O
recado é rápido, assim de orelhada, no meio do treino mesmo. Um assobio agudo,
o rápido desvio pra beira do campo, a letra rápida, sem rodeios.
“Ó, quando acabar aí o homem quer falar
contigo.”
Ainda uniformizado e salpicado de priscos de
grama e terra sobre o suor que lhe unta a pele, o jogador entra na apertada e
quente salinha que funciona como local de reunião, nas franjas do gramado. Acomoda-se
na improvisada cadeira de plástico algo empoeirada. Sorridente, o
Vice-Presidente de Futebol o recebe com uma expressão cordial no rosto. Não
demonstra pressa.
Como vão as coisas, e a família, e depois da
usual introdução que tenta emular um pretenso clima informal, chega-se aos
finalmentes. Sobre a mesa há uma pequena pilha de papeis datilografados, que
evidentemente não repousam ali por acaso.
“Chamei você aqui para começarmos a tratar de
sua renovação. Temos uma proposta a lhe fazer.”
Ainda resta pouco mais de um mês para o
término do contrato. Mas o dirigente já busca antecipar o acerto, uma vez que o
jogador vive um momento de forte ascensão na carreira. Campeão, vitorioso,
convocado para a Seleção Brasileira, um dos principais jogadores do time,
querido pela torcida, é um atleta com potencial chance de assédio por parte de
outros clubes, especialmente do exterior. Ademais, ainda há a competição
internacional por iniciar, que pode valorizá-lo ainda mais. Por conta disso, é
interessante que o Flamengo aja com diligência para não correr o risco de
onerar em excesso sua folha ou, pior, de perder o atleta.
O jogador, por sua vez, não pensa em sair.
Gosta do clube, que reputa como segunda casa, possui ótima relação com os
companheiros e é titular absoluto. Sente-se em um momento de plena realização
profissional, exceto por um detalhe. Sua remuneração ainda está no patamar de
jogadores de início de carreira. Ganha pouco mais que juniores que recentemente
ascenderam, ou mesmo que alguns reservas. Visivelmente seu salário é
incompatível com a posição que ostenta no time e no plantel. Isso o incomoda. A
renovação é a oportunidade de corrigir essa grave distorção. Com isso ajeitado,
não terá mais do que se queixar.
O dirigente, sem remover o sorriso da face, o
apresenta à minuta de contrato. Lá consta a proposta salarial do clube. Um
robusto aumento nos vencimentos, chegando ao patamar das principais estrelas.
Se aceitar, o jogador passará a receber um dos maiores salários do futebol
brasileiro. Enquanto o VP vai expondo alguns detalhes, em sua maioria
cansativos, o jogador mal consegue disfarçar o faiscante brilho no olhar. Com a
face ruborizada, seu corpo pulsa num quase irresistível ímpeto de apanhar a
caneta e acabar logo com aquilo. Por duas vezes quase se trai, mas consegue se
recompor e, após uma leitura dinâmica não muito atenta, expõe sua posição.
“Doutor, os números são muito bons. Eu topo.
Mas preciso falar com meu procurador, que entende mais dessas coisas.”
Despedem-se. O jogador, feliz. O dirigente,
satisfeito com o progresso da conversa.
Dia seguinte. O jogador e seu procurador, que
também é parente, pedem um horário. A expressão na face do atleta é bem menos
luminosa. Quieto, ouve seu representante conversar com o VP. Os termos não
parecem amistosos, embora haja cordialidade. Há certas divergências acerca de
minúcias, como prazo de pagamento das luvas, responsabilidade pelo recolhimento
do Imposto de Renda, entre outras filigranas. Após debates infrutíferos, o
procurador encerra a sessão.
“Infelizmente não podemos aceitar a proposta
nesses termos. Vamos reabrir essa discussão mais à frente, quando o contrato
estiver perto de expirar.”
Algo aborrecido, o VP leva a decisão do
jogador ao Presidente. Que apanha a minuta. E a rasga em pedaços.
O Presidente, homem vivido e manhoso nas artes
de negociar, põe-se a raciocinar. Pensa: “os familiares são mais complicados,
porque têm a idéia pré-concebida de que estamos querendo enganá-los,
explorá-los”. Mas não demora a entender a artimanha do procurador. A ideia é
esperar passar o torneio internacional e, com uma eventual valorização,
negociar em bases mais favoráveis. Não é algo que o surpreenda. Enquanto vai
pensando, serve-se de um bom escocês. “Então ele quer pagar pra ver. Vamos ver
quem vai trucar no fim.”
