O
jogo está prestes a começar.
Mais
um Flamengo x Vasco, o enésimo em quase quarenta anos de futebol.
Daqui a pouco se fará meio século de paixão rubro-negra, vem um
pensamento que se vai em átimo, rebentado pelo espocar de duas vozes
que brotam do televisor. Vozes familiares, que provocam reações
bastante conhecidas. Sensações que não pretende reviver, não na
tarde de hoje. Com efeito, tudo o que não precisa é ter que
suportar as ilações melífluas da dupla flu-botafoguense, aferrada
à sua “neutralidade” pouco sutil, que convida o espectador à
partida que está próxima a ter início. Não, obrigado. E desliga o
volume.
No
entanto, também não deseja imergir no tal “silêncio
ensurdecedor” de clichê. Quer se concentrar no embate, no time, no
ambiente. De certa forma, sente falta do clima do jogo, do som do
estádio, de todo o ambiente que cerca um jogo de bola. Mesmo que
periférico, semi-amistoso. “Se eu apostasse, cravaria 0-0, tá
toda cara”, pensa. Olha para o celular que vibra nervoso, mensagens
pipocando, como sói acontecer em todo dia de Flamengo. E vem o
estalo.
Com
a ajuda da Internet, vai ouvir no rádio.
“ROLOOOU
A BOOOOLA...”
À
sua frente, a tela da TV vai mostrado que vinte e dois jogadores vão
brigando entre si e com a bola, protagonizando um já esperado
espetáculo chafurdado em um pantanoso lodaçal de mediocridade, numa
ópera-bufa onde a repetição do mantra “não perder” assume
contornos quase religiosos. Mas parece pouco se importar. Sua
atenção, sua existência, o eixo de sua essência anímica está
direcionado para o som ritmado e sincopado que ora sai do aparelhinho
pousado ao seu lado. É como se reencontrasse velhos conhecidos,
amigos de longa data. O Garotinho e o Canhota. Sim, a idade já pesa.
Um luta contra as limitações impostas à sua outrora enérgica voz.
O outro se dedica a não muito mais do que tecer considerações
desairosas a jogadores, treinadores, árbitros e tudo o mais que lhe
vem à mente, numa pouco espontânea tentativa de mostrar-se
rabugento. É como se a cruel devastação do tempo, que reduz a um
esquálido rabisco o que em outros tempos havia sido o “Clássico
dos Milhões”, estenda-se também às cabines do rádio. Mas não
interessa. O impacto das divagações reflexivas começa a se impor.
E não demora a perder o interesse pela partida, que vai se
arrastando, automática. Agora o que importa são os jargões, as
expressões, o ritmo ainda frenético das ondas do rádio.
“É
FALTA… PAROU, PAROU, PAROU!”
Agora
é um garoto imberbe nos seus sete, oito anos. E não é fácil viver
o Flamengo a tantos quilômetros do Rio de Janeiro. Jogos pela
televisão são raros, somente em momentos decisivos ou amistosos que
reúnam algum atrativo. A primeira vez que vê o Flamengo é na final
do Tri, contra o Vasco. Aquelas camisas rubro-negras, de uma beleza
ofuscante… O Flamengo ganha de 3-2, num jogo dramático, é
campeão. O menino crava e grava nas retinas o momento do primeiro
encontro. Outros demorarão.
Tempos
de garimpar qualquer informação. O rádio da casa é monopólio de
um zeloso e ciumento pai, que nem sempre está em casa, atuando em
plantões. Donde, qualquer coisa serve. É o caso da chamada para a
Loteria Esportiva no início do Fantástico, onde os resultados do
domingo são anunciados. Várias e várias vezes é ali que descobre
se o Flamengo ganhou ou perdeu. Se ganhou (como quase sempre
acontece), anima de ficar acordado para ver os gols mais tarde. Do
contrário, vai dormir por ali mesmo, algo frustrado.
Diferente
é quando o pai está em casa e se aboleta na poltrona, rádio em
punho, ouvindo uma transmissão de voz possante, rochosa, que troa
uma mal, ou nem disfarçada, paixão de ser rubro-negro. Que narra
ataques flamengos em galope, como uma cavalaria de herois prontos a
acossar e a se apoderar do território inimigo. São tempos áureos,
embalados a Jorge Cury. Ou a Waldir Amaral, Edson Mauro, Doalcey
Camargo.
