DE ANJINHOS E DIABINHOS
(Está
concentrado. Desliza os dedos sobre a vítrea superfície do pequeno
aparelho. Vai transpondo as etapas do processo de cadastramento. Está
disposto a informar nome, idade, estado civil, endereço e tudo o
mais que se fizer necessário. Agora lhe é pedido que indique uma
imagem. Não sem certa dificuldade, logra afixar um desenho que
transfunde uma imagem do Zico a um fundo em negro e rubro. Enfim
suspira. Enfim, pronto).
-
Finalmente consegui abrir minha conta no Twitter. Preciso fazer minha
primeira postagem. Ahn… Já sei, hoje tem jogo. Vou lançar “Hoje
é dia de Flamengo! Bora Mengão, vamos ganhar!”
<< Ei
ei ei, o que é isso? Não é o momento de pachequismo e ufanismo. O time nessa draga... Quer ser chamado de baba-ovo da Diretoria? >>
(a
voz zumbe de dentro de seus tímpanos, silenciosa e estridente como
uma enxaqueca. O suficiente para fazê-lo interromper o movimento dos
dedos).
-
Hum, pensando bem, acho melhor ser mais crítico. Mais “cabeça”.
Vamos ver… “Hoje tem Flamengo. Que esse bando de frouxos não nos
envergonhe. Ganhar é obrigação!”
<< Peraí!
Vai jogar energia negativa no dia do jogo? Que espécie de torcedor é
você? Time titular tá invicto, é líder na Libertadores... O que você quer mais? Vão lhe chamar de corvo, de cassandra,
ou pior, de botafoguense! >>
-
EPA, BOTAFOGUENSE NÃO! AÍ É OFENSA PESSOAL!
(Exalta-se
num espasmo e depois, percebendo-se um tanto ridículo por esbravejar
sozinho em seu quarto, tenta esquecer o sibilar que ribombou em seus
miolos. Agora coloca o celular ao lado e resolve pensar mais um
pouco).
-
É, esse negócio de postar coisa sobre o jogo não vai dar certo.
Deixa eu ver então… Já sei, posso falar dos jogadores. O Diego
deu entrevista, né? Pronto, lá vai. “Diego está tentando assumir
a responsabilidade? Bacana, precisamos de algo assim”
<< Deixe
de ser ingênuo, o Diego é muito bem assessorado, isso é coisa
ensaiada pra limpar a barra com a torcida. Tá precisando é deixar
de ajeitar cabelinho e começar a resolver de fato. >>
-
Hem… Hum… Acho melhor dar uma apertada. “Muito papo e pouca
bola. Diego precisa falar mais é com os pés e deixar de ser
pipoqueiro.”
<< É
por isso que nenhum jogador dá certo no Flamengo. O cara é o melhor
jogador do time, admirado por geral, elogiado até pelo Tite, mas pra
essas malas daqui ele não serve. Complicado, viu? >>
(Começa
a perceber que esse negócio de postar em rede social não é tão
simples como parece. Já está há meia hora e ainda não conseguiu
publicar nada. A rigor, não sabe como lidar com seus barulhentos
fantasminhas internos, que parecem cada vez mais desenvoltos).
-
Tudo bem, Diego vai dar confusão. Falar do Guerrero, então. Tá
acabando a suspensão, vou dar uma moral pra ele. “Força,
Guerrero, tá fazendo falta!”
<< Você
não pode estar falando sério. Virou viúva do Guerrero agora? O cara
ganha 1 milhão pra fazer cara de choro e perder gol? Nem pense em
postar isso! >>
-
Pô, tá osso. Deixa eu ver… “Guerrero perto de voltar. Se
voltar. Será que vai deixar de ser dinheiro jogado no ralo? Será que vai botar o pezinho? Copa...”
<< Isso,
esculhamba mais. Faça o jogo da imprensa paulista e dos arco-íris.
Guerrero é um dos melhores atacantes do país. A hora que sair
daqui, vai ter time fazendo fila pra levar. É ídolo no país dele e
tal. Mas aqui não serve. Se você quer se alinhar aos que defendem
que nada presta, que nada tem valor, vá em frente! >>
-
Ok. Nada de jogadores, então. Falar de alguma coisa mais,
digamos, unânime. O CT novo. Não é possível que alguém esteja achando ruim as obras do CT. Deixa eu ver, achei uma foto. Só comentar em cima,
agora. “Imagem das obras. Esse CT vai ficar fodástico!”
(Chega
a preparar o tweet e está pronto pra, enfim, publicar alguma coisa,
mas no último momento é interrompido)
<< Sabia!
No fundo você é um militante foca. Um lambe-solas do Banana. Um
comedor de pizza. Vai postar foto do CT, daqui a pouco da piscina,
depois vai publicar prêmio do Itauzão, e por fim vai cuspir regra
querendo comemorar seu sexto lugar em paz! Smurfete! Devolva meu
Flamengo! >>
-
Não tinha pensado por esse lado. Nada de fotos, então. Vou arrumar
isso. Deixa eu ver… “CT nababesco em ano de eleição. Enquanto
isso, o time na lama. Cadê o dinheiro do VJ?”
<< Cassandra!
Oportunista! Bapete! No fundo você torce é contra! Quer o que? O
tempo da corja de volta? Tá com saudade da Patrícia? Vai ver o
legal era atrasar salário e ser despejado de terreno. Pois é. Siga
batendo nos bons e vai ver quem vai sobrar pra tocar o barco! Quer o
Flamengo de volta? O Flamengo que brigava pra não cair? Que fingia
que pagava pros caras fingirem que jogavam? >>
-
CHEGA!
(O
urro vem das entranhas. Dessa vez não se sente ridículo, mas
irritado. E está pouco se importando, porque agora vai começar uma
inflamada arenga. Pras paredes e, principalmente, pras infernais
vozes que pipicam como grilos em sua esfolada mente)
-
O que vocês querem? Não pode elogiar, não pode criticar… Eu
quero comentar fatos e discutir ideias, foi pra isso que abri a
conta. Será o catzo que isso não é possível? Será que não posso
simplesmente lançar meus posts de modo espontâneo? Não posso
reclamar de um jogo ruim e exaltar um momento bom? Por que eu tenho
necessariamente que seguir uma linha? Um partido? Uma seita? Por que preciso obrigatoriamente xingar e ofender quem não concorda comigo?
<< É
porque assim são as coisas hoje. >>
<< Sim.
Pra entrar numa rede social, precisa marcar uma posição firme.
Senão é desacreditado. Ou você nunca viu aqueles RTs históricos,
de coisas que o cara defendia lá atrás e agora fala o contrário?
Isso desmoraliza. >>
-
Mas aí às vezes o contexto é outro, oras (pensa vagamente em parar
com esse diálogo surreal, mas resolve seguir com a coisa). Não dá
pra simplificar todos os casos. E tem outra, eu sou torcedor, não
analista de desempenho financeiro ou administrativo. Quero ganhar
jogos, comemorar, tirar onda com os rivais, gritar “é campeão”.
É difícil isso?
<< Você
vai perder likes. >>
<< De
fato, será difícil amealhar RTs. Poucos vão lhe seguir. Você fará
parte do limbo. >>
-
Olha, quer saber? Vou rascunhar alguns tweets aqui. Do jeito que me vier na cabeça. Depois
pego tudo e publico de vez. Aí vocês não me enchem mais o saco.
(Abre
um editor de texto no celular e começa a teclar sem interrupção.
Aos poucos as frases vão preenchendo toda a tela do equipamento. Ao
terminar, contempla a obra. Parece satisfeito).
“Problema do time não é só jogador. Temos bons nomes, mas a
impressão é que são mal preparados”;
“No fim do ano termina o
mandato. Boas ideias, vários êxitos, mas profundo fiasco na
essência”;
“Rodrigo Caetano, fez alguns bons negócios mas não
conseguiu criar um elenco vencedor”;
“Mengo joga hoje. Temos mais
time, podemos e devemos vencer. Não quero nem pensar em outra
coisa”;
“Diego. Parece querer vencer aqui, mas acho que o líder
não pode ser ele”;
“Guerrero: Flamengo paga a ele salário de
estrela. Mas o peruano é só um coadjuvante de alto nível”;
“Dizem que o CT vai ficar belo e avançado. Mas e o outro? Esse
cronograma era previsto?”
(Olha
o conjunto de frases, sente-se à vontade com o conteúdo. Nada muito
aprofundado, depois os argumentos se desenvolvem. Corre um dedo aqui,
trisca outro ali, e pronto. Todos os tweets postados. Sente-se
cansado. Pensa em tirar uma soneca. Mas, ao pousar a cabeça no
travesseiro, volta a ouvir as, agora, familiares vozes do seu aquém
e além. Parecem mais fortes, tão intensas que lhe remetem a uma
imagem de um inquisidor apontando seus dedos grossos à face, como
que o encaminhasse ao punitivo ardor eterno do fogo dos pecados
expiados. A fogueira dos proscritos. Dos malditos.)
<< ISENTÃO!
ISENTÃO! >>