Passa-se um mês.
Agora se está na semana de encerramento da
validade do contrato. O Flamengo se prepara pro início do Estadual, mas não
sabe se poderá contar com o jogador. E o ritual se repete. O mesmo assobio no
treino, o mesmo recado, o mesmo encontro na saleta, os mesmos papeis sobre a
mesa. Mas dessa vez o VP não parece tão afável.
Sem muita delonga, o dirigente apresenta a
nova e alegada definitiva proposta contratual do Flamengo. Dessa vez, o clube
oferece menos da metade da oferta inicial. Ainda é um salário alto, que o
alçará a uma das principais remunerações do elenco. No entanto, em cotejo com a
oferta anterior, aquilo soa como esmola de pinga. O jogador, olhos úmidos de
revolta, esforça-se para não explodir em impropérios. Colhe a minuta e se
despede. Ironicamente, a posição é semelhante à da reunião anterior.
“Vou levar pro meu procurador analisar”.
A reação do representante é bombástica.
Enfurecido, vai aos jornais e rebenta em frases fortes, com as quais os
setoristas se regalam. “Esse VP é maluco. Essa proposta é uma piada, estão nos
fazendo de palhaços. Com isso aqui não tem conversa, não tem nada.”
O Presidente, sem perder a calma, degusta a
revolta do representante, esparramada nas letras garrafais dos jornais de
grande e não tão grande circulação. O caso agora ganha repercussão. É preciso
dançar essa música. O momento pede firmeza, rigidez. Os setoristas certamente o
procurarão. E seu próximo passo já está calculado.
“Bem, se o procurador nos toma como malucos ou
dados a palhaçadas, significa que não nos leva a sério. Mas o Flamengo é um
clube sério, dirigido por pessoas corretas. Dessa forma, proíbo esse sujeito de
frequentar qualquer dependência do CR Flamengo. E tem outra. Esse jogador não
atua mais aqui. Vou colocá-lo à venda. As negociações estão sumariamente
encerradas.”
No dia seguinte, mais manchetes
espalhafatosas, mais fervura na imprensa. Assustado com a repercussão do caso,
o representante do jogador diz ter sido mal-interpretado, desmente suas
declarações, atribuindo-as a um “entendimento apressado” dos repórteres.
Enquanto isso, o jogador passa a treinar entre os reservas. Resignado, o
treinador começa a montar a equipe sem sua presença.
Sem alterar uma vírgula do seu discurso, o
Presidente segue repetindo a mesma arenga para os setoristas que o procuram.
“Não tem negócio, não joga mais aqui”. Pés à mesa, gravata afrouxada, vai
bebericando seu scotch. “Desmentir a imprensa… Que coisa manjada. Achei que ele
era melhor que isso. Enfim, apostou e se deu mal. Agora eu dou as cartas.”
Com efeito, a aposta do jogador se revelara
arriscada. O título internacional não veio, sua atuação foi, na melhor das
hipóteses, discreta e a tão esperada valorização não chegou nem perto de
acontecer. Assim, a posição de força mostrada há trinta dias esfumou-se em
bruma.
O jogador segue treinando entre os reservas,
às vezes sequer aparece. Agora acena com a posição de aceitar a proposta original,
aquela que recusara trinta dias antes. Mas não cogita sequer discutir qualquer
coisa abaixo disso. O Flamengo estreia no Estadual, vence sem dificuldades, mas
o treinador segue preocupado. O reserva imediato está se recuperando de uma
grave lesão, e o garoto da base içado para fazer a função ainda se mostra
instável e irregular, sem condições de assumir a condição de titular.
Os dias vão se sucedendo e o quadro parece
inalterado. O VP de Futebol, procurado pela imprensa, avisa, “estou pessimista.
Essa negociação parece extremamente complicada, a distância ainda é muito
grande”. No entanto, o jogador, de forma surpreendente, faz um discurso
conciliador, sempre pelos jornais: “eu quero continuar aqui, e acho que esse é
um desejo mútuo”.
