“Toda
vez que o Flamengo vence/ Tem sempre um nhem nhem nhem/ O Flamengo
(...)/ Não pode ganhar de ninguém” (Flamengo e Mangueira, Bezerra
da Silva)
Saudações
flamengas a todos,
Domingo
próximo passado, o Flamengo goleou o Corinthians por 3-0, em partida
disputada na Ilha do Urubu, válida pela 36ª Rodada do Campeonato
Brasileiro. As duas equipes atuaram com desfalques. Todos os gols
foram marcados na primeira etapa.
Atuando
de forma concentrada, agressiva e com aplicação tática, o
rubro-negro não teve dificuldades para se impor ao adversário. Após
desperdiçar algumas oportunidades, abriu o marcador com Mancuello.
Manteve o controle da partida e chegou ao segundo gol com Diego, em
cobrança de pênalti sofrido por Geuvânio. Com a vantagem de dois
gols, a equipe recuou um pouco e cedeu campo ao adversário, que
chegou a criar algumas chances em bola parada. Mas, num erro na saída
de bola corintiana, o Flamengo definiu o jogo com Felipe Vizeu. Na
segunda etapa, o Flamengo administrou o resultado, mantendo a partida
sob controle.
Um
fato inusitado se deu ao final da primeira etapa, quando, após Diego
Alves espalmar a mais clara chance de gol do Corinthians até então,
o zagueiro Rodolfo e o atacante Vizeu iniciaram uma áspera discussão
e por pouco não foram às vias de fato. Na sequência, após marcar
o terceiro gol, o jovem centroavante fez um gesto obsceno para o
defensor, o que prolongou a confusão, resolvida no vestiário.
*
* *
A
narrativa acima possui caráter denotativo, buscando descrever de
forma sucinta o que aconteceu na Ilha do Governador na tarde do
último domingo.
No
entanto, quem procurou por detalhes objetivos que tentassem detalhar
a escovada que o Flamengo aplicou no alvinegro paulista provavelmente
encontrou severas dificuldades em seu intento, tal a plêiade de
senões, “veja bem” e adjetivos vociferados por quase toda a
unanimidade da crônica esportiva e mesmo das redes sociais.
Porque,
segundo os relatos dos torcedores de microfone que se dedicaram ao
esforço hercúleo de transformar suas deblaterações em senso
comum, o jogo de domingo foi “atípico”. “Estranho”.
Sigamos.
A
começar pelo fato irretorquível de que o visitante atuou com um
time “misto”. Com efeito, os paulistas não levaram a campo os
dois laterais, dois meias e um meia-atacante. Fato, que não deixou
de ser explorado em notas como “Flamengo bate mistão corintiano”.
O
problema é que o Flamengo também usou um time misto, desfalcado que
estava da dupla de zaga titular, dos dois pontas e do atacante. Cinco
baixas, tal como o adversário.
Donde,
a tese de que o Flamengo derrotou um adversário “enfraquecido” é
fulminada na origem.
A
seguir, adentra-se pela seara da briga entre Rodolfo e Vizeu. Evento
periférico, ocorrido com o placar já encaminhado, que ensejou
pruridos ruborizados de cronistas que dedicaram fartos minutos em
longas arengas sobre o ocorrido, dedos apontados aos atletas,
tratados como párias, inimigos do bom desporto.
O
cinismo dos derrotados.
A
ênfase ao “time misto” ou ao bate-boca escolar teve, tem e ainda
seguirá tendo a única finalidade, o único fito de amaciar, dourar,
encobrir, empanar e, em último caso, embotar a inapelável, a
emblemática, a inescapável surra que o Flamengo aplicou no
Corinthians, menina dos olhos da grande crônica esportiva, muito por
conta de sua localização geográfica, com três gols em 45 minutos,
amassada que provavelmente não ganhou contornos mais amplos por
conta de outras questões (desgaste, jogo decisivo na quinta-feira,
fim de temporada).
Todas
as vezes que o Flamengo extrai um feito digno de nota, que se erige
à altura de sua expressão, que irrompe em aguda demonstração de
força, pipocam vozes e ganidos estridentes que, arrogando-se o
preceito de magistrados dos fatos, perscrutam a mais tépida
evidência de pretensa irregularidade que tenha, em sua visão,
desviado o evento esportivo de seu curso normal, qual seja, o revés
flamengo. Com efeito, um Flamengo derrotado, batido, represado,
combalido, está no lugar natural das coisas. Dos desejos saciados.
Dos ânimos adocicados. No entanto, erga-se um Flamengo pujante, de
clava pesada, predador, pronto a exercer seu papel natural de
protagonista, logo se derramará em nervoso desespero uma jarra de
lamúrias, subterfúgios, quizílias e outras mumunhas
diversionistas. Qualquer um pode ganhar, conquistar, golear, ser
temido, admirado, exaltado, enaltecido.
Menos
o Flamengo.
