Vai se aproximando da área. Dois flamengos
aparecem para dar o combate. Sem a perspectiva de encontrar alguém livre para o
passe, o jogador resolve arriscar o chute. O goleiro já antevê o desfecho e se
prepara. Será de longe, em posição frontal, sem zagueiros à frente.
O tiro é até certeiro e com certa força, mas
reto e seco. Nada de curvas, trajetórias sinuosas ou peçonhentas. A bola ganha
altura, mas viaja com insuspeita previsibilidade, pronta para ser interceptada
pelo arqueiro, que se posiciona para fazer a defesa. É uma jogada aparentemente
simples, de grau de dificuldade menor. Um goleiro tranquilo e confiante não
terá o menor problema para resolver o lance.
Mas não é um goleiro tranquilo e confiante que
está defendendo o Flamengo nesta tarde.
* * *
Vem da Serra. E rapidamente impressiona a
Comissão Técnica das Divisões de Base com sua agilidade e envergadura, que o
fazem crescer em monstro sob as traves. Em um ano, ascende à condição de
titular da equipe de juniores do Flamengo. E, fazendo parte de um time
extremamente talentoso, conquista a Copa SP da categoria. Assim como os
companheiros, é tratado como grande promessa, um nome certo para um futuro que
se ensaia descortinar glorioso.
Sabe esperar. Tem a noção de que o tempo de
maturação de um goleiro é diferente. Vê dois profissionais consagrados
disputarem a posição de titular. Busca aprender, absorver diferenças de
estilos, de posturas, de comportamentos. E cresce. É promovido à reserva
imediata do goleiro multicampeão. Esporadicamente, aparece em alguns jogos. E
agrada. Vai se consolidando como alternativa real ao gol do Flamengo, sempre
afagado por elogios genuínos, que refletem a reação ao seu desempenho em campo
e nos treinamentos.
E, enfim surge a prova de fogo. O titular, já
meio desmotivado, começa a falhar. O jovem passa a ouvir vozes crescentes
pedindo seu aproveitamento no gol. E a chance aparece, quando o titular, mesmo
em má fase, é convocado à Seleção que disputará a Copa e se ausenta de alguns
jogos. O goleiro abraça as oportunidades que lhe vão sendo dadas. Como se disso
sua vida dependesse. De certa forma, depende mesmo. Termina a Copa, o goleiro
titular já não quer mais ficar. Lesiona-se gravemente. Ficará meses fora. É a
chance de ouro. Não mais como tapa-buracos, como estepe. Agora o jovem é o
goleiro interino do Flamengo.
Consegue uma sequência de partidas. A péssima
fase da equipe no Brasileiro de certa forma o “ajuda”. É exigido, bombardeado,
acossado. E se sai muito bem. É um dos melhores jogadores da equipe na
competição, um dos poucos a agradar. Conquista a confiança do torcedor que,
mesmo aborrecido com o time, enxerga no goleiro a continuidade em um setor que
tem dado boas respostas há anos. Termina a temporada. O goleiro titular, como
esperado, não aceita renovar o contrato e se transfere para o futebol japonês,
eldorado do momento. Uma nova Diretoria é eleita, realizando uma miríade de
contratações, com o objetivo de montar um grande time que marcará o centenário
do clube. Treinador de ponta, jogadores rodados e de nome, mais alguns bons
coadjuvantes, e ele. Ele. O melhor jogador do mundo. A cereja do bolo de um
elenco inteiramente remontado. Um plantel que tem quase todas as posições
revistas, reavaliadas. Menos a do gol. Que recebe apenas um jogador para a
reserva, contrapeso de outra negociação.
Enfim, o jovem chega ao topo. Agora é o
goleiro titular do Flamengo. O ápice de um sonho.
E o começo de um pesadelo.
A retumbante repercussão que envolve a
contratação do supercraque confere certa aura de anonimato aos demais jogadores
do elenco, o que, num primeiro momento, não chega a ser ruim. A melancólica
impressão deixada pelo Flamengo no ano anterior rapidamente dá lugar a uma
euforia irresistível, que permeia a alma do mais insensível dos rubro-negros.
