O ÚLTIMO GRINGO
E Coutinho se foi.
Um estranho e mal
explicado vazamento de uma suposta lista de dispensas sela o destino e finaliza
o trabalho de um dos mais relevantes treinadores da história do CR Flamengo.
Uma passagem de quatro anos (intercalada por licenças para treinar a Seleção),
que resultou na montagem do time Tricampeão Estadual e Campeão Brasileiro. Mas
que sucumbiu ao desgaste do tempo.
Substituir Coutinho
é o primeiro desafio da nova Diretoria, eleita para assumir o clube no próximo
biênio. Ainda tomando pé das coisas do clube (tarefa facilitada pela
continuidade proporcionada pela manutenção do mesmo grupo político no comando),
opta-se pela efetivação de um velho conhecido. O paraguaio Modesto Bría.
1 – QUEM É
Pode-se dizer que
Bría é um estrangeiro “da casa”. Brilhante centro-médio (volante) da equipe
tricampeã em 42-43-44, jamais se desvinculou do Flamengo após pendurar as
chuteiras, sendo utilizado na Comissão Técnica dos profissionais ou das
Divisões de Base, onde se radicou. Com esse perfil, tornou-se a indicação
natural para assumir o comando técnico da equipe em momentos de hiato. Foi
treinador, efetivo ou interino, do rubro-negro em 1959/60, 1967 e 1971. Assim,
surge como a perfeita “solução-tampão” para a função, enquanto o clube define
suas diretrizes.
Modesto Bría assina
por quatro meses, até 30 de abril. A idéia é mantê-lo no comando da equipe
durante toda a disputa do Campeonato Brasileiro, cujo objetivo, naturalmente, é
a conquista do Bicampeonato. Caso desenvolva um bom trabalho, a Diretoria acena
com a possibilidade de extensão do vínculo, aí já tendo em vista os desafios do
Segundo Semestre, no caso a Libertadores e o Estadual.
3 – ELENCO À
DISPOSIÇÃO
Bría dispõe
basicamente do mesmo plantel que terminou a temporada anterior. O ponta de
lança Lico, pouco aproveitado por Coutinho, é emprestado ao Joinville e
retornará apenas em junho. Para seu lugar o Flamengo traz Peu, revelação do CSA
de Alagoas, que já chega com a responsabilidade de emular a trajetória de um
antigo ídolo, Dida. Peu vem por empréstimo de um ano.
No entanto, o
rubro-negro terá três importantes baixas nas duas fases iniciais da competição.
Os três principais jogadores da equipe, Zico, Júnior e Tita, estão servindo à
Seleção, envolvida com a preparação e disputa das Eliminatórias para a Copa.
Sem suas estrelas, o Flamengo pensa em aproveitar a Primeira Fase (em que os
jogos são mais fáceis) para dar mais jogo a alguns jovens da base, como os
volantes Vítor e Lino, o ponta-esquerda Edson e os centroavantes Anselmo e
Ronaldo.
Mas há jogadores de
saída, ou quase. Enfrentando severas dificuldades para manter os salários em
dia, a Diretoria vê com bons olhos a venda de algum jogador. O primeiro a ser
assediado é Adílio, que interessa ao Los Angeles Aztecs-EUA (novo clube de
Coutinho, que o indica). O negócio quase sai (Adílio chega a se declarar
“sentindo-se nos States”), mas uma divergência quanto ao pagamento das luvas
aborta a transação. O zagueiro Marinho também é tentado pelo clube americano,
também balança com a proposta, mas recusa sair do Flamengo por um motivo
aparentemente prosaico: sua esposa não quer deixar o país. Por fim, o
ponta-esquerda Júlio César, o “Uri Geller”, que inicia o ano fazendo bons
jogos, é procurado pelo Talleres-ARG. Dessa vez o negócio acontece, e o
irrequieto atacante encerra sua passagem pelo Flamengo, para alívio de uma
Diretoria preocupada com as contas do clube.
Outro desafio de
Bría é recuperar alguns jogadores de bom nível que encerraram 1980 em péssima
fase, chegando inclusive a serem barrados por Coutinho. É o caso de Carpegiani,
Rondinelli, Nunes e Fumanchu. E Luís Pereira. Mas, irritado por ver o
experiente zagueiro se reapresentar oito quilos acima do peso, avisa à
Diretoria: “Esse podem vender. Não conto com ele”. Mas o zagueiro é mantido no
elenco. E, em princípio, segue na reserva.
