É
tarde.
A
luminosidade tépida que já sussurra sair de cena, a tênue brisa
que se esgueira em carícias, o reconfortante aroma terroso e herbal
de grama e mato que contorna as narinas, o aconchegante silêncio
apenas entrecortado pelo sibilante chilrear das pequenas aves que,
vez ou outra, rompem entre as abundantes árvores que contornam o
gramado, tudo parece convidar ao descanso, ao repouso. Ou à
melancólica reflexão.
No
entanto, todo esse cenário árcade contrasta com uma desajeitada
sinfonia de apitos, gritos, palavrões, rugidos e o surdo e seco
espocar de bolas que infestam o campo de visão, rodopiando daqui pra
lá, espancadas, pisoteadas, chutadas e estapeadas nervosamente por
profissionais em atividade.
É
dia de trabalho.
Agora
há dois grupos em disputa. A esfera está com o time de colete, que
vai rodando o jogo, de acordo com as orientações do professor, que,
à guisa de maestro, boné e apito à boca, vai cantando os
movimentos de seus comandados, buscando conferir alguma ordem àquela
frenética e aparente descoordenada correria. Eis que uma bola é
esticada à lateral do campo. O passe não é muito preciso, mas
encontra um jogador livre. Um pique, e pronto. Mas o rapaz trota,
ensaia arrancar, estaca e enfim desiste do lance. E a bola, matreira
e sorridente, sai pela linha lateral, expressão de escárnio.
São
os sinais.
O
professor limita-se a um esporro protocolar, sem carregar nas tintas.
Vivido, sabe que não tardará o dia da despedida. O dia do adeus. Na
verdade, um “até breve”, conhecedor das coisas da bola nativa.
Tem a perfeita noção de que, meses antes, o lateral arrancaria para
alcançar bolas ainda piores, como se sua existência disso
dependesse. Faz parte do protocolo. Da liturgia. Da vida.
Sabe
o professor que o momento da chegada é o mais importante. É o que
definirá o tempo de duração no cargo. É a hora de criar a empatia
imediata, mostrar-se carismático, trazer para seu lado um grupo de
jovens sonhadores mas não muito dados à disciplina ou a essas
coisas enfadonhas de movimentos de cobertura, deslocamentos,
infiltrações e outras complicações a que são obrigados sem a
bola. De tudo isso o professor tem noção. A percepção de que
precisa conquistar os “cabeças”, as referências do plantel,
transformá-los em “auxiliares” informais, que saberão facilitar
seu trabalho em troca de certas regalias na forma de funções
táticas menos áridas e prioridades na escalação, entrevistas,
reportagens. Em contextos mais árduos, nos elencos mais difíceis,
mesmo a necessidade de segregar elementos refratários, se for o
caso. Tendo êxito nessa etapa, o professor terá feito os jogadores
“correrem” por ele. E tudo se tornará mais simples.
A
fase seguinte será a transmissão de suas ideias. Manhoso, o
professor não exige muito de seus comandados nesse aspecto. Com
efeito, um grupo disciplinado e disposto à entrega em campo não
precisa de muita “ciência” na cabeça. A defesa, ou o sistema
defensivo como um todo, precisa de posicionamento adequado,
adestramento dos movimentos de cobertura e insistente treinamento nas
bolas paradas. Jogadores motivados se procuram e se encontram em
campo. Eis o que os “modernos” chamam de compactação,
aglutinação ou outras palavras bonitas pra vender jornal. O velho
professor, nos seus tempos de jogador, praticava compactação desde
o dente de leite. E agora se descobriu ser “coisa nova”.
Enfim,
organizada a defesa, o professor se dedica à forma de jogo. E aí
vai dos ingredientes. E do “pacto” com as lideranças. Se o time
é jovem, leve e veloz, faz jogo de correria, vertical. Se tem mais
idade e é mais técnico, trabalha posse de bola e marcação por
pressão. Se é tecnicamente tosco, insiste em jogadas ensaiadas e
muita bola alta na área. Tudo isso precisa dar liga em dois, três
treinamentos. Porque no seu primeiro jogo é imperativa a vitória.
De preferência jogando bem. Uma boa vitória na estreia conquista de
vez o time. O elenco. O clube. A torcida.
“Chegar
chegando. Nunca falha.”
Imerso
nesses pensamentos, o professor termina mais um treinamento
burocrático. Vai caminhando para a coletiva de pré-jogo. As dóceis
perguntas dos jornalistas não o preocupam. Setoristas costumam
manter um certo acordo tácito. “Não aperto, trabalho em paz”.