Após uma pré-temporada ruidosa, rumorosa, midiática, enfim o ano terá início.
Com festa, como pede o momento.
No Estádio Serra Dourada, o Flamengo estreia
sua estrela (e os demais reforços) contra a Seleção do Uruguai (com alguns
jogadores que, meses mais tarde, conquistarão a Copa América). Os jogadores são
recebidos como globetrotters, afogados por um oceano de microfones, câmeras
fotográficas, pedidos de autógrafos, acenos e abraços de uma turba
enlouquecida. Mesmo profissionais experientes se impressionam com o alucinante
alarido. Todo o carinho de Goiânia acabará, para uns, transformando-se em
pressão. Um fardo penoso e duríssimo.
O Flamengo começa bem a partida e logo abre o
placar. Mas a equipe uruguaia, de boa qualidade (apesar dos vários reservas),
pressiona. Manda três bolas na trave. O supercraque, nitidamente fora de forma,
tem atuação discreta. Mas quem chamará a atenção será o goleiro. O novo dono da
Camisa 1 mostra-se, desde o primeiro minuto, estranhamente nervoso, inseguro.
Solta bolas fáceis. Hesita ao sair do gol em cruzamentos. Até faz algumas boas defesas,
mas aparenta não estar à vontade. Os uruguaios arrefecem e o jogo caminha para
o final. Tudo indica que o Flamengo iniciará o ano vencendo. Faltam três
minutos. Lateral para os uruguaios no ataque, a bola é jogada na área e na
sobra uma cabeçada é dada em direção ao gol. Colocada, mas fraca, à
meia-altura. Mas, mesmo baixa, a bola cobre o goleiro, que, numa falha
inacreditável, sofre o gol. É o empate. A ducha de água gelada.
As primeiras críticas aparecem, os jornais
falam em “atuação decepcionante”, mas o goleiro é logo esquecido. As atenções
estão voltadas para a repercussão da opaca atuação da superestrela e do que
aquele novo Flamengo será capaz de proporcionar. A falha do goleiro é
relativizada, foi apenas um jogo e goleiros costumam errar. Pode ter sido
apenas falta de ritmo.
Mas terá sido o primeiro aviso.
No jogo seguinte, a estreia no Estadual,
contra o Volta Redonda no enlameado gramado do Raulino de Oliveira, o goleiro
tem boa atuação. Lidando bem com as imperfeições do terreno, tem noite
tranquila, com intervenções sólidas. Mesmo sem seu principal jogador (guardado
para ganhar preparo e estrear em um momento mais adequado), o Flamengo vence
sem dificuldades, 2-0.
Quinta-feira à tarde. O Estádio da Gávea
recebe 7 mil espectadores, que anseiam por uma goleada do Flamengo sobre o
modesto Madureira. E o andamento da partida de fato sugere um desfecho
convergente à expectativa geral. O Flamengo abre o placar aos 15 minutos e
depois massacra o gol adversário, empilhando chances perdidas. Acerta três
vezes a trave. Desperdiça, no mínimo, seis oportunidades claríssimas, diante
apenas do goleiro adversário. A bola teima em não entrar, o que faz com que a massa
grite pelo nome de seu principal reforço, ainda ausente do campo. E o
desconforto irá explodir em irritação aos 20 da segunda etapa. Num ataque vadio
do Madureira, a bola é jogada na área. O atacante ganha pelo alto e cabeceia,
mas a bola sai fraca. Mesmo assim, o goleiro flamengo pula errado e é
encoberto, num lance muito parecido ao do gol do Uruguai, uma semana antes.
Mais uma falha constrangedora. E, dessa vez, a torcida, enfurecida escolhe seu
alvo. E o goleiro, eleito o vilão do tropeço, é ostensivamente vaiado até o
final do cotejo, que enfim termina mesmo com o incômodo placar de 1-1.
Começa o questionamento público.
Os jornais, ao comentar o empate, já
mencionam, “o Flamengo ontem mostrou vários problemas e limitações. Uma delas
está no gol”. O treinador minimiza, “temos questões mais sérias a serem
trabalhadas”. O próprio goleiro, aparentemente, não parece muito preocupado. “O
cara pulou sozinho e escolheu o canto. Eu não poderia fazer nada. A reação da
torcida foi natural, tinham que escolher um pra bode.”
