quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Alfarrábios do Melo


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Jantar em um desses restaurantes de “novos chefs” descolados e queridinhos da crítica. O casal recebe seu pedido. O senhor leva o garfo à boca, engole um bocado após certa avaliação sensorial e decide chamar o maître, que se aproxima, cortês e razoavelmente solícito.

- Pois não?

- Gostaria de um pouco mais de sal, por favor. O prato está sem sal.

- Infelizmente, não somos autorizados a promover qualquer alteração nos pratos aqui servidos.

- Oi?

- O senhor está pedindo para alterar o balanço dos sabores do prato. Não tenho autonomia para fazê-lo.

- Mas a comida está sem sal!

- Sinto muito, senhor.

- Muito bem, então quero falar com o chef.

- Perfeitamente, senhor. Vou verificar se ele está disponível.

Seguem-se alguns minutos de espera. Enfim surge o chef, não tão cortês e, definitivamente, sem demonstrar a menor simpatia.

- Pois não, senhor?

- Então, estava falando com o maître. Eu gostaria de um pouco de sal para colocar no prato.

- O maître não o cientificou das diretrizes da casa? Não retificamos os pratos que saem da cozinha.

- Mas a comida está sem sal!

- Isso sou eu que decido. Esse prato, para sair da nossa cozinha, envolveu anos de estudo, para que encontrássemos o perfeito equilíbrio entre as sensações amargas, agridoces e umami. Entendo que, com essas três dimensões em harmonia, é desnecessário acrescentar mais um parâmetro, no caso, o sal. Que iria fulminar com a delicada convivência organoléptica que aqui está exposta.

- Mas eu não vou pagar 300 reais para vir a um restaurante comer uma comida sem sal!

- Bem, provavelmente porque o senhor ainda não está apto a desfrutar de uma experiência verdadeiramente superior. Sugiro que se aprimore, e então reúna condições de ter acesso a uma gastronomia de vanguarda. Aqui praticamos o que há de mais avançado nos centros europeus.

- Pois eu acho que essa sua comida de vanguarda é uma porcaria. Passar bem!

* * *

Nos anos 1980, Mozer, zagueiro egresso das divisões de base do Flamengo, experimentou trajetória meteórica, assumindo a condição de titular de uma equipe repleta de craques, já no seu segundo ano como profissional do clube. E se tornou referência, rapidamente chegando à Seleção Brasileira e construindo sólida e bem sucedida carreira em gramados europeus. Mozer chamava a atenção por sua técnica refinada e, principalmente, por sua entrega em campo, que o fez, por exemplo, disputar os dez minutos finais de uma Final de Taça Rio padecendo de uma lesão muscular, mal andando em campo. Ou de agredir o lateral Márcio Nunes logo após a entrada desclassificante dada pelo jogador nos joelhos do craque Zico. Até hoje Mozer é lembrado com carinho por seu futebol qualificado e por sua postura dentro de campo.

Na manhã de terça-feira, foi publicada uma entrevista de José Carlos Mozer, atual Gerente de Futebol do Flamengo, que teceu considerações sobre sua atuação à frente do cargo e sobre alguns aspectos relacionados à temporada de 2017 do clube.

Foi uma leitura entristecedora.

A começar pela marretada retórica que se concentra na necessidade orgânica de encontrar algum tipo de argumentação que valide a mais medíocre, melancólica, depressiva e frustrante, em termos de reversão de expectativas criadas, temporada flamenga desde 1995.

Tivemos uma recuperação enorme e esse caminho melhorou muito. Alcançamos três finais em 2017: Taça Guanabara, Campeonato Carioca e Copa do Brasil.”

Taça Guanabara. O Flamengo, que dispõe do maior orçamento de sua história, que no papel se arroga a “ambição” de conquistar títulos continentais e mundiais, o Flamengo que, no final de 2012, avalizou uma radical guinada em busca da tão sonhada profissionalização, o Flamengo que se pretende ombrear com as mais fortes equipes sul-americanas, o Flamengo que, em algum momento no passado, prometeu transformar 2017 em um tal “ano mágico”, o Flamengo chega em outubro jactando-se de ter chegado à FINAL da Taça Guanabara.

