convicção de infalibilidade que o faz refratário a críticas, nas
quais enxerga invariavelmente falta de espontaneidade. Sigam o chefe,
ou não são rubro-negros. E nisso estagnamos desde 2010.
No
entanto, apesar das idiossincrasias do mandatário e sua cada vez
mais restrita entourage, é inegável que o passaralho de quinta
abriu severas lacunas no Departamento de Futebol (outras não tão
severas, é verdade). De formas que se faz necessário entender qual
o tipo de rumo a ser seguido doravante. Porque sair limando Araújos
e Caetanos é algo que reconforta, aquece mentes, corpos e corações,
qual um linimento para almas inquietas. No entanto, saciados os
angustiados instintos, resta à mesa a inescapável questão: e
agora?
Buscar
reparar as deficiências do elenco recorrendo ao mercado ou à base?
Enfim estimular de fato a transição de alguns jovens nitidamente
talentosos? Como lidar com focos de acomodação no plantel? Eliminar
maçãs podres ou procurar enquadrá-las? Como minimizar o risco de
erros em contratações? Como aproveitar jogadores como Trauco, que
brilha na Seleção Peruana mas simplesmente não rende no Flamengo?
Buscar um trabalho de longo prazo ou perseguir resultados de
imediato? Investir numa comissão técnica mais experiente ou
privilegiar profissionais sintonizados com práticas mais modernas?
Apostar num estrangeiro ou seguir com um treinador “da terra”?
Como adequar as características dos principais jogadores do elenco
dentro do escopo de uma equipe titular competitiva? Quais as
estratégias de aproveitamento e rodagem do elenco diante da
perspectiva de empilhamento de jogos pelo Brasileiro, Libertadores e
Copa do Brasil? Qual a expectativa de aproveitamento de Vinícius
Júnior e, em caso de saída imediata, como será reposta? O que
fazer com nomes como Lucas Paquetá, diante do iminente assédio de
clubes europeus? Esforçar-se para retê-lo ou render-se à segurança
de uma robusta proposta? O que, concretamente, fazer com Guerrero?
São
questões que se multiplicam, e com as quais o clube terá que se
deparar em curto prazo. Independente do caminho que se resolva
seguir, o que se requer é que a Diretoria do CR Flamengo o trilhe
com convicção. Certeza. Foco. E, principalmente, a energia e o
discernimento tão necessários para o desenvolvimento de eventuais
ações corretivas e punitivas que se apresentarem como necessárias.
Sempre as haverá.
No
entanto, não há nenhum traço de elemento objetivo que nos convide
a nutrir a mais remota suposição de que as escolhas, as opções e
as definições de rumo do Futebol do Flamengo deixarão de se
revestir intoxicadas pelo paternalismo, pelo corporativismo, pela
leniência, pela promiscuidade com subordinados, pela complacência
bovina diante das derrotas, pelo voluntarismo e pela pubescente
necessidade de embolsar o monopólio da razão. E, agrilhoado, o
Flamengo seguirá asfixiado pela corrosiva atmosfera da derrota, do
subterfúgio, da teoria do acontecido, a alma estilhaçada pela mais
cruel e melancólica demonstração de rejeição de sua gente: a
indiferença.
Só
que, no momento certo, o Flamengo e toda sua massa, seu povo, sua
Nação, saberão responder. E, diante daqueles que lhe emperraram a
glória, irá se debruçar faminto, olhos injetados de sangue, a boca
seca, as veias latejantes, as vestes empapadas de um esfomeado suor.
E então histórias, reputações e biografias se reduzirão a meros
pedaços de carne, prontos para serem dilacerados pela enfurecida
horda de feras famintas pela alma que lhes foi sequestrada. Que lhes
foi negada.
E
desse banquete emergirá um Flamengo que nunca mais será o mesmo.
Boa
semana a todos,