O Presidente entende o recado. Começa a
amaciar seu discurso. “Em nenhum momento falei que iremos punir o jogador. Não
temos a menor intenção de fazê-lo, afinal se trata de um profissional correto e
que sempre respeitou e honrou o clube”. E instrui o VP a preparar nova proposta
ao atleta. “Ele está amaciando. Irá roer a corda.”
E os atores seguem exercendo seus papeis no
espetáculo. Incomodado com a indefinição, o treinador põe o jogador para
treinar entre os titulares. A diferença de rendimento é assombrosa. O time voa
em campo, sob os olhares impressionados do numeroso público que acompanha a
atividade. O jogador chega a ter seu nome gritado em campo. Incomodada, a
diretoria lança mão de mais uma carta.
“Toda essa situação é bastante incômoda para a
gente, que já gostaria de poder contar com o jogador em campo, nos ajudando a
ganhar jogos, mas infelizmente parece que essas coisas estão em segundo plano.
Só me preocupo com o torcedor pobre, do povão, aquele que ganha tão pouco, que
se sacrifica pelo time… Ele pode não estar gostando nada dessa briga toda por
um salário milionário...”
Todos fingem se convencer da ensaiada
indignação do VP, que solta esse “desabafo” numa rodinha de jornalistas. Mas o
efeito é certeiro. Nos bares e botecos da cidade, a pecha de “mercenário”,
temor e pavor da esmagadora maioria da boleirada, aos poucos começa a pespegar
na testa do jogador, agora tido como rebelde. Para complicar, começam a pipocar
nos jornais rumores sobre o suposto interesse do Flamengo em um atleta de
primeiro nível, que atua justamente na posição do jogador. Irritado, cansado e
encurralado pelas circunstâncias, o atleta parece sufocado, sem saída.
É o
momento perfeito para o bote.
O eterno ritual se repete pela enésima vez. O
treino, o recado… E lá estão novamente, frente a frente, na mesma saleta,
transpirando um calor infernal, o jogador e o VP, com um chumaço entre eles. A
nova proposta é bem mais amistosa. Um salário algo maior (embora ainda distante
do original), um substancial aumento nas luvas, pagas integralmente à vista, e
a perspectiva de premiações diferenciadas. É uma remuneração que, pingos nos
is, dará ao jogador o status tão almejado, o de profissional de primeira linha
dentro da hierarquia do time. Uma posição, agora sim, compatível com sua
importância no elenco.
O jogador sorri um sorriso sem graça. Concorda
com tudo. Quer ir logo embora. Quer jogar domingo. Está angustiado por não poder
seguir com a equipe, por não poder fazer o que gosta, que é jogar bola, ainda
mais no Flamengo, seu querido Flamengo.
“Olha doutor, eu já não aguento mais esse suplício.
Vou mostrar isso aqui pro meu representante e amanhã a gente assina esse troço”
E se despede. Animado, o VP leva o caso ao
Presidente. “Parece que roeu. Ele vai assinar”. Bem menos otimista, o
Presidente replica: “Vai nada. Ele já pipocou duas vezes. Vai ratear de novo.
Quer um uisquinho?”
No dia seguinte, o jogador sequer troca de
roupa. Vai ao encontro do Vice-Presidente de Futebol e avisa, de forma
lacônica: “Estou aqui para comunicar que não aceito a proposta. Tenha um bom
dia”. E volta pra casa.
O Presidente, ao ser informado, dá um murro na
mesa e simula irritação. Grita, esbraveja. “Está à venda. O primeiro que chegar
aqui com 'x', leva”. O VP especula, “será que já não existe algum clube por
trás disso, Presidente?”, “Não. O problema aí é outro. E eu já sei como
resolver.”
O Flamengo sai do Rio de Janeiro, vai jogar
amistosos. O jogador segue treinando entre os juniores. Como uma caça.
O treinamento segue burocrático, anônimo,
protocolar. O tédio só é quebrado pela presença daquele homem elegantemente vestido
com camisa pólo clara, calça social cáqui, sapato lustrado, que parece
acompanhar a atividade com interesse. Ao perceber a ilustre figura nas
arquibancadas, todos se entreolham. Não é difícil descobrir o motivo. “É,
parece que o Chefe quer falar contigo”. Findo o treino, o Presidente desce ao
gramado e, trajado com seu melhor sorriso, aproxima-se afável, cordial, quase
carinhoso.