Será inquirido acerca de banalidades, falará da dificuldade do
jogo, simulará alguma dúvida na escalação, desfiará declarações
rigorosamente similares às proferidas dias antes. Comentará da
“situação difícil na tabela, que estamos enfrentando com muito
trabalho”, e a entrevista acabará com todos contentes com suas
pautas fechadas.
“No
fundo, isso tudo é um teatro em que cada um exerce seu papel.”
Entediado,
o professor volta a recitar em sua mente os passos de seu ciclo. É
apresentado, conquista o grupo, organiza minimamente o time, faz os
jogadores correrem pra ele, vence. E aí vem a melhor parte.
Porque,
quando tudo corre bem, a primeira vitória traz confiança. E não há
nada mais letal do que jogador motivado e confiante. “Dopado” com
esses atributos, o indigente joga como medíocre, o medíocre vira
bom, o bom se torna craque, o craque se reveste em gênio. E as
panelas batendo soam como orquestra. E as vitórias borbotam caudais,
colhem-se de cacho.
E aí
o professor vira estrela de programa esportivo, os principais
jogadores se tornam xodós ou ídolos, seu time vira moda,
referência, passa a ser admirado, comentado, falado, invejado.
Independente do que aconteça a partir daí, o nome já está
estabelecido para o mercado. Contratos futuros.
“Essa
parte é boa. Muita gente puxando o saco”, reconhece enquanto masca
um chiclete e entra no carro.
No
auge do prestígio do ciclo, o professor tem um arco amplo de
atuação. Treinos pegados, jogadores querendo mostrar serviço,
“fazer filme” com o chefe. É uma hora delicada, porque o
professor não pode se esquecer daqueles que lhe abriram a porta no
começo. Mas também precisa manter o time funcionando. É o que os
mais novos chamam de “gestão do elenco”. Antigamente se dizia
“papaizão”. Saber comandar, disciplinar, afagar, manter todos
juntos a ele. É nessa hora que muitos se perdem.
Depois,
o início da queda. O time passa a ser estudado, analisado,
dissecado. E anulado. As vitórias agora escassas, às vezes vindo em
semanas. E sem a fragrância adocicada do triunfo, esvai-se a
confiança. “O papai já não dá mais no couro”. E o elenco,
antes pilhado e arrebatado pela fome do êxito, volta a se dedicar a
assuntos mais mundanos e agradáveis em suas resenhas e horas de
folga.
“Quando
a ladeira vira descida já era, amigo”. O professor já está a
caminho de casa, ouvindo algo para se distrair da tensão.
Cinco
jogos sem vitória. Um novo revés no domingo e será engatada a
terceira derrota seguida. E os sinais, sempre os sinais, todos aí,
expostos a todos os que são capazes de interpretá-los. Dando de
ombros, o professor sente não haver muito o que fazer. Perdeu o
grupo. Não necessariamente por indisciplina, todos chegam no
horário, batem ponto, treinam e vão embora. Mas o elenco já não
lhe pertence. Não há a fé. A flama do objetivo em comum. A
identidade coletiva.
Os
sinais. Jogadores substituídos com gestos de reprovação, como
discreto menear de cabeça ou a marcha displicente ao deixar o
gramado. As entrevistas veladas, “tá faltando organização ali”,
“estamos atacando com pouca gente”, “temos que treinar mais”,
empresários de jogadores (normalmente os reservas) cavando vaga em
outras equipes, as matérias evidentemente plantadas na imprensa,
“alguns diretores já estão descontentes”, “treinador já não
é unanimidade no clube” e o beijo da morte do Presidente ou do
Executivo, ou de qualquer homem-forte, que “prestigia” o trabalho
em público. “ainda não nos passa pela cabeça trocar”,
“confiamos nele para reverter essa situação”, declarações que
sinalizam que a lâmina já está sendo afiada para a execução.
O
telefone toca no viva-voz. É seu agente. Traz uma sondagem de outra
equipe. Também grande e com problemas na tabela. Com um jogo
duríssimo no fim de semana. Provável derrota e demissão do colega.
O agente quer saber se interessa. “Cozinha eles. Já vai discutindo
salário, essas coisas. Mantenha no circuito. E se vazar pra fora eu
nego e a coisa morre, ok?”
Assim
são as coisas. Assim é o jogo. Assim é a vida.