O
problema não é jogador.
Com
efeito, o Flamengo montou um elenco estrelado para a disputa da
temporada. A começar pelo gol, em que ostenta um goleiro titular de
Seleção, Campeão Mundial, profissional de primeiríssima linha, um
dos melhores do planeta. Nas laterais, atuam dois jovens Campeões
Mundiais de Juniores (sub-20) no México, pela Seleção Brasileira
da categoria. No miolo de zaga, mais dois Campeões Mundiais, figuras
carimbadas em qualquer convocação para a Seleção Brasileira de
Profissionais.
Mais
Campeões Mundiais compõem o meio-campo, formado por três herois de
1981. No mortífero ataque alinha mais um garoto Campeão Mundial de
Juniores, além de outro Campeão de 1981. Completando a equipe, um
jovem Campeão Brasileiro de 1983.
Além do
estrelado time titular, o Flamengo dispõe de um robusto banco de
reservas, formado por jogadores de Seleção Brasileira, jovens
Campeões Mundiais de Juniores e alguns valores revelados pela
prolífica base do clube, tida como referência nacional em matéria
de qualidade de formação de atletas.
Aos
nomes: Fillol, Jorginho, Leandro, Mozer e Adalberto; Andrade, Adílio
e Tita; Elder, Nunes e Bebeto. Como opções, Cantarele, Hugo
(goleiros), Heitor (lateral), Figueiredo, Zé Carlos II, Guto
(zagueiros), Bigu (volante), Gilmar Popoca (meia), Edmar
(centroavante), João Paulo (ponta-esquerda).
No
comando desse plantel, um treinador consagrado, cotado para dirigir a
Seleção Brasileira nas Eliminatórias da Copa que terão início no
ano seguinte. Ninguém menos que Mário Jorge Lobo Zagalo.
É,
provavelmente, o melhor plantel em atividade no futebol brasileiro.
Nada menos do que 14 (quatorze) jogadores com passagens em Seleções
Brasileira de Profissionais ou da Base.
Enfim,
definitivamente, o problema não é jogador.
Mas o que
há de errado, enfim?
Porque
esse elenco estrelado, pleno de jogadores cascudos e consagrados,
acaba de terminar a temporada sem conquistar absolutamente nada. Um
time que entrou o ano com a ambição de ganhar competições
nacionais e continentais, vê-se, subitamente, com as mãos
praticamente vazias, salvo uma prosaica Taça Guanabara. Para piorar,
vê o rival Fluminense, com um time onde vicejam apenas três
jogadores de primeira linha (Romerito, Ricardo Gomes e Branco), que
escoltam jogadores razoáveis (alguns, com muito boa vontade) a bons,
empilhar um Brasileiro e partir para o segundo Estadual. O Flamengo,
pela primeira vez em seis anos, não conquista nenhum título de
expressão ao longo do trajeto.
O que
terá faltado?
A
diferença nas formas de jogo chega a ser acintosa. O Flamengo,
embora já não pratique o futebol encantador do início da década,
ainda reúne várias das qualidades que o fizeram uma das equipes
mais vitoriosas da história do futebol brasileiro. Conciliando a
capacidade de alternar o ritmo da retenção de bola, ora cadenciando
pacientemente o jogo com impressionante exuberância técnica, ora
imprimindo ataques de velocidade alucinante (ajudado pela entrada de
Bebeto), mas agregando o espírito competitivo dos novos tempos
pós-Sarriá. Com Cláudio Garcia (treinador que ajudou a montar o
time do Fluminense) e depois Zagalo, o Flamengo deixa de lado o jogo
romântico e eminentemente ofensivo, e passa a cuidar de sua
retaguarda. É um time agressivo, mas que sabe fechar espaços,
embora sofra com problemas de recomposição defensiva.
Enquanto
isso, o rival pratica um futebol muito bem executado, mas
inquietantemente previsível. Linhas postadas em seu campo, marcação
sufocante na intermediária e cortante velocidade em contragolpes de
objetividade extrema. O sistema defensivo é sólido, apenas um dos
laterais tem liberdade para atacar, a dupla de volantes alterna entre
a bicuda e a porrada, há um meia cerebral que articula as ações
ofensivas, um ponta-esquerda arisco e veloz e uma dupla de atacantes
com notável capacidade de finalização. É a quintessência do
“futebol reativo”, que ganha qualidade com a chegada de mais um
meia (Romerito), mas jamais abandona sua índole de “futebol de
resultado”.
Ao final
da temporada, mais um daqueles balanços de desempenho é produzido,
avaliando-se com quais jogadores a comissão técnica pretende contar
para o ano seguinte. Ainda atônita com o desempenho incompatível
com o nível do plantel, a Diretoria tenta juntar os cacos. Mas há
pistas. Algumas evidências que podem ajudar a explicar o que pode
ter acontecido.