No jogo seguinte, contra o fraquíssimo time do
Friburguense, uma trégua. Nem mesmo o acanhado Estádio Eduardo Guinle atrapalha
a primeira exibição realmente boa do Flamengo, que não encontra dificuldades
para impor um ruidoso 6-0, na última partida sem a presença da superestrela. Na
quarta seguinte, é a vez do Atlético-MG no Mineirão, um amistoso que marcará a
estreia do goleiro tetracampeão mundial na equipe mineira.
Estádio com 50 mil, TV para todo o Brasil. É o
primeiro teste real para o recém-formado time do Flamengo, pela primeira vez
atuando com força máxima. E mais uma vez o goleiro rubro-negro demonstra não
estar bem. Solta um cruzamento rasteiro e fraco, cuja sobra cai nos pés de um
atacante alvinegro, que abre o placar. O Flamengo empata, mas na saída de bola
o adversário ataca e, num chute rasteiro e defensável, o goleiro novamente
aceita. Além das duas falhas (o Flamengo acabará perdendo o jogo por 3-2, em
mais um jogo apagado do grande reforço), o jovem arqueiro parece desnorteado,
atuando de forma aparvalhada e indecisa, errando o tempo de bola em cruzamentos
e saltando atrasado nos arremates. É uma atuação tão ruim que mesmo o
comentarista da televisão, normalmente comedido, não resiste: “mas esse goleiro
do Flamengo é muito fraco. Não sei qual o problema dele, mas acho que o clube
já poderia pensar em trocá-lo.”
Mas o goleiro não é trocado. Nem mesmo diante
da perspectiva do jogo seguinte. O Fla-Flu.
Os treinos de sexta na Gávea que precedem os
grandes jogos costumam ser rumorosos. A torcida vai em peso para dar força,
moral, apoio aos seus soldados, injetando-lhes confiança para a batalha. Mas,
dessa vez, não se vê nada disso. Os rubro-negros que acompanham o treino
dedicam-se a dois exercícios: aplaudir o supercraque que estreará em jogos
oficiais e, principalmente, hostilizar o goleiro, que é encharcado de vaias a
cada jogada. Pela primeira vez, o arqueiro parece sentir o golpe da rejeição.
Ao final do treino, recolhe-se, sozinho, ao vestiário. Não quer conversa.
Mas o futebol é um esporte fascinante.
Ninguém, absolutamente ninguém, é capaz de
prever o desfecho daquela ofuscante tarde de verão no Maracanã, empanturrado
com 110 mil torcedores dispostos a cantar o amor por suas respectivas equipes e
a esperar por uma grande exibição do futebol campeão do mundo. Mas não se vê
nada disso. O jogo é até animado, mas pobre. Fraco tecnicamente. O estrelado
atacante é anulado por um zagueiro obscuro e botinudo, que ganhará seus minutos
de fama por jornalistas que alardearão o feito. O caro time do Flamengo é
superado pelo adversário, que dispõe das chances mais numerosas e mais claras.
E é aí que se dá a maior surpresa do dia. Pois ele, justamente ele, o goleiro,
o contestado, o massacrado, o execrado goleiro do Flamengo, é o maior
responsável pela manutenção de um outrora impensável 0-0. Faz, no mínimo, seis
defesas de alto nível, algumas delas espetaculares. Sai de campo ovacionado. É
cercado por repórteres e, comovido, dá entrevistas falando em “superação” e
“trabalho”. Pela primeira vez no ano, de fato atua em um nível compatível com o
de sua posição.
É a agridoce ilusão da bonança.
Nas três partidas seguintes, o goleiro é pouco
exigido. Mesmo sem jogar bem, o Flamengo derrota o Americano em Campos (3-0,
partida que assinala o primeiro gol do craque, marcado de pênalti) e, na Gávea,
passa por Campo Grande e Bangu, ambos derrotados por 3-1. O goleiro não tem
culpa nos gols e é poupado das esporádicas vaias de uma torcida algo impaciente
com as eventuais dificuldades enfrentadas pela equipe. Chega ao fim o turno
inicial, e o Flamengo, ao terminar sua chave na primeira colocação, assegura um
dos pontos extras para a Fase Final, a ser disputada lá na frente. O primeiro
objetivo é alcançado.
