Está consumado.
Após
semanas de idas e vindas, informações desencontradas, exigências e
recuos e uma negociação que se arrastou como novela, enfim o
desfecho é anunciado. Roberto Rivelino não é mais jogador do
Fluminense. Vai defender o Al-Hilal, da Arábia Saudita.
A
transferência de Rivelino, tido como o principal jogador brasileiro
em atividade, último remanescente, ao lado de Jairzinho (este já
apresentando visível decadência), do ataque da Seleção Brasileira
de 1970, vem aprofundar o processo de expansão do futebol do Golfo
Pérsico, turbinado pelos petrodólares que passaram a jorrar fartos
a partir do início da década de 70. Com efeito, após investir na
contratação de treinadores, os sauditas agora passam à
qualificação dos elencos que disputam a Liga local, buscando emular
a bem-sucedida experiência dos Estados Unidos. Assim, não irão
parar em Rivelino.
O anúncio
da contratação de Rivelino é breve. Não há uma solenidade
formal. Mas o porta-voz do Al-Hilal é claro. Avisa que o príncipe
Khaled al-Saud, da família real saudita, animado com a repercussão
da aquisição do jogador, já autorizou seu representante no Brasil
a viabilizar um novo negócio.
Quer
contratar Zico.
Zico, o
Galinho de Quintino, o Camisa 10 da Gávea, já é uma realidade.
Craque do time e ídolo da torcida, Zico, no entanto, ainda segue
amadurecendo para atingir um nível de estrelato compatível com sua
diferenciada condição técnica. A falta de títulos de expressão
(sua única conquista no Profissional, o Estadual de 1974, já se
arrasta para o incômodo quarto ano) e a pecha de “Jogador de
Maracanã”, impingida pelo bairrismo das imprensas paulista e
gaúcha, ainda são marcas negativas que insistem em se manter
coladas ao jogador. A participação apagada no Mundial da Argentina,
recém-encerrado (marcou apenas um gol, de pênalti, chegou a ser
barrado e, quando recuperava a posição, sofreu grave distensão
muscular, ainda sendo tratada), não ajudou muito a reverter esse
quadro.
Além
disso, ainda há a questão administrativa. Embora o Flamengo venha
atravessando um duro processo de reestruturação financeira, algumas
pendências incomodam. O elenco caminha para o terceiro mês de
atraso nos salários. O clube segue devendo o pagamento do 13º
Salário referente aos anos de 1976 e 1977. Algumas parcelas de luvas
e adiantamentos também não foram honradas. A situação se agrava
ao ponto de alguns jogadores, os mais experientes, acionarem o clube
na Justiça Trabalhista, em Ação Coletiva, exigindo a quitação
dos débitos, mesmo que para isso seja necessária a penhora de bens
(como no constrangedor episódio em que Oficiais de Justiça, em
cumprimento de Mandado, removeram uma pesada e valiosa mesa da Mansão
de São Conrado). Esses problemas, aliados à falta de resultados em
campo, vão minando a relação entre os jogadores, a diretoria e a
torcida.
O
representante do Príncipe procura o Presidente do Flamengo para
iniciar as tratativas da negociação. É claro e direto. Quer
conhecer as condições para que possa construir uma contraproposta,
tendo em vista a contratação de Zico.
O
Presidente precisa avaliar com calma todas as nuances da negociação.
Sabe que a situação do clube, embora bem melhor que o estado de
calamidade encontrado no início do mandato, ainda é frágil,
delicada. Há a perspectiva da venda da Sede Velha, na Praia do
Flamengo que já tramita há meses e que, se bem-sucedida, enfim
poderá desafogar e trazer solvência ao clube. Mas o prazo para sua
consumação é imprevisível. Além da Justiça, há as resistências
internas. O time é considerado fraco, com vários ex-juniores que,
embora considerados talentosos, são avaliados como “sem capacidade
de decisão” (com efeito, as eliminações do Brasileiro de 1975 e
dos Estaduais de 1976 e 1977 pespegaram uma perigosa aura de
“perdedora” ao plantel). Reforços, não há dinheiro. O clube
apenas consegue contratar jogadores veteranos, lesionados ou
desconhecidos (de fato, acaba de anunciar o goleiro Raul, que iria se
aposentar, o decadente zagueiro Moisés e os obscuros Eli Carlos e
Tião, e anda atrás de nomes como o volante Élcio, do Operário-MS),
não dando o menor sinal de que poderá reverter o favoritismo do
Vasco (atual Campeão Estadual e Semifinalista do Brasileiro). A
desastrosa participação no Brasileiro (16º Lugar) trouxe um ar de
pessimismo e descrença com o futuro próximo do rubro-negro. Num
contexto desses, talvez a venda de Zico possa proporcionar a montagem
de um elenco mais sólido, homogêneo, sem depender tanto de apenas
um ou dois jogadores. Haverá eleições ao final do ano. Novo
fracasso no Estadual poderá custar a cabeça do dirigente, que pensa
em se reeleger.
No
entanto, se o Flamengo patina há quatro anos dentro de campo, um
jogador como Zico é um importante elo entre a instituição e sua
torcida. Assistir aos gols e lances do Galinho é um dos poucos
alentos do torcedor rubro-negro nesses tempos difíceis. Abrir mão
dessa química, mesmo que para trazer três ou quatro jogadores de
Seleção, é uma manobra arriscada, com consequências eleitorais
potencialmente devastadoras. O dinheiro da venda traria alívio e
perspectivas de curto prazo. Mas, e depois?
A
conversa é amistosa. O Presidente do Flamengo faz saber ao
representante do Príncipe que somente aceita vender Zico por Cr$ 30
milhões, o equivalente a US$ 2.5 milhões, o que significa a maior
transação de venda de um jogador brasileiro na história. Além
disso, exige um sinal de US$ 100 mil, depositados em um banco
brasileiro, para formalizar o início das negociações. Por fim,
comunica que não sairá do Rio de Janeiro sob nenhuma hipótese, e
toda a transação terá que ser acertada em solo carioca.
Sob as
exigências do dirigente flamengo pairam algumas desconfianças. O
Presidente não quer se expor como o seu colega do Fluminense, que
foi obrