Uma eternidade.
Os
poucos metros que separam o portão de acesso do campus do cacho de
orelhões posto à disposição do público transmudam-se em
intermináveis léguas. Transido de expectativa, pouso as mãos
trêmulas em um dos aparelhos e insiro o cartão, chave do juízo
final, do veredicto que se revestirá do condão de pautar meu estado
anímico nos próximos minutos, horas, dias. O som seco e metálico
que se perpetua enquanto a ligação não se completa é angustiante.
Brota um suor que me enregela a pele, rajadas taquicárdicas ameaçam
comprometer qualquer capacidade de compreensão da realidade. As
entranhas parecem-me emergir pela boca quando o característico som
agudo intermitente enfim brota do telefone, logo sucedido por uma
familiar voz feminina, que, ao invés de confortar, ninar e acalmar,
termina por me fazer explodir em espasmos de ansiedade. “Alô,
filho, tudo bem?”. Em um derradeiro esforço, reúno as últimas
forças da minha existência e, num sopro de voz, consigo expelir a
pergunta vital que me trará a única verdade que, perdigueiro,
persigo nesse exato início de manhã e que, sem a qual, seguirei
moribundo, inerte, exangue.
“Quanto
foi o jogo?”
Uma
semana longe de casa. A primeira vez de um jovem
universitário sedento de vida, de experiências, cioso de autonomia
e liberdade. Atributos feericamente arremessados em alucinadas tardes
e noites de bebedeira, flertes, festas e tudo o mais afeto aos
anseios de um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco que
viaja com a galera.
Com
efeito, não há madrugada que resista às rodadas de dominó “a
cachaça”, ou às sessões de forró que fazem ferver hormônios e
instintos, ou aos mais comportados, mas não menos pulsantes,
passeios como o do bugre “com emoção” que cavalga a colossal
montanha-russa de areia. As conversas regadas a hectolitros de
cerveja e aguardente, os sonhos compartilhados, as histórias
contadas, os planos para o futuro, vestidos de matizes verborrágicas,
caudalosas de existências que não se permitem pensar em cinza ou
aceitar o meio-termo. Vida louca, louca vida.
O
sujeito que dorme enrolado em seu próprio paraquedas, a impagável
discussão entre o paraense e o cuiabano sobre as virtudes do carimbó
e do rasqueado, o vitorinha que se jacta de morar em um quarto
totalmente decorado com as coisas do seu clube, o maluco que canta a
dor e a delícia de ter sido abandonado pela namorada, a garçonete
que flerta com todos os mancebos de uma mesa de bar, os ruídos
lúbricos da piscina do campus, ignorados por uma vigilância menos
preocupada em reprimir do que em espiar.
“Tá
tudo bem, filho. Foi 1-0 e o Flamengo ganhou nos pênaltis”
O
urro gutural e eufórico faz alguns transeuntes menearem seus rostos,
para logo depois tornarem às suas vidas. Indiferente, agora clamo
por detalhes. Agora não interessa o sono de noites perdidas, são
irrelevantes as olheiras, o cansaço, as três horas de sono. Quero
detalhes, quero fatos. De quem foi o gol, quem jogou bem ou mal, se
alguém foi expulso, essas coisas.
E
do outro lado a mãe paciente e compreensiva consegue represar sua
irreprimível necessidade de saber como o filho anda, se tá comendo
direito, se tá dormindo, se não tá faltando nada… E se põe a
narrar como foi o jogo, “mãe, mas precisa ser rápido, daqui a
pouco o cartão acaba”, e descubro que Gilmar foi o herói, pegou
dois pênaltis, fechou o gol no tempo normal e, pra coroar, ainda
converteu uma cobrança. Que o River Plate era um time bom, que o
jogo foi difícil, que tinha um tal de Ortega que o narrador falava
que era um “novo Maradona”, que o juiz não deu dois pênaltis
pra gente, que o gol foi do Rogério de cabeça, e vou ouvindo tudo
aquilo e subitamente uma sensação estranha me vai subindo e tomando
todo o corpo. Uma espécie de melancolia, quase uma dor. Um aperto.
Porque,
no calor da batalha, no ardor da disputa, no momento em que o
Flamengo decidia a vida e a morte na competição, eu não estava lá,
de braços dados, berrando, xingando, pulando. Jogando junto. A
cadeira de fé, diante da televisão, vazia, silenciosa, enquanto o
time “se virava sozinho”. Agora, o relato parece doloroso,
provoca pontadas. Eu deveria estar exultante, mas só me é concedida
a vontade de ficar em silêncio.
“Valeu,
mãe. Agora tenho que desligar. Daqui a dois dias estou de volta. Estou bem. Beijo.”
E
volto pro alojamento.
Saudade
do Flamengo.