* * *
Jantar
em um desses restaurantes de “novos chefs” descolados e
queridinhos da crítica. O casal recebe seu pedido. O senhor leva o
garfo à boca, engole um bocado após certa avaliação sensorial e
decide chamar o maître, que se aproxima, cortês e razoavelmente
solícito.
-
Pois não?
-
Gostaria de um pouco mais de sal, por favor. O prato está sem sal.
-
Infelizmente, não somos autorizados a promover qualquer alteração
nos pratos aqui servidos.
-
Oi?
-
O senhor está pedindo para alterar o balanço dos sabores do prato.
Não tenho autonomia para fazê-lo.
-
Mas a comida está sem sal!
-
Sinto muito, senhor.
-
Muito bem, então quero falar com o chef.
-
Perfeitamente, senhor. Vou verificar se ele está disponível.
Seguem-se
alguns minutos de espera. Enfim surge o chef, não tão cortês e,
definitivamente, sem demonstrar a menor simpatia.
-
Pois não, senhor?
-
Então, estava falando com o maître. Eu gostaria de um pouco de sal
para colocar no prato.
-
O maître não o cientificou das diretrizes da casa? Não
retificamos os pratos que saem da cozinha.
-
Mas a comida está sem sal!
-
Isso sou eu que decido. Esse prato, para sair da nossa cozinha,
envolveu anos de estudo, para que encontrássemos o perfeito
equilíbrio entre as sensações amargas, agridoces e umami. Entendo
que, com essas três dimensões em harmonia, é desnecessário
acrescentar mais um parâmetro, no caso, o sal. Que iria fulminar com
a delicada convivência organoléptica que aqui está exposta.
-
Mas eu não vou pagar 300 reais para vir a um restaurante comer uma
comida sem sal!
-
Bem, provavelmente porque o senhor ainda não está apto a desfrutar
de uma experiência verdadeiramente superior. Sugiro que se aprimore,
e então reúna condições de ter acesso a uma gastronomia de
vanguarda. Aqui praticamos o que há de mais avançado nos centros
europeus.
-
Pois eu acho que essa sua comida de vanguarda é uma porcaria. Passar
bem!
*
* *
Nos
anos 1980, Mozer, zagueiro egresso das divisões de base do Flamengo,
experimentou trajetória meteórica, assumindo a condição de
titular de uma equipe repleta de craques, já no seu segundo ano como
profissional do clube. E se tornou referência, rapidamente chegando
à Seleção Brasileira e construindo sólida e bem sucedida carreira
em gramados europeus. Mozer chamava a atenção por sua técnica
refinada e, principalmente, por sua entrega em campo, que o fez, por
exemplo, disputar os dez minutos finais de uma Final de Taça Rio
padecendo de uma lesão muscular, mal andando em campo. Ou de agredir
o lateral Márcio Nunes logo após a entrada desclassificante dada
pelo jogador nos joelhos do craque Zico. Até hoje Mozer é lembrado
com carinho por seu futebol qualificado e por sua postura dentro de
campo.
Na
manhã de terça-feira, foi publicada uma entrevista de José Carlos
Mozer, atual Gerente de Futebol do Flamengo, que teceu considerações
sobre sua atuação à frente do cargo e sobre alguns aspectos
relacionados à temporada de 2017 do clube.
Foi
uma leitura entristecedora.
A
começar pela marretada retórica que se concentra na necessidade
orgânica de encontrar algum tipo de argumentação que valide a mais
medíocre, melancólica, depressiva e frustrante, em termos de
reversão de expectativas criadas, temporada flamenga desde 1995.
“Tivemos
uma recuperação enorme e esse caminho melhorou muito. Alcançamos
três finais em 2017: Taça
Guanabara,
Campeonato Carioca e Copa do Brasil.”
Taça
Guanabara. O Flamengo, que dispõe do maior orçamento de sua
história, que no papel se arroga a “ambição” de conquistar
títulos continentais e mundiais, o Flamengo que, no final de 2012,
avalizou uma radical guinada em busca da tão sonhada
profissionalização, o Flamengo que se pretende ombrear com as mais
fortes equipes sul-americanas, o Flamengo que, em algum momento no
passado, prometeu transformar 2017 em um tal “ano mágico”, o
Flamengo chega em outubro jactando-se de ter chegado à FINAL
da Taça Guanabara.