4 – CARACTERÍSTICAS
E PERFIL
De semblante sério
mas de bom diálogo, Bría segue a linha “boleira” e intuitiva. Não costuma
inventar muito nas escalações, embora às vezes opte por algumas improvisações
extravagantes. Precisa que os jogadores “corram pra ele”, para que seus
esquemas, normalmente pouco sofisticados, funcionem. Um ponto fraco de sua
linha de trabalho é a disciplina, o que o faz ter dificuldades com jogadores
rebeldes.
5 – NÍVEL DE INFORMAÇÃO
E ATUALIZAÇÃO
Bría acredita que,
tendo sua equipe adestrada a executar o que foi treinado, a imposição pela
capacidade técnica se dará naturalmente. Gosta de fazer o time entrar mais
cauteloso no início das partidas, para “estudar o adversário”, soltando-o
depois de uns vinte ou trinta minutos, agora mais ambientado com a movimentação
da outra equipe.
É adepto da tese, “os outros que devem se preocupar com o
Flamengo”, o que gera situações inusitadas e mesmo pitorescas. Antes da
estréia no Brasileiro, contra o Santos no Maracanã, é perguntado sobre o
adversário: “Dizem que está em um mau
momento. Tomara que seja verdade”. Em Manaus, antes de uma partida contra o
Nacional local, exibe desconcertante sinceridade, “Eles ganharam do Cruzeiro, não é? Então devem ter um bom time”.
Antes do encontro com o Itabaiana, em Aracaju, crava: “Não sei nada sobre o time deles. Mas não estou preocupado. Meu amigo
Dequinha é de lá, quando chegar a Sergipe eu vou pegar informações com ele”.
Por fim, sobre o Uberaba, já na Segunda Fase, disserta: “Disseram-me que o zagueiro, o meia e o centroavante deles são bons, de
certa categoria. Vamos ver isso na hora”.
6 – OS PROBLEMAS
A passagem de Bría
é conturbada, marcada por diversos problemas na gestão do elenco. O primeiro
deles estoura na zaga. Bría, como já indicara, inicia o Brasileiro com
Rondinelli e Marinho formando a dupla titular. No entanto, o Deus da Raça é
expulso em um jogo em Belém. Com isso, Bría pretende utilizar Luís Pereira no
compromisso seguinte, contra o Sampaio Correa, no Maracanã. Luís Pereira, que
já vinha reclamando nos jornais (“Sou um
zagueiro consagrado, de Seleção. Não vou aceitar ficar na reserva, não condiz
com um profissional da minha categoria”), aproveita para capitalizar o
momento. “Veja bem, eu preciso ver com o
Professor essa situação. Porque tenho outras propostas, estou inclusive
negociando com uma equipe grande. Se entrar em campo e assinar a súmula, não
poderei mais me transferir. Mas ficar aqui como reserva, como tapa-buraco, também
não vai ser. O clube também precisa ver o meu lado. A coisa precisa ficar
ajeitada para todos.” Sabe-se lá o que é resolvido, mas Luís Pereira entra
em campo. E não perde mais a vaga até o fim do Brasileiro.
O outro zagueiro,
Marinho, também resmunga. Liberado de uma partida para resolver sua situação
com o Los Angeles Aztecs, é reintegrado após o fracasso das negociações. Mas
volta atirando: “Saí daqui como titular,
quero voltar como titular. Não vou aceitar perder a posição no grito”. Para
“sorte” de Bría, Rondinelli se lesiona e fica de fora por algumas rodadas. E,
experiente e sabedor das coisas flamengas, volta quieto, sem reclamar da
momentânea reserva (vai recuperar a posição poucos meses mais tarde).
Resolvido o
problema da zaga, estoura outra crise. Após a magra vitória contra o Sampaio
Correa (2-0), em que o time joga muito mal, Nunes, que desperdiça uma carreta
de gols, é ostensivamente vaiado. Irritado, explode em uma entrevista
bombástica a uma revista. Dizendo-se perseguido, avisa que quer sair do
Flamengo, ser negociado. “Há uma panela
aqui dentro me boicotando”, “os jogadores 'da casa' não me suportam”, “eles me
jogam contra a torcida”, entre outras declarações fortes. “Isso é paranoia dele. Está nervoso com as
vaias”, contemporizam alguns líderes do elenco. A revolta de Nunes é
recebida com naturalidade pela Diretoria, que já tem o diagnóstico: “quando ele voltar a fazer gols, isso
passa”. De qualquer forma, o ambiente segue longe de apresentar leveza.
