Tristeza, frustração, o
vazio na existência, que ardia com a perspectiva da glória tão próxima, roçando
os dedos, formando-se em um luzidio e feérico vulto e, num átimo, num esgar, desvanecendo-se
em súbita morte, o vácuo sob os pés, o angustiante vazio nas entranhas, a
sensação de impotência irmanada com o inconformismo.
Há paz na Gávea. O
clube repousa num suave silêncio, a fria brisa convida ao descanso, à reflexão,
à prática de vislumbrar as crianças que, inocentes, dedicam-se a seus
folguedos, correndo umas atrás das outras. Algumas chutam bolas. Dói.
As grandes, pesadas e
doloridas derrotas fazem parte da história esportiva das agremiações, mesmo as
mais vitoriosas. Capítulos amargos, momentos áridos da vida com os quais é
forçoso conviver. E, quanto mais ambicioso, quanto mais esfomeado de glória se
é eivado, mais duro é o golpe do revés, da perda, da glória negada.
No entanto, qualquer
derrota, por mais acachapante, por mais humilhante, por mais vexatória, sempre
terá algo a ensinar. E os desdobramentos que advirão do revés estão intimamente
ligados, umbilicalmente amarrados à maneira com que são acolhidos os
ensinamentos tão didaticamente lecionados pelo instituto do fiasco.
*
* *
A diretoria parece
desnorteada. Tendo que conviver com a pecha de “iniciante” e “pouco afeita às
coisas da bola”, muito em função da sua pequena experiência anterior em
administrar clubes de futebol, agora precisa se dedicar ao trabalho de
reconstruir o moral de um elenco destroçado e uma torcida profundamente
frustrada com a perda de uma perspectiva que, enfim, parecia se descortinar à
sua frente após anos de derrotas.
“Certamente haverá mudanças, que já estavam
previstas, mesmo se vencêssemos. Evidentemente, há jogadores que estão fora dos
planos e serão negociados. Reforçaremos o elenco e o time. A torcida pode ficar
tranqüila que entraremos no Brasileiro com uma equipe bem mais forte”
“Não mexeremos no
treinador. Estamos satisfeitos com seu trabalho. Enquanto o contrato dele
estiver em vigor e eu estiver sentado nessa cadeira, o treinador somente sairá
do Flamengo por vontade própria. Não é um resultado ruim que irá alterar a maneira como programamos o ano.”
Com efeito. Após um
início claudicante, o treinador conseguiu encontrar um time-base que, mesmo
composto por alguns elementos nitidamente limitados, enfim passou a apresentar
algum conjunto e mesmo certo equilíbrio. O futebol, ainda não totalmente
vistoso, já mostrava competitividade. Com isso, o Flamengo engatou uma
sequência de oito vitórias consecutivas, em algumas delas mostrando inclusive
um jogo fluido e agradável, deixando a sensação de que, reforçados alguns
pontos fracos, o clube enfim seria capaz de montar uma equipe realmente forte e
apta a disputar o título nacional.
Essa é a análise
racional. É difícil ser racional na derrota.
Sob pesado bombardeio
de torcedores, imprensa, rubro-negros ilustres e ex-dirigentes, a diretoria
parece hesitar. Alguns reforços já apalavrados são confirmados e, enquanto isso,
o Flamengo precisa cumprir compromissos em campo. Não há tempo para remoer.
Mas, com um time visivelmente apático e abatido, o time começa a acumular
resultados negativos. O treinador, que antes dividia opiniões (é muito
criticado pela forma como administra o elenco), começa a ser encarado como um
dos problemas. Ou “o” problema, segundo a principal referência e liderança
técnica do plantel.
E cai.
A demissão do treinador
(contra sua vontade, contrariando as declarações do dirigente) faz rebentar um
aluvião na Gávea. As derrotas recentes trazem a certeza de que uma reformulação
severa se torna imperiosa. Não é possível conviver com a presença de jogadores
sem a menor capacidade de envergar a camisa do Flamengo. Jogadores que são
escalados “no nome” precisam sair. A mentalidade acomodada, apática, mesmo
acovardada mostrada em boa parte da fatídica partida não pode ser aceita,
admitida, tolerada. Isso aqui é Flamengo.
E tem início a
inquisição.
O goleiro falhou em
momentos decisivos. É contratado outro, com mais experiência em clubes grandes.
O lateral-direito jogou improvisado e é limitado. Será negociado, chegando dois
nomes para a posição. A zaga é um ponto fraco. Chega uma dupla nova em folha,
inclusive com um zagueiro de Seleção. O lateral-esquerdo, velho e decadente, é
negociado, chegando um dos principais nomes do futebol brasileiro na
atualidade. E assim sucessivamente.
Ao final de um
movimentado período de transferências, enfim o Flamengo remodela seu elenco. Dá
a resposta. Age. É o murro na mesa tão cobrado, tão clamado por muitos.
Jogadores com anos de casa, “jogando apenas pela biografia”, são dispensados.
Pratas da casa são negociados. Apostas que atuaram poucos jogos são rifadas. “Esse
não serve. Esse não presta. Esse não tem condições”. Enquanto isso, um
zagueiro, antes pouco conhecido, tem brilhante atuação num amistoso contra o
Flamengo. Dois dias depois, é contratado. Jogadores medianos, que sequer
ostentam a condição de titulares indiscutíveis em seus clubes, chegam para
reforçar o elenco.
Há também as grandes
contratações. Caso do “negócio de oportunidade” do atacante de Seleção que, em
litígio com seu clube, entrara em negociações com o Botafogo. O Flamengo,
farejando a chance, atravessou o negócio espatifando a porta a coturno, tomando
do alvinegro o jogador na mão grande.
Enquanto se procede à
remontagem do elenco, a diretoria escolhe o treinador. Tenta sacar de seus
empregos alguns nomes que são de agrado da torcida, mas não obtém êxito. O
jeito é recorrer a um antigo conhecido do elenco, aliás indicado como “o
preferido dos jogadores” em enquete informal no vestiário. Ironicamente,
treinador esse que havia sido demitido pela mesma diretoria no início do ano. O
futebol, por vezes, é capaz de pregar peças.
Enfim, o Campeonato
Brasileiro está prestes a iniciar. Ainda sem afastar completamente a crise, mas
imerso em um misto de esperança e expectativa, o Flamengo apresenta seu novo
time para a estréia na competição.
Time-Base em junho:
Roger, Marcos Adriano,
Gelson, Jorge Luís, Branco; Charles Guerreiro, Fabinho, Marquinhos, William;
Romário, Sávio
Time-Base em agosto,
dois meses depois:
Paulo César, Robson,
Cláudio, Ronaldão, Lira; Márcio Costa, Pingo, Djair; Edmundo, Romário, Sávio
Nove titulares
trocados. Da formação-base que terminou o semestre, sete jogadores foram
negociados. O novo time é composto por nove novos nomes, fora alguns reservas.
Não é a derrota. É o
que se faz dela.