A necessidade de agir.
Há
derrotas que funcionam como um divisor de águas, qual medicamento
amargo que terá se mostrado, no futuro, necessário para que se
adotem as medidas outrora proteladas por algum subterfúgio
subjetivo.
Júnior,
com anos e anos de carreira nas costas, agora treinador, sabe como
essas coisas de futebol funcionam. Já percebeu que o arranjo que
concebera para o time não deu nem dará certo. A goleada mostrou
isso de forma devastadora, cristalina. Crua.
E
agora a corda está lhe apertando o pescoço de forma incômoda, mas
reversível. Ainda.
Não
tem sido fácil o início da temporada do “novo Flamengo”, que se
pretende construído sob a égide da austeridade e do “amor à
camisa”. Vivendo grave crise financeira, o clube promoveu um
robusto desmanche em seu elenco. Renato Gaúcho, Casagrande, Edu
Lima, Éder Lopes, Jorge Antônio. E algumas joias da coroa, os
egressos da base de 1990, já prontos para se tornarem realidade:
Júnior Baiano (US$ 400 mil, São Paulo), Piá (US$ 200 mil, Santos)
e Marcelinho (US$ 600 mil, Corinthians). Cinco, seis titulares.
Como
reposição, a ideia original se concentrava no aproveitamento de
jovens da base (Fábio Augusto, Índio, Régis, Hugo, Magno), que se
juntariam na mescla com os remanescentes Gilmar, Nélio, Rogério,
Fabinho, Marcos Adriano e Charles Guerreiro, entre outros. Um plantel
que mostrou suas evidentes limitações já no primeiro jogo da
temporada, uma constrangedora derrota para o Grasshoppers-SUI (0-2)
na reinauguração do Estádio da Gávea, agora ampliado para
comportar 26 mil torcedores. Uma atuação tão indigente que por
pouco não fez Júnior entregar o cargo, irritado com o baixo nível
do elenco posto à sua disposição.
Mas
a Diretoria cedeu e trouxe reforços. Pagou US$ 120 mil pelo
centroavante Charles Baiano, gastou US$ 100 mil (valor estimado) pelo
volante Marco Antonio Boiadeiro, despendeu um valor não divulgado
pelo meia Carlos Alberto Dias e, por fim, abateu US$ 200 mil do valor
a receber do São Paulo e trouxe o atacante Valdeir, o “The Flash”.
Todos por empréstimo de seis meses, salvo Charles, que ficaria até
dezembro.
Mas
os resultados seguiram escassos. Júnior demonstrou dificuldades para
encaixar todos os medalhões na equipe, que em nenhum momento
apresentou equilíbrio defensivo. Vitórias magras e derrotas
acachapantes nos dois clássicos disputados tornaram a situação do
treinador muito delicada. Júnior nunca contou com a simpatia do
Presidente, com quem usualmente colecionou atritos desde os tempos de
jogador. O Flamengo está a dois jogos do fim da Primeira Fase e
ainda não está garantido no Quadrangular Final do Estadual. É
desnecessário desenvolver as consequências desastrosas, do ponto de
vista financeiro, técnico e moral, que uma eliminação traria para
dentro da Gávea. A Diretoria sabe disso e, às vésperas do clássico
contra o Botafogo, manda ultimatos pela imprensa.
“Júnior
tem todo nosso apoio e nossa confiança. Mas a gente sabe como são
as coisas. Não teremos como segurá-lo em caso de nova derrota no
domingo”.
Mas
o Maestro já sabe o que fazer. Já entendeu os motivos da falta de
combatividade e da lentidão da equipe. Com efeito, dos reforços
contratados apenas Charles tem contribuído com gols. Mas o baiano é
lento, não dá dinamismo ao ataque. A visível falta de condições
atléticas de Valdeir e Dias não ajuda a melhorar o quadro.
Boiadeiro, por sua vez, parece estar começando a se encontrar, mas
ainda oscila. Enfim, as contratações ainda não engrenaram.
Júnior
já tem o diagnóstico. Precisa injetar combatividade e velocidade na
equipe. Irá promover algumas alterações. Barrar medalhões. Sabe
que não será fácil. Será ainda mais pressionado, contestado por
tirar do time os caros reforços. Mas a decisão já está tomada.
Esperto, esconderá a escalação e só anunciará as mudanças no
dia do jogo. No entanto, o destino de Dias e Valdeir já está
selado. Irão para a reserva. Mais um volante (Fabinho) irá para o
meio.
A
outra vaga irá para o garoto.