O caso de Nunes é
resolvido com surpreendente rapidez e de uma forma inesperada. Em uma inusitada
goleada de 8-0 contra o Fortaleza, no Maracanã, partida em que os cearenses
enfrentam o Flamengo com uma postura inacreditavelmente aberta e ousada. Nunes
marca cinco tentos e enfim encontra sua paz, como previra o dirigente.
Há outros casos
menores. Adílio falta a um treinamento, não avisa e, localizado, informa estar
com um problema de saúde na família. Bría minimiza a situação. Tita, ao
retornar da Seleção, decide não aceitar mais jogar como falso ponta, fazendo
questão de retornar à sua posição original, a de ponta de lança, mesmo que isso
signifique se tornar reserva de Zico. Mas, como “gesto de boa vontade”, admite
seguir fazendo a função até o final do Brasileiro.
7 – DESEMPENHO E
RESULTADOS
O Flamengo de
Modesto Bría apresenta notável irregularidade, e em nenhum momento sinaliza que
irá de fato engrenar. A equipe se caracteriza por momentos de apatia e falta de
imaginação. Os pontas, muitas vezes improvisados, afunilam em excesso, travando
a movimentação ofensiva. O sistema defensivo, por outro lado, sofre com
problemas de cobertura e proteção à zaga, que é lenta, e a equipe tende a
sofrer muitos gols. No decorrer da competição, Peu é efetivado, o que lubrifica
a armação e a criação de jogadas (o jogador, em ótima fase, dá velocidade e contundência
ao ataque), mas agrava os problemas na defesa, pois o meia-atacante não se
notabiliza pela disciplina tática.
Após uma vitória contra os reservas do São Paulo por 2-0, em um amistoso no Morumbi, o Brasileiro. A Primeira Fase é
cumprida sem brilho. Na estréia o Flamengo se arrasta sob um domingo de verão
no Maracanã e empata um preguiçoso 0-0 com o Santos. A seguir, vence a duras
penas o Nacional em Manaus (1-0), jogo que Bría invade o campo para abraçar os
jogadores após o triunfo. Logo depois, o primeiro vexame. O rubro-negro, lento
e apático, é atropelado pelo Paysandu em Belém, não resistindo à alucinante
correria do adversário. A derrota por 3-0 sai barata, graças à atuação
exuberante de Raul. “Foi um acidente, coisas do futebol”, limita-se a comentar
um resignado Júlio César, vivendo seus últimos dias no clube. Logo depois, o
Flamengo derrota por 2-0 o Sampaio Correa no Maracanã, em mais uma fraca
atuação. Os primeiros traços de bom futebol aparecem em Aracaju, quando o
Flamengo, movido pelo entrosamento entre Peu e Nunes, faz convincentes 2-0
sobre o Itabaiana. Os estrondosos 8-0 sobre o Fortaleza no Maracanã trazem a
ilusão de que o rubro-negro enfim irá deslanchar. Mas um opaco 0-0 contra o
Cruzeiro no Mineirão e os sofridos 3-2 sobre o CRB em Maceió (em que novamente
Peu, com um gol de placa, e Nunes são os destaques) devolvem o time à
realidade. A participação na Primeira Fase é encerrada com um silencioso 2-2
contra o Santa Cruz, no Maracanã, em que o Flamengo cede o empate nos minutos
finais com um bizarro gol contra de Adílio (foi cortar um cruzamento rasteiro e
acabou colocando com “classe” no contrapé de Raul), O Flamengo termina a Fase
em segundo lugar no seu grupo, atrás do Santos.
Antes da fase
seguinte, o Flamengo viaja ao Uruguai, onde disputa um torneio caça-níqueis.
Alinha um punhado de juniores e reservas contra o Peñarol, que vem com vários
titulares. De forma surpreendente, o time passa por cima dos uruguaios, naquela
que talvez é a melhor exibição sob o comando de Bría. Abre 3-0 e, conforme
esperado, o jogo descamba para a pancadaria, com vários expulsos. A decisão do
torneio, no dia seguinte, contra o Grêmio, é adiada devido ao mau tempo. Mas a atuação
contra o Peñarol traz, enfim, ânimo e confiança ao grupo.