Veja-se bem, não se trata de apregoar ter vencido a expressiva Taça Guanabara. Mas de ter chegado à sua Final.

O simpático Boavista FC, outrora Barreira de Bacaxá, alcançou a Final da Taça Guanabara de 2011. Um cacho de anos antes, a não menos acolhedora Cabofriense celebrou o mesmo feito. Ambos, infelizmente, não lograram conquistar tão importante troféu. Mas certamente agregaram a seus currículos este rumoroso feito. Final da Taça Guanabara.

Em décadas e décadas de administrações boas, ruins e desastrosas, não me recordo de tão cintilante demonstração de mediocridade e pensamento pequeno emanada de um Profissional a serviço do Clube de Regatas do Flamengo.

É forçoso reconhecer que esse fenômeno, embora perpasse com vigor a figura do Gerente Mozer, está longe, muito longe de ser nele originária. Trata-se de algo muito mais amplo, que escorre pelas artérias da instituição como uma droga a lhe intoxicar o organismo e a alma. Algo relacionado à “cultura organizacional”. Modernidade.

O Flamengo de hoje transmite a percepção de estar impregnado de metas, objetivos, procedimentos, ferramentas, boas práticas, planos de ação, cronogramas, softwares de mapeamento e toda uma tralha instrumental que tem como objetivo fundamentar e avalizar a presença de um sem-número de assessores, auxiliares, especialistas, gestores, analistas de desempenho, estatísticos, dentre a mais variada choldra de aspones e pilotos de planilha. Uma turma que provavelmente trabalha duro e acredita no que faz. Mas que, por formação e índole, crê que indicadores definidos por parâmetros de modelagem matemática são capazes de, por si só, cravar a receita para o sucesso do caríssimo elenco colocado à disposição do clube.

Até aí, nada de mais. O futebol de hoje não mais prescinde desse tipo de tecnocrata.

O problema passa a residir quando aqueles que detêm a caneta se tornam escravos dessa numeralha. Passam a acreditar que um Gabriel, jogador medíocre que detém um estranho prestígio entre a Diretoria, se torna um jogador “útil” por ser capaz de executar, vá lá, dois ou três desarmes por jogo. Que um Márcio Araújo, jogador pavoroso que foi expelido pela torcida dos clubes cuja camisa seu futebol conspurcou, é um atleta de “grande mobilidade”, por ser capaz de correr para tapar os buracos que ele mesmo cria.

São os efeitos colaterais do tal “futebol profissionalizado”.

O Flamengo de hoje é tocado por profissionais remunerados. Salário esse, aliás, composto de parcelas fixas e variáveis. O rendimento variável, provavelmente atrelado a metas e indicadores de desempenho. Performance que, numa instituição esportiva culturalmente saudável, irá definir inclusive a continuidade destes funcionários à frente de suas carteiras.

O Flamengo de Fred Luz, Rodrigo Caetano e agora, por que não, do Gerente Mozer (sem falar, naturalmente, de “consultores” como Fernando Gonçalves, ex-Traffic) coleciona, desde 2015, ou seja, ao cabo de TRÊS temporada, a expressiva marca de um Estadual e um Torneio de Verão em Manaus. Além, naturalmente, de uma Final de Taça Guanabara. Para quem prometeu o mundo, soa escarnecedor.

Escarnece, deprime e ofende porque o clube, na pessoa de seu Presidente Eduardo Bandeira de Mello e de sua base que lhe mantém apoio formal, violenta e estupra as prerrogativas inerentes ao seu papel institucional. Agride a índole do clube. Espanca seus valores. Estapeia o bom senso, ao vender, com fanatismo quase religioso, a percepção de que “está tudo bem”, “o trabalho é excepcional”, e que TODOS, sem o mais remoto traço de exceção, rigorosamente TODOS os profissionais a serviço do futebol do CR Flamengo, fazem parte de uma ilha de excelência e performance, mesmo que os fatos, personificados pelos resultados e por outros indícios ostensivamente constrangedores (como se esquecer da “fratura” do jovem volante Ronaldo?), insistam em esfregar-se-lhes na cara uma mensagem diametralmente oposta.