Tratado
como uma verdadeira joia das divisões de base, o garoto é, de
longe, o mais habilidoso jogador revelado desde a já distante
Geração de 1989/1990. Aliás, seu talento chega a ombrear ou mesmo
superar o de alguns expoentes daquela safra. Tratado com cuidado,
atravessou todas as etapas da transição para os profissionais,
sendo eventualmente utilizado em jogos de times “aspirantes”,
concentrando com os titulares, participando do dia-a-dia dos
profissionais. Até receber uma chance num dos últimos jogos da
temporada anterior e incendiar uma partida quase perdida, que por
pouco não resultou numa improvável reação. Já estava pronto para
integrar o plantel.
Nessa
temporada foi usado aos poucos, entrando no decorrer dos jogos. Mas
em praticamente todas as partidas em que entrou, provocou brutal
melhora no desempenho do time, tornando-o insinuante, agudo,
agressivo. Transformando atuações burocráticas em goleadas.
Reveses em reações. Criando uma noção crescente e sólida de
estar “pedindo passagem”.
“Minha
hora chegou. Aliás, demorou. Eu já deveria ter entrado antes”. O garoto
recebe a notícia exalando auto-confiança, quase uma marra
aparentemente incompatível com seu físico franzino e sua cara de
bom moço.
A
postura do jovem soa como um bálsamo para Júnior. O Flamengo
precisa de coragem, atitude, confiança, vontade de reverter o quadro
fortemente negativo em que se encontra. E, mais uma vez, olha pra
dentro de si e se encontra, se reflete, se identifica na mais
improvável das figuras. Aquele garoto magrinho, aloirado, canelas
finas, mas de futebol abusado e irrequieto, quase moleque, dado a
driblar, rabiscar e se enfiar no meio das mais cerradas defesas,
semeando o pânico e o terror entre os adversários.
O
Flamengo empata com o Botafogo (1-1), mas joga melhor e merece a
vitória. Pela primeira vez no ano, termina um clássico dando a
impressão de ter superado seu oponente. As mudanças promovidas por
Júnior melhoram o time, que se torna mais seguro e equilibrado. O
garoto agrada bastante em sua estreia como titular, dando velocidade
à equipe e criando várias chances de gol.
Mas
o empate é insuficiente para amenizar a pressão sobre Júnior. O
Presidente demonstra visível insatisfação pela barração dos
reforços e dá um último aviso ao treinador: “Não vamos
interferir na escalação. Ele é livre para colocar em campo quem
achar que deve. Mas assumirá a responsabilidade por suas escolhas”.
O Flamengo precisa ao menos de um empate na última rodada, contra o
Olaria na perigosa Rua Bariri, para evitar o vexame de uma eliminação
precoce.
Júnior
mantém a escalação e o Flamengo vence (2-1), com atuação
relativamente segura. O garoto novamente tem boa atuação e chega a
acertar a trave do adversário. Aliviado, Júnior avisa: “encontramos
o time, agora é entrosá-lo”.
Dez
dias na Granja Comary. O Flamengo prepara-se para a estreia no
Quadrangular, contra o Fluminense que, pelo retrospecto recente, é
tido como favorito. Realiza um jogo-treino contra o Entrerriense.
Goleia sem dificuldades, 6-0. O garoto participa de quatro gols,
marca um e sai do treino ovacionado. Está voando, parece imparável.
Chegou,
de fato, a sua hora.
* * *
Quarenta
e cinco do segundo tempo. O Flamengo vai vencendo por 2-1 e está
encolhido em seu campo. O Fluminense pressiona, busca
desesperadamente o empate. Súbito, o chutão. A dividida no vazio, a
bola que sobra quicando. O toque em velocidade. A disparada do
garoto, dois zagueiros no encalço, o pique enlouquecido em direção
à glória, ao estrelato, a etérea arrancada que lhe tirará a
condição de pessoa comum. O goleiro à frente, o toquinho desferido
com a frieza somente inerente aos grandes, a bola macia repousando no
canto, a festa eufórica na arquibancada ao lado dos seus. O desfecho
perfeito para uma atuação de gala, coroada com todos os prêmios de
melhor em campo. Não podia ser de outro jeito o primeiro gol do
garoto. Que, a partir dali, deixa de ser apenas um jovem promissor.
Não mais apenas um menino que sonha em vencer no futebol. Não mais
um imberbe sonhador pedindo autógrafos, sorriso amarelo na face. Não
mais um simples qualquer. Não mais mais um. Ali, com seu nome
cintilando no placar eletrônico do Maracanã, o garoto se transmuda
em homem. Mais do que homem, mais do que um mortal, em estrela. Em
ídolo. Em semideus.
Nasce
o Anjo Louro da Gávea.