Como a
desastrada gestão da campanha no Brasileiro. Na Terceira Fase, o
Flamengo conquista sua classificação com antecedência, ao derrotar
Santos, América e Náutico, e depois soma mais dois pontos
decorrentes de empates contra o América e a equipe da Vila. Resta o
confronto com os pernambucanos, em Recife. Irritada com a violência
dos jogadores santistas na recente sequência de jogos contra os
praianos (três partidas em uma semana, válidas por Brasileiro e
Libertadores), a comissão técnica manda um misto de reservas e
juniores para o Arruda. Perde a partida (1-2), resultado que elimina
o Santos do Brasileiro. No entanto, ao terminar a Terceira Fase com 8
pontos, o rubro-negro despreza a vantagem do mando de campo nas
Quartas-de-Final. Decidirá com o Corinthians (que também soma 8
pontos, mas consegue melhor saldo de gols) no Morumbi. E isso se
mostrará fatal.
Ainda no
Brasileiro, o Flamengo faz grande partida no Maracanã e derrota os
paulistas (2-0), num jogo em que desperdiça preciosas oportunidades
de gol. Antes do jogo decisivo em São Paulo, o rubro-negro vai
enfrentar o América de Cali, no Maracanã, pela penúltima rodada da
Primeira Fase da Libertadores. O rubro-negro divide com os
colombianos a liderança do grupo (7 pontos cada). Mas ainda tem dois
jogos a cumprir, sendo o último deles o jogo contra o desinteressado
e já eliminado Atlético Junior, também no Maracanã, enquanto o
América despede-se na partida contra o Flamengo. O time escala a
força máxima, e não encontra dificuldades para abrir 4-2,
garantindo assim a vaga de forma antecipada. No entanto, perde Tita e
Bebeto, lesionados, para o jogo do final de semana contra os
corintianos (Bebeto ainda atua, mas, visivelmente sem condições de
jogo, logo é substituído com poucos minutos). Com o ataque
seriamente comprometido, o time se vê completamente envolvido, é
goleado (1-4) e perde a vaga no Brasileiro.
Segue-se
uma breve pausa, de cerca de um mês, período suficiente para o
clube se desfazer de Júnior, vendido para o futebol italiano. Para
repor a saída do Capacete, o Flamengo contrata do América o
lateral-esquerdo Jorginho, titular da Seleção Brasileira de
Juniores e já efetivado na equipe rubra. No entanto, Zagalo prefere
trazer Jorginho (que é destro e atua dos dois lados) para a
lateral-direita, subindo o talentoso Adalberto para o lado esquerdo.
No
entanto, há um problema. Jorginho não pode mais ser inscrito para
as Semifinais da Libertadores. No jogo de estreia, contra o Grêmio
no Olímpico, Zagalo improvisa o volante Bigu, que ocasionalmente
“quebra um galho” atuando na função (normalmente com mau
desempenho). A ideia se revela um desastre. O Grêmio desloca Renato
Gaúcho, que vive grande momento, para a esquerda. E Renato passeia
sobre o jovem. Bigu falha em pelo menos três dos cinco gols sofridos
pelo rubro-negro na humilhante goleada (1-5), a terceira em um
intervalo de três meses (além de Grêmio e Corinthians, o
rubro-negro amargara um revés no Beira-Rio pelo Brasileiro, 0-4
Inter). Há ainda uma questão administrativa, o Flamengo não leva
camisas de mangas compridas para Porto Alegre, embora a temperatura
local pouse a patamares próximos de 0 °C.
Em que
pese as declarações raivosas da Diretoria (“é inadmissível
sofrer tantas goleadas. Vamos tomar uma atitude”), não há
mudanças significativas no time, salvo o envio de Bigu, que cai em
desgraça, para o ostracismo. Com Leandro de volta à lateral-direita
e Figueiredo efetivado na zaga, o Flamengo reage, derrota o Grêmio
no Maracanã (3-1, em jogo em que inexplicavelmente o time recua após
abrir 3-0) e vence o frágil ULA (Universidad Los Andes) por 3-0 em
Mérida, na Venezuela. Assim, o time precisa vencer os venezuelanos
por OITO gols de diferença para atingir em vantagem um
jogo-desempate contra o Grêmio. A despeito dos riscos, Zagalo assume
a pressão e avisa que “saberá como escalar a montanha” e
conseguir a diferença necessária. Dá tudo errado. O fraquíssimo
ULA abre o marcador e se tranca na defesa. O Flamengo roda o jogo,
chuta de longe, precipita jogadas, levanta 36 bolas na área dos
venezuelanos e, nervoso, por muito pouco não protagoniza um dos
maiores vexames de sua história. A suada virada (2-1) somente se dá
nos minutos finais de um jogo em que o Flamengo enfrentou o maior dos
seus adversários. A si mesmo.