“ANOOOTEM…
TEEEEEMPO E PLACAAAAAR NO MARACAAAAA”
O
jogo segue arrastado em um rançoso 0-0. A modorra por vezes é
quebrada quando o Canhota provoca risos ao impingir notas “zero”
ou “dois” a alguma jogada ou jogador. O fraco desempenho
individual e coletivo do Flamengo continua estimulando a insólita
viagem ao passado. Agora já é um rapaz e já possui seu próprio
rádio. Não mais depende dos horários do pai. Entretanto, não
demora a descobrir que ouvir o Flamengo não é uma atividade tão
simples. É que o sinal da rádio carioca só eclode ao cair da
tarde, por volta das 5 e meia, 6. Como as partidas iniciam às 5,
invariavelmente a transmissão “inicia” com os jogos já em
andamento, o que provoca uma expectativa torturante em dias de
grandes clássicos. O paliativo de tentar notícias de eventuais gols
via rádios locais não ajuda a apaziguar os ânimos, muitas vezes
atiçando ainda mais o nervosismo. Quando, aos poucos, em meio aos
estridentes chiados metálicos, um fiapo de voz começa a se fazer
audível, o jovem sente-se esvair pelas entranhas, obcecado por
notícias.
Nessa
época, já se terá calado o possante Jorge Cury, vitimado por um
acidente de carro. É o tempo de Luiz Penido, Luiz Carlos Silva,
Antonio Luís, Maurício Menezes e da estrela maior, o Garotinho José
Carlos Araújo, que se destaca pelo ritmo alucinante que imprime ao
microfone, recusando-se a conceder ao ouvinte um mísero momento de
pausa. Os bem-humorados bordões e a postura de Araújo (que é
tricolor, mas sabe como poucos estimular o torcedor para quem está
narrando) transformam o jogo de futebol em um agradável monólogo,
que amplifica vitórias e mitiga (na medida do possível) reveses.
“APITE
COMIGO GALERA...”
O
início, ainda tímido, é em 1987, quando a TV começa a descobrir
as possibilidades de um mercado adormecido. O Flamengo, com o tempo,
irá se tornar cada vez mais frequente nas telas do país, criando a
cultura e o desejo de ser visto, não ouvido. Mas esse processo
levará um cacho de anos, sendo, portanto, ainda possível e mesmo
necessário se aprofundar no rádio. A mera transmissão das partidas
não mais é suficiente, e resenhas como o “Bola de Fogo”,
apresentado por Kléber Leite, que comanda cronistas livres para
baterem boca exercendo suas paixões clubísticas, começam a se
tornar programas rotineiros. Como o Panorama Esportivo, que no tardar
da noite traz todo o apanhado do dia dos grandes do Rio de Janeiro. É
o auge da interação com o rádio, e o início, ainda insuspeitado,
de seu declínio.
“VOCÊ
AÍ NO VOLANTE, OBRIGADO PELA CARONA QUE ME DÁ, COM A … AO SEU
LADO”
O
jogo vai chegando ao final. O Flamengo melhora e começa a empurrar o
adversário para seu campo. As oportunidades, antes esparsas, começam
a pipocar e clarear. Súbito, um gol, estranhamente anulado pela
arbitragem. Impossível deixar de recordar Mário Vianna, “com dois
enes”, o precursor do comentarista de arbitragem, que, ao pousar os
olhos no lance, certamente troaria enfezado e empostado ao microfone:
“EEEEEERRRRROU!”. Pouco depois, Vinícius Jr recebe passe
açucarado e está para marcar, tenta um toque macio buscando um
lance cujo desfecho certamente faria as latinhas ribombarem gritos
como GOLAÇO,AÇO,AÇO, ou GOLÃO, GOLÃO, GOLÃO. Mas a chance é
perdida, e com ela qualquer perspectiva de reversão de um empate
anunciado.
Antes
do apito final, ainda se permite uma última digressão. Consolidada
a TV aberta e sua cobertura hegemônica no Brasileiro, o rádio ainda
se refugia alguns anos nos Campeonatos Estaduais. Mas o surgimento da
TV fechada e sua principal variante, o pay-per-view, desfere o mortal
e definitivo golpe. Agora, o Flamengo pela televisão deixa de ser um
luxo. Não mais é um programa aguardado por semanas. O jogo do
Flamengo vira um programa esportivo periódico, exibido uma ou duas
vezes por semana. A mais importante das atrações, mas ainda assim
um programa de TV.
O
árbitro se encaminha para o centro do campo e encerra a partida.
Flamengo e Vasco, para surpresa de ninguém, descem ao vestiário sem
propriamente lamentar um 0-0 tão desimportante quanto esperado.
Permite-se
ainda um muxoxo, uma ou outra observação mal-humorada. E desliga a
TV. Pega o celular, cala a janela do rádio. Confere as mensagens.
E
vai cuidar da vida.