“Venha comigo. Vamos bater um papo.”
Agora estão na Sala do Gabinete,
consideravelmente menos improvisada e mais agradável que a saleta do VP. Banho
tomado, o jogador se impressiona com o conforto da poltrona reclinável em que
se instala. O ar suavemente refrigerado acaricia sua mente, embalando-a com o
sofisticado silêncio que parece inebriá-lo em um reconfortante transe de paz.
Tranquilidade. Não se sente assim há meses.
O Presidente o interpela, sorriso ensolarado,
olhos miúdos, faiscantes, a voz macia, paternal. “Poxa, você sabe que é de
casa, o quanto gostamos de você. Veja bem, eu o tenho como um filho. Desde
pequeno, quando você chegou aqui, eu vi que você ia longe, que era melhor que
os outros… Hoje taí, crescendo, na Seleção… Fazendo parte de uma família. Da
nossa família.”
“Poxa Doutor, mas me chamaram de mercenário. O
Senhor sabe que eu não sou mercenário, isso magoa a gente”
“De fato, houve excessos. Em toda briga de
família há excessos, não é verdade? Quem nunca xingou um ente querido num
acesso de raiva? Pessoas falam o que não querem, depois acabam se arrependendo.
Meu VP está arrependido. Eu estou arrependido. Quero passar uma borracha nisso
tudo. Porque gosto de você. Vamos zerar. Você quer continuar conosco?”
“Sim Doutor, é o que eu mais quero”, e soluça
em lágrimas caudais.
É o momento da investida final. O Presidente
se vira para buscar um novo maço de papeis datilografados, contendo a mesma
proposta recusada dias antes. No entanto, ainda inebriado em um transe
catártico e sem a menor disposição para analisar números, cláusulas e afins, o
jogador pede a palavra. Vai sair da caixa. Vai tomar uma das mais
desconcertantes decisões já vivenciadas em um processo dessa natureza. Pede uma
caneta.
“Doutor, não precisa me mostrar nada dessas
coisas aí não. Só preciso de uma folha em branco.”
A luminosa face de imediato subitamente se
congela. Perde a luz. É como se levasse um tiro. Petrificado e lívido, o
Presidente atende ao jogador que, diante de um dirigente estarrecido, assina a
folha em branco e a entrega de volta. Agora aliviado, as costas livres de um
fardo. Enfim, o jogador parece reunir forças para um sorriso genuíno.
“Pronto. Está aí assinado. Pode colocar o que
quiser”.
Pela primeira vez, o Presidente perde o
controle da situação. Não sabe como reagir. Hesita entre abrir um uísque ou
enxotar o jogador a pontapés. Com efeito, desde o início do processo cada
etapa, cada passo, cada ação terá sido minuciosamente planejada. Agora, com o
jogador nas cordas, emocionalmente devastado, pronto para aceitar qualquer
coisa, o dirigente recebe um mortal contragolpe no queixo. Não contava com a
mais prosaica das características humanas, o atributo normalmente esquecido em
uma negociação, ainda mais envolvendo cifras tão altas: A espontaneidade.
Diante de tão escancarada manifestação de desprendimento, o Presidente
simplesmente não sabe o que fazer.
Dura pouco. O Presidente traz de volta a si a
expressão amistosa no rosto e cumprimenta o jogador: “Meus parabéns! Precisamos
celebrar o momento. Estou feliz que continuará conosco”. Avisa aos jornais que
a renovação enfim está consumada. Diante dos repórteres, não deixa o jogador
falar. Capitaliza o momento. Transforma em vitória o inesperado desfecho. “O
jogador demonstrou seu amor ao clube. Confiou na gente. Assinou em branco,
porque sabe que somos homens de palavra. Agora, é seguir o trabalho, temos
certeza que logo ele estará de volta aos gramados para nos dar mais alegrias”.
Meio
sem jeito, o jogador corrobora, “é, é isso aí mesmo, agora só penso em voltar
ao time”. Sente-se vazio. E feliz. Toda sua existência, todo o seu pensamento,
todas as suas emoções, passam a se resumir agora a apenas um objetivo, uma
meta, um alvo.
Jogar domingo.