Veja-se
bem, não se trata de apregoar ter vencido a expressiva Taça
Guanabara. Mas de ter chegado à sua Final.
O
simpático Boavista FC, outrora Barreira de Bacaxá, alcançou a
Final da Taça Guanabara de 2011. Um cacho de anos antes, a não
menos acolhedora Cabofriense celebrou o mesmo feito. Ambos,
infelizmente, não lograram conquistar tão importante troféu. Mas
certamente agregaram a seus currículos este rumoroso feito. Final da
Taça Guanabara.
Em
décadas e décadas de administrações boas, ruins e desastrosas,
não me recordo de tão cintilante demonstração de mediocridade e
pensamento pequeno emanada de um Profissional a serviço do Clube de
Regatas do Flamengo.
É
forçoso reconhecer que esse fenômeno, embora perpasse com vigor a
figura do Gerente Mozer, está longe, muito longe de ser nele
originária. Trata-se de algo muito mais amplo, que escorre pelas
artérias da instituição como uma droga a lhe intoxicar o organismo
e a alma. Algo relacionado à “cultura organizacional”.
Modernidade.
O
Flamengo de hoje transmite a percepção de estar impregnado de
metas, objetivos, procedimentos, ferramentas, boas práticas, planos
de ação, cronogramas, softwares de mapeamento e toda uma tralha
instrumental que tem como objetivo fundamentar e avalizar a presença
de um sem-número de assessores, auxiliares, especialistas, gestores,
analistas de desempenho, estatísticos, dentre a mais variada choldra
de aspones e pilotos de planilha. Uma turma que provavelmente
trabalha duro e acredita no que faz. Mas que, por formação e
índole, crê que indicadores definidos por parâmetros de modelagem
matemática são capazes de, por si só, cravar a receita para o
sucesso do caríssimo elenco colocado à disposição do clube.
Até
aí, nada de mais. O futebol de hoje não mais prescinde desse tipo
de tecnocrata.
O
problema passa a residir quando aqueles que detêm a caneta se tornam
escravos dessa numeralha. Passam a acreditar que um Gabriel, jogador
medíocre que detém um estranho prestígio entre a Diretoria, se
torna um jogador “útil” por ser capaz de executar, vá lá, dois
ou três desarmes por jogo. Que um Márcio Araújo, jogador pavoroso
que foi expelido pela torcida dos clubes cuja camisa seu futebol
conspurcou, é um atleta de “grande mobilidade”, por ser capaz de
correr para tapar os buracos que ele mesmo cria.
São
os efeitos colaterais do tal “futebol profissionalizado”.
O
Flamengo de hoje é tocado por profissionais remunerados. Salário
esse, aliás, composto de parcelas fixas e variáveis. O rendimento
variável, provavelmente atrelado a metas e indicadores de
desempenho. Performance que, numa instituição esportiva
culturalmente saudável, irá definir inclusive a continuidade destes
funcionários à frente de suas carteiras.
O
Flamengo de Fred Luz, Rodrigo Caetano e agora, por que não, do
Gerente Mozer (sem falar, naturalmente, de “consultores” como
Fernando Gonçalves, ex-Traffic) coleciona, desde 2015, ou seja, ao
cabo de TRÊS temporada, a expressiva marca de um Estadual e um
Torneio de Verão em Manaus. Além, naturalmente, de uma Final de
Taça Guanabara. Para quem prometeu o mundo, soa escarnecedor.
Escarnece,
deprime e ofende porque o clube, na pessoa de seu Presidente Eduardo
Bandeira de Mello e de sua base que lhe mantém apoio formal,
violenta e estupra as prerrogativas inerentes ao seu papel
institucional. Agride a índole do clube. Espanca seus valores.
Estapeia o bom senso, ao vender, com fanatismo quase religioso, a
percepção de que “está tudo bem”, “o trabalho é
excepcional”, e que TODOS, sem o mais remoto traço de exceção,
rigorosamente TODOS os profissionais a serviço do futebol do CR
Flamengo, fazem parte de uma ilha de excelência e performance, mesmo
que os fatos, personificados pelos resultados e por outros indícios
ostensivamente constrangedores (como se esquecer da “fratura” do
jovem volante Ronaldo?), insistam em esfregar-se-lhes na cara uma
mensagem diametralmente oposta.