Um ciclo, mesmo que breve, termina. E com ele
a paz.
O primeiro jogo do returno é na Gávea, numa
escaldante tarde de sexta-feira, nas portas do Carnaval. Embalado pelo samba do
Estácio, que irá festejar o Flamengo na avenida, o rubro-negro recebe o Volta
Redonda. As tardes no pequeno Estádio costumam proporcionar jogos lentos e
preguiçosos, e dessa vez não é diferente. O Flamengo praticamente anda em
campo. Mesmo assim, abre o placar, num gol de cabeça. Logo depois, um escanteio
para o Volta Redonda. Balão na área, cabeçada fraca, no meio do gol. Mesmo
assim, a bola passa sob o goleiro e entra mansa no gol. Uma falha clamorosa,
que decreta o empate. Antes que a torcida transforme o caldeirão em um inferno,
o supercraque aparece. Num tiro de longe, conta com a colaboração do arqueiro
adversário, e o Flamengo faz 2-1. No entanto, ainda na primeira etapa, um
jogador do Volta Redonda avança completamente livre. Entra na área, dribla
facilmente o zagueiro e bate fraco, rasteiro. A bola, defensável, passa por
baixo do corpo do goleiro. É o empate, 2-2. E termina a primeira etapa.
Os times retornam do intervalo. A torcida,
irritada, volta a despejar vaias e xingamentos ao goleiro, que revive os
recentes dias de pesadelo. Apático, o Flamengo não consegue criar. Joga mal,
não se movimenta, esbarra na falta de inspiração. O tempo vai passando, e os cânticos
ofensivos vão atingindo outros alvos. Não há o mais remoto sinal de uma
atmosfera festiva. A tensão é viva, palpável, pode-se tocar. Um jogo que
parecia banal, corriqueiro, caminha para um desfecho inacreditavelmente
indesejado.
Mas irá piorar.
* * *
O chute de longe é alto, seco, sem curvas. O
goleiro, já atormentado pelas outras falhas, ajeita-se para defender. Não pode
errar agora. Não vai errar agora. Não dessa vez. A bola vem à altura de seu
peito. A ideia é escorar, amortecer o tiro para depois agarrar a pelota, em uma
defesa em dois tempos. Mas a escolha se revela desastrosa. Tenso, o goleiro não
consegue escorar o chute. A bola lhe escapa das mãos e vai, dócil, ao encontro
do veterano atacante que, esperto, já está à espera da sobra e, calmamente,
empurra o terceiro gol de sua equipe para as redes. É a terceira falha grotesca
do goleiro na mesma partida. Destruído, o jovem prostra-se ao solo. E, com todo
o mundo comprimindo-lhe as costas, entrega-se. E chora. Chora copiosamente,
abundantemente, largado em abandono. Um transe que somente é rompido pelo
esporro que rebenta grosso, pesado, do banco de reservas: “que m… é essa? Levanta, p…!”
O rubro-negro vai sendo derrotado em casa. A
multidão queima as últimas amarras de moderação e parte para o linchamento
público. “Ei, frangueiro, vai t.n.c.!”, é o coro que rebenta nas orelhas de
jogadores e cronistas, pulsante, pesado, batendo como clava. “Frangueiro,
frangueiro”, é o veredicto, o juízo final, o epitáfio de uma carreira morta
ainda em seu nascedouro. Ali, naquela tarde desastrosa, açoitado pelas vaias,
conspurcado pelas mais verborrágicas ofensas, espancado pelos mais ostensivos
xingamentos, o goleiro está entregue. O Flamengo não perde, o superastro salva
a equipe a poucos minutos do fim, mas aquele empate trará sequelas e escoriações
graves. Efeitos inapeláveis, definitivos, irreversíveis. Cinco longos anos de
trabalho, de preparação física, técnica e mental, escoam-se ao ralo em míseros
27 dias. Dez jogos.
Nunca mais o goleiro entrará em campo como
titular do Flamengo.
Nunca
mais.