8 – A SEGUNDA FASE
E O EPÍLOGO
“Não dá mais, Doutor. Preciso ir embora. Estoy
muriendo”
Sete quilos mais
magro, abatido e tragado pela insônia e movido à base de tranqüilizantes,
Modesto Bría, pela segunda vez, apresenta seu pedido de demissão ao Presidente.
Na ocasião anterior, logo após o fiasco de Belém, o dirigente minimizara, por
ser início de trabalho: “Tire um dia de folga, vá descansar e volte
revigorado”. Mas dessa vez o Presidente parece disposto a aceitar o pedido. Com
efeito, o Flamengo simplesmente não parece sair do lugar. E, pior, acaba de
protagonizar mais um vexame, ao ser goleado em Curitiba pelo Colorado-PR (0-4).
O rubro-negro, que não sofria um placar elástico há mais de um ano, já sofre a
segunda goleada em apenas três meses de trabalho. É algo inaceitável, que precisa
ser estancado.
E dessa vez Bría,
desnorteado, abusou do direito de errar. Improvisou o lento Rondinelli na
lateral-direita. Barrou Peu, justamente o melhor jogador do Flamengo no
campeonato. E, para completar, promoveu o retorno de Carpegiani, gordo e completamente
fora de forma, à equipe. Como o que inicia errado normalmente se agrava,
Rondinelli ainda saiu lesionado durante o jogo, o que fez Bría recorrer a nova
improvisação, dessa vez com o novato Mozer. Completamente desfigurado, o time
foi presa fácil para os paranaenses. Massacrado pelas críticas, Bría resolve
dar um ponto final à sua participação como treinador.
Acertam que Bría
seguirá no comando até que o clube encontre um substituto. E o caso não vaza à
imprensa. Dias depois, o Flamengo anuncia a contratação de Dino Sani, renomado
treinador que vem de vitoriosos trabalhos no Uruguai e no México, e acaba de se
desvincular de seu clube, o Puebla-MEX. Dino é apresentado e iniciará seus
trabalhos na Terceira Fase. Antes disso, Bría precisa classificar o Flamengo em
uma chave que, com a goleada em Curitiba, ameaça se complicar.
O Flamengo já havia
vencido o Atlético-MG no Maracanã (2-1, em outra rara boa atuação) e empatado,
fora de casa, com o Uberaba-MG (1-1, com um controverso gol de Nunes). Após o desastre
contra o Colorado, um festejado empate com o Atlético no Mineirão (0-0), já com
os jogadores da Seleção de volta. Para depender de si, o rubro-negro precisa
vencer as duas partidas que restam no Maracanã, contra Uberaba e Colorado.
Parece simples.
Mas os dois jogos
se revelam dramáticos. O Flamengo não vê a cor da bola no primeiro tempo contra
o Uberaba e desce pro vestiário com um humilhante 0-2 luzindo no placar. Todos
os onze jogadores, sem exceção (Zico inclusive), são vaiados. O time volta mordido,
voando, clamando por sangue e, em apenas 25 minutos, já está vencendo por 4-2,
placar que se mantém até o final. Agora é vencer o Colorado e ratificar a vaga.
Mas o Flamengo é
atrapalhado por um infantil desejo de vingar a goleada no Paraná. Nervosos, os
jogadores perdem oportunidades fáceis e caem na armadilha do matreiro time
paranaense, repleto de jogadores rodados e manhosos. Num contragolpe no final
da Primeira Etapa, o Colorado abre o placar. Tranca-se num ferrolho. A
classificação está ameaçada. O time precisa ao menos empatar. Mas o goleiro
Joel Mendes começa a defender sistematicamente tudo. O relógio vai correndo,
célere, até que, a pouco menos de 15 minutos do fim, Zico, em duas jogadas
relâmpago e assustadoramente semelhantes, vira o jogo a 2-1, para alívio da
torcida.
Após o apito final,
o torcedor, talvez querendo demonstrar um reconhecimento ou mesmo revelar-se
cruel em sua ironia, grita entusiasticamente o nome de Bría, que ali se
despede. Emocionado, o treinador acena em retribuição. Vai voltar às Divisões
de Base, seguir seu emprego fixo no clube, onde permanecerá até se aposentar.
Sua passagem terá sido errática, plena de intempéries, infestada de obstáculos,
muitos dos quais custaram sua integridade física, mas, ao frigir dos ovos, o
paraguaio entrega ao seu sucessor um Flamengo classificado e em primeiro lugar.
Cumpre sua obrigação.
Ao paraguaio e, por
que não, ao torcedor, é o que, no fim, interessa.