E
aí irrompe o escapismo. A fuga. O diversionismo. Caiu na Primeira
Fase da Libertadores? “Mas ano passado não disputamos”. Perdeu a
Copa do Brasil por não ter um goleiro decente no elenco? “Mas ano
passado perdemos pro Fortaleza”. Está em SÉTIMO lugar no
Brasileiro, competição de nível reconhecidamente fraco? “Mas
esse ano ganhamos o Estadual”.
O
Flamengo, somente se atendo a seu time titular, reúne no mínimo
SETE jogadores que ostentam em seu currículo títulos nacionais,
continentais ou mundiais. Atletas com vasto currículo e histórico
de liderança e postura competitiva. No entanto, é senso comum de
que a equipe exibe, em expressiva parcela de seus jogos, uma
mentalidade lassa, acomodada, resignada, pouco agressiva, o que é
referendado pelo famélico retrospecto contra os adversários mais
tradicionais do futebol brasileiro. Estará o problema nos jogadores,
especialmente diante da constatação de já ter sido constatado
recentemente, com outro plantel e outros atletas?
O
Flamengo, enquanto instituição, não questiona. Não coage. Não
age. Não espreme. Não exige. Cai no canto da sereia da armadilha do
longo prazo. Do “amanhã”. Do “um dia vai acontecer”. E vai
mantendo o emprego, provavelmente regado a amigáveis e obesos bônus,
de seus profissionais. Os mesmos que vão aos jornais asseverar o
sucesso e o êxito de seus trabalhos. E, por extensão, de seus
empregos. E que, por uma dessas contradições da vida, pautam seus
superiores ao invés de por eles serem inquiridos.
O
Flamengo de hoje é pisoteado internamente por seus profissionais
incapazes de entregar resultados minimamente dignos. O Flamengo de
hoje é açoitado por fortalezas, palestinos, paranás e muralhas. O
Flamengo de hoje se mantém com dificuldades numa zona de
classificação pra Libertadores que abraça abricós e bambalas. O
Flamengo de hoje só ganha dos chapecós da vida. E comemora.
O
Flamengo de hoje é escarrado externamente por frangotes torcedores
travestidos de jornalistas. Seu torcedor consome pay-per-view para
ser exposto a narrações que lhe são francamente antagônicas. O
Flamengo de hoje é enxotado de seu estádio e paga pra jogar na casa
dos outros. O Flamengo de hoje é assaltado e espoliado dentro dos
gramados por arbitragens cretinas e venais. O Flamengo de hoje tem
seu jogador mais valioso, o jovem de 17 anos, quase aleijado a
pontapés dia sim dia também. O Flamengo de hoje é centro de
recuperação para atletas mais preocupados com os interesses de suas
seleções nacionais.
Mas
o Flamengo de hoje não está nem aí. Defende-se protocolarmente com
notinhas anódinas.
O
Flamengo de hoje vira as costas para seu torcedor. Seguindo uma
filosofia que vem desde 2012, somente se interessa pelo conteúdo da
carteira de seus adeptos. Não paga ST, não compra camisa, não
serve. O papel do “verdadeiro” torcedor é consumir os produtos
do clube e exercer apoio incondicional. Mastigar e engolir com gosto
e prazer qualquer porcaria que lhe é colocada à frente. “Vestir a
camisa”. Qual funcionário de firma. Desprovido de pensamento ou
senso crítico. Torcedor é uma variável incômoda, quase
indesejável. É estimulado, por preços extorsivos, a permanecer em
sua residência. O Flamengo de hoje prefere se exibir em ambientes
gelados e (nem sempre) rentáveis. Afinal, mais vale ter 10 mil
pagando 150 do que 30 mil pagando 50. “Curvas inelásticas” de
demanda e oferta.
Ocorre
que há um “pequeno probleminha”. O Flamengo de hoje
provavelmente se esquece de que se está a tratar de futebol. Um
jogo, um esporte, em que o “se” não possui assento. Que a
diferença entre vencedores e perdedores pode estar no canto para
onde o goleiro salta. Que carreiras, trajetórias, vidas, se definem
pelo resultado, o juiz maior do esporte de alto rendimento.
E
o resultado, amigos, põe e tira canetas de mãos. Transforma
legendas, mitos, em párias. Divindades em escória.
E,
em algum momento, o torcedor, mas o torcedor espontâneo, o que
somente tem compromisso com as cores negra e vermelha, irá se
manifestar. De forma caudalosa, enérgica, firme.
E
quando isso acontecer, o rei estará nu.
Boa
semana a todos.