Está
quente.
Quente
e abafado. A iluminação tímida e tremeluzente reflete vacilante
nos úmidos azulejos das paredes do confinado salão, envolvendo-o em
uma penumbra que poderá inquietar os mais claustrofóbicos. O ruído
é distante mas audível, um chiado de cantos e gritos de ordem que
parece crescer junto com a nervosa expectativa, num processo
inexorável e irreprimível somente interrompido pelo eventual
pipocar das bombas que rebentam ensurdecedoras. E há o ar. O ar
encharcado de uma neblina mentolada, que empesteia a tudo e todos de
um enjoativo odor de linimentos e pomadas a cânfora.
Mas
ninguém liga.
Todos
ali reunidos, jogadores, comissão técnica e dirigentes, estão
abraçados em círculo. Dentro de instantes, o time do Flamengo sairá
do vestiário em direção às escadarias emborrachadas que o
conduzirão ao campo de jogo e de batalha.
É
dia de jogo importante. Jogo decisivo. Jogo grande.
Ninguém
sorri. Ninguém brinca. Ninguém se permite desviar um átimo do
protocolo que define desde tempos imemoriais a liturgia de preparação
para o primeiro grande momento do dia, a hora em que jogadores e
torcida se reencontrarão e se abraçarão, irmanados no único grito
capaz de fazer tremer o colossal templo de concreto, ora apinhado
daquela gente irmanada na fé. Daqui a pouco, os jogadores serão
acolhidos ao tonitroante grito de “MEEENGOOOO”. Terão a certeza
que não estarão sozinhos. Nunca estão.
Mas
agora é a hora da preleção. O treinador, o capitão, os líderes
começam a falar. Ninguém se atreve a sequer piscar. Todos, sem
exceção, absorvem tudo o que é dito, gritado, pregado em voz
assertiva, que ali, mais do que nunca, torna-se a mais absoluta das
verdades. Dogma.
“Eles
nos tripudiam. Chamam-nos de favelados. De macacos. De fregueses.
Cantam vitória anunciada. Pisoteiam na nossa gente. Apedrejam nosso
escudo. Querem nos intimidar. Mas aqui, essa p… aqui, é Flamengo.
E ninguém pisa no Flamengo. Ninguém desfaz do Flamengo. Ninguém ri
da gente. Porque ali fora, a partir de agora, a gente vai dar a
resposta. Ficamos quietos. Escutamos. Deixamos falar. Deixamos fazer.
Pensam que nos acovardaram. Mas não nos esquecemos de nada.
Guardamos tudo. E cada xingamento, cada ofensa, cada desrespeito,
vamos devolver da forma que nós sabemos. Da forma que os grandes
fazem. Na bola. No campo. Na batalha.”
“Eles
são bons. Mas nós somos melhores. Os bons morrem lutando. Não
temos o direito de morrer lutando. Não temos o direito de morrer.
Porque não nascemos para morrer. Nosso compromisso é com a vitória.
Tá no nosso hino. Vencer, vencer, vencer. Nós vamos lá fora agora
e só voltaremos de lá com a vitória. Com o inimigo morto. Deitado.
Lá dentro, toda bola é nossa, toda dividida é nossa, o maior grito
é nosso, a iniciativa é nossa, o controle é nosso, as armas são
nossas. Vamos acuá-los, encurralá-los, empurrá-los, esmagá-los.
Vamos tornar aquilo um inferno pra eles. Eles vão pedir pra parar.
Eles vão arregar. Eles vão pipocar. Porque nós, em nenhum momento,
vamos fraquejar. Porque somos fortes. Somos grandes. Somos maiores.
Somos Flamengo.”
“Nossa
torcida está lá fora. Lotaram o estádio. Confiam na gente. Quem é
Flamengo sempre confia. Sempre acredita. Porque sabe que aqui só se
conhece a luta. A vontade. A força da camisa. Nossa torcida vai nos
dar as mãos. Vamos dar as mãos a eles. Vamos jogar juntos. Eles
estão aqui, estão na rua, no radinho, na TV, fazendo força pra
gente. Rezando pela gente. E agora está na nossa mão fazê-los
felizes. Orgulhosos. Então, vamos subir AGORA e vamos dar ao nosso
torcedor o que ele merece. O que ele pede. O que ele sonha. Vamos
fazer nossa torcida feliz. Vamos ser felizes. JÁ.”
A
corrente está no fim. Olhos esbugalhados, saliva balbuciando
pendente do canto da boca, veias saltadas. Alguns com a pele
arrepiada. Estão todos agora unidos em um fervor religioso, soldados
prontos para a batalha. Um deles, normalmente quieto, usualmente
soturno, de poucas palavras, irá fazer a manifestação final. O
grito de guerra. O clamor que está preso na garganta de milhares, de
milhões. E o berro vem das entranhas, selvagem, animalesco, um urro
gutural que rebenta em cheio no mais profundo de cada alma daquele
vestiário. O brado libertador, que rapidamente é seguido em coro. O
lema que permeará as próximas duas horas.
“VTNC,
BOTAFOGO!”
E
vão para o túnel.