Com a
pálida vitória, o rubro-negro perde a vantagem e acaba eliminado
das Semifinais, ao não conseguir superar a retranca do Grêmio, que
segura o 0-0 num Pacaembu com mais de 50 mil.
Resta o
Estadual. E, após uma campanha sólida (onde perde apenas três
pontos), o Flamengo conquista a Taça Guanabara, ao atropelar o
Fluminense na última rodada. O magro 1-0 (gol de Adílio, de cabeça)
não reflete nem de longe a plena superioridade rubro-negra, que
realiza uma de suas melhores atuações do ano. No entanto, a euforia
pelo título traz em seu bojo uma perigosa acomodação. Já na
estreia da Taça Rio, a equipe é derrotada pelo Volta Redonda (0-1)
no Raulino de Oliveira. Pontos que fazem falta.
Mesmo
apresentando uma campanha irregular, o Flamengo surge como forte
candidato ao título do Segundo Turno, o que daria ao rubro-negro a
conquista antecipada do Estadual. O Botafogo, comandado pelo atacante
Baltazar, surpreende e vence alguns clássicos. O Bangu e o Vasco,
após más campanhas no Turno inicial, recuperam-se. Com isso, a Taça
Rio apresenta um notável e inacreditável equilíbrio, com cinco
equipes disputando “cabeça a cabeça” o título do turno.
O
Flamengo vence Botafogo (3-2) e América (1-0). Mas, contra o Vasco,
vai vencendo por 1-0 até sofrer o empate nos minutos finais. Pior se
dá contra os banguenses. O rubro-negro abre o marcador e desperdiça
uma chance atrás da outra. Não mata o jogo. E é castigado nos
descontos, no último lance, quando o árbitro, apito à boca, apenas
aguardava seu desfecho para encerrar a partida. Com o 1-1, o
rubro-negro se distancia da briga. Mas não muito.
Na
penúltima rodada, Botafogo 14, Flamengo 13, Vasco 13, Bangu 13 e
Fluminense 12 estão inacreditavelmente embolados na disputa do
título do returno. O Flamengo enfrenta o lanterna Campo Grande no
Maracanã. Com uma vitória simples, passará a 15 pontos no turno e
34 na soma acumulada de pontos. Uma vez que o Fluminense somente pode
alcançar no máximo 33 pontos na soma geral, o contexto parece
bastante claro. Se o Flamengo derrotar o lanterna no Maracanã,
virtualmente elimina o Fluminense do Estadual (as chances do tricolor
vencer a Taça Rio são muito remotas). O meia Delei joga a toalha:
“acabou. Não vão perder ponto num jogo desse tipo.”
O
Flamengo, mesmo atuando mal, abre o placar com Gilmar Popoca, num
tiro de longe. Pouco depois, o árbitro assinala um pênalti em Tita.
Tudo parece tranquilo e encaminhado com o iminente segundo gol. Mas
Tita estoura a cobrança na trave. Irritada, a torcida começa a
vaiar o jogador que, nervoso, passa a errar tudo. Numa dessas falhas,
o Camisa 10 perde uma bola na intermediária, e no contragolpe o
Campo Grande consegue um pênalti. Cantarele defende, mas o árbitro
manda repetir a cobrança. E se dá o empate. Na segunda etapa, o
Flamengo, desnorteado com a inusitada dificuldade, não consegue
reverter o placar. E sai de campo com um desastroso 1-1. No dia
seguinte, os jornais não perdoam: “camarão que dorme na beira do
mar a onda leva”. O Fluminense ressuscita e, mesmo sem conseguir
vencer a Taça Rio (que é conquistada pelo Vasco), chega às Finais
justamente pelo índice técnico (ultrapassa o Flamengo, já beirando
a crise, ao vencer o rival por 2-1 na última rodada do returno).
Com o fim
do Estadual, termina o ano. Uma temporada a se esquecer, em que pese
a necessidade de aprender com determinados erros se imponha como
pauta. Os jogadores entrarão de férias, o clube entrará de férias,
e um novo período terá início. Contratações pontuais, jogadores
que emergem como revelações serão o critério para a aquisição
de reforços. A base do elenco será mantida, avaliando-se que o
plantel já possui qualidade suficiente. Até que, ao final do
semestre, uma bomba explodirá na Gávea, sinalizando o retorno do
Messias. A solução que o pensamento sebastianista flamengo logo
abraçará como a panaceia para as agruras recentes.
No
entanto, chegará o Salvador mas os títulos seguirão longe da
Gávea.
Ao menos
por enquanto.