E
aí sobrevém uma das mais abjetas pragas desses tempos modernos. Que
é até antiga, mas à qual ultimamente se tem recorrido à farta,
qual recurso renovável, inesgotável.
A
relativização.
A
relativização está nas menores coisas. Goleamos o Corinthians, é
porque estavam com reservas (embora também estivéssemos). Goleamos
o San Lorenzo, é porque estavam sem ritmo (embora nenhum outro
argentino tenha sido goleado na mesma rodada). Ganhamos do Cruzeiro,
é porque estavam desinteressados (embora dias antes tenham arrancado
um empate do superestimado Palmeiras).
Ano
passado, vencemos o Fluminense por 2-1 em um jogo-chave para a
disputa do Brasileiro, já em sua reta final. Houve um lance
polêmico, em que o árbitro decidiu voltar atrás após validar um
gol irregular do adversário já nos minutos finais, o que decretaria
o empate, mesmo com o auxiliar tendo anotado, corretamente, o
impedimento do atacante. A atitude do árbitro ensejou vozes furiosas
clamando pela anulação do jogo, arguindo a imoralidade intrínseca
à invalidação de um gol em impedimento. Esse ano, algo parecido
ocorreu na Vila Belmiro, quando o árbitro, numa partida entre Santos
e Flamengo pela Copa do Brasil, voltou atrás numa marcação de um
pênalti inexistente contra o rubro-negro, o que provocou reações
ensandecidas e discursos impolutos clamando pela moral e pela
necessidade de “limpeza” no futebol brasileiro, “esquecendo-se”
de que tal prática, relativamente recorrente, beneficiara o próprio
clube santista poucos dias antes, numa partida contra o Bahia.
O
casuísmo do discurso guardado na gaveta. Usar quando convém.
Não
que sua origem seja recente, repita-se. Afinal, o Flamengo foi
Campeão Mundial porque o Liverpool “jogou com reservas” e seu
goleiro “estava na gaveta”. Ganhou uma Libertadores “sem
argentinos” e por causa “do Wright”. Ganhou 1980 “no apito do
Aragão”, 1982 “na bola de mão do Andrade tirada de dentro do
gol”, 1992 “no suborno de dois botafoguenses”, 2009 “na
entregada de Grêmio e Corinthians”, seu primeiro tri foi “na
falta do Valido”, o segundo tri porque “o Tomires quebrou o
Alarcón”, o terceiro tri “não foi tri, porque 79 foi virada de
mesa”. Sem falar de 1987, do rebaixamento inventado… Ilações
estridentes e risíveis, escancarada e impiedosamente desmentidas
pelos fatos. Mas danem-se os fatos, diria o Velho Nelson. O que
importa não é o que aconteceu. Mas o que se gostaria que tivesse
acontecido.
Entretanto,
o grande, o terrível, o corrosivo problema se dá quando a nossa
gente começa a replicar esse tipo de discurso.
Sabe-se
que o Flamengo vive um grave momento de crise de identidade. Uma
aparentemente insanável incapacidade de gerar um ciclo sustentável
de glórias e vitórias, muito por conta de escolhas equivocadas e da
própria inépcia do clube em entender seu papel institucional diante
de sua torcida. Que os resultados recentes, examinados a cru e a nu,
são banhados de uma inaceitável mediocridade que o submergem a uma
estatura incompatível com a expressão que o clube já deveria estar
exibindo no cenário nacional e, por que não, continental. Que o
rubro-negro recusa-se a queimar navios em busca da irrenunciável
briga por títulos e conquistas. Que reluta em estender as mãos ao
seu torcedor. E isso traz revolta. Inconformismo. Um sentimento
amargo, uma sensação de negação e descrença. Uma profunda
rejeição.
No
entanto, com tudo isso, há que se vestir de cautela antes de
espancar e apedrejar os fatos. A lente do negativismo é tão ou mais
nociva do que a dócil aceitação de tudo o que emana do clube e de
seus paredros.
Donde,
se goleamos, se classificamos, se conseguimos uma vitória
expressiva, que as saudemos. Que as desfrutemos. Que as esfreguemos
nas frontes de quem as mereça. Que nos divirtamos. E que, saciados,
tornemos a nos inserir e a nos posicionar no contexto que nos cerca.
Opinando, elogiando, criticando, defendendo, atacando, pressionando.
Pressionando muito. Fazendo valer a nossa voz. Uma voz que, por
grossa, tem o condão de sacudir, de reverberar, de fazer sair da
letargia os acomodados, os conformados, os que não entenderam a
dimensão de defender as cores do nosso Flamengo.
Mas
que nunca nos esqueçamos. Dirigentes, profissionais, jogadores,
treinadores. Todos esses passam. Dão suas contribuições e são
substituídos. Todos. Mas o Flamengo, a instituição, o clube, o
Flamengo jamais deixará de ser o nosso foco. O centro da nossa
visão. Do nosso ardor. Do nosso amor.
Porque,
independente de nomes, um Flamengo forte e vencedor é o que nos
interessa.
E
apenas a nós.
Boa
semana a todos.