E aí irrompe o escapismo. A fuga. O diversionismo. Caiu na Primeira Fase da Libertadores? “Mas ano passado não disputamos”. Perdeu a Copa do Brasil por não ter um goleiro decente no elenco? “Mas ano passado perdemos pro Fortaleza”. Está em SÉTIMO lugar no Brasileiro, competição de nível reconhecidamente fraco? “Mas esse ano ganhamos o Estadual”.

O Flamengo, somente se atendo a seu time titular, reúne no mínimo SETE jogadores que ostentam em seu currículo títulos nacionais, continentais ou mundiais. Atletas com vasto currículo e histórico de liderança e postura competitiva. No entanto, é senso comum de que a equipe exibe, em expressiva parcela de seus jogos, uma mentalidade lassa, acomodada, resignada, pouco agressiva, o que é referendado pelo famélico retrospecto contra os adversários mais tradicionais do futebol brasileiro. Estará o problema nos jogadores, especialmente diante da constatação de já ter sido constatado recentemente, com outro plantel e outros atletas?

O Flamengo, enquanto instituição, não questiona. Não coage. Não age. Não espreme. Não exige. Cai no canto da sereia da armadilha do longo prazo. Do “amanhã”. Do “um dia vai acontecer”. E vai mantendo o emprego, provavelmente regado a amigáveis e obesos bônus, de seus profissionais. Os mesmos que vão aos jornais asseverar o sucesso e o êxito de seus trabalhos. E, por extensão, de seus empregos. E que, por uma dessas contradições da vida, pautam seus superiores ao invés de por eles serem inquiridos.

O Flamengo de hoje é pisoteado internamente por seus profissionais incapazes de entregar resultados minimamente dignos. O Flamengo de hoje é açoitado por fortalezas, palestinos, paranás e muralhas. O Flamengo de hoje se mantém com dificuldades numa zona de classificação pra Libertadores que abraça abricós e bambalas. O Flamengo de hoje só ganha dos chapecós da vida. E comemora.

O Flamengo de hoje é escarrado externamente por frangotes torcedores travestidos de jornalistas. Seu torcedor consome pay-per-view para ser exposto a narrações que lhe são francamente antagônicas. O Flamengo de hoje é enxotado de seu estádio e paga pra jogar na casa dos outros. O Flamengo de hoje é assaltado e espoliado dentro dos gramados por arbitragens cretinas e venais. O Flamengo de hoje tem seu jogador mais valioso, o jovem de 17 anos, quase aleijado a pontapés dia sim dia também. O Flamengo de hoje é centro de recuperação para atletas mais preocupados com os interesses de suas seleções nacionais.

Mas o Flamengo de hoje não está nem aí. Defende-se protocolarmente com notinhas anódinas.

O Flamengo de hoje vira as costas para seu torcedor. Seguindo uma filosofia que vem desde 2012, somente se interessa pelo conteúdo da carteira de seus adeptos. Não paga ST, não compra camisa, não serve. O papel do “verdadeiro” torcedor é consumir os produtos do clube e exercer apoio incondicional. Mastigar e engolir com gosto e prazer qualquer porcaria que lhe é colocada à frente. “Vestir a camisa”. Qual funcionário de firma. Desprovido de pensamento ou senso crítico. Torcedor é uma variável incômoda, quase indesejável. É estimulado, por preços extorsivos, a permanecer em sua residência. O Flamengo de hoje prefere se exibir em ambientes gelados e (nem sempre) rentáveis. Afinal, mais vale ter 10 mil pagando 150 do que 30 mil pagando 50. “Curvas inelásticas” de demanda e oferta.

Ocorre que há um “pequeno probleminha”. O Flamengo de hoje provavelmente se esquece de que se está a tratar de futebol. Um jogo, um esporte, em que o “se” não possui assento. Que a diferença entre vencedores e perdedores pode estar no canto para onde o goleiro salta. Que carreiras, trajetórias, vidas, se definem pelo resultado, o juiz maior do esporte de alto rendimento.

E o resultado, amigos, põe e tira canetas de mãos. Transforma legendas, mitos, em párias. Divindades em escória.

E, em algum momento, o torcedor, mas o torcedor espontâneo, o que somente tem compromisso com as cores negra e vermelha, irá se manifestar. De forma caudalosa, enérgica, firme.

E quando isso acontecer, o rei estará nu.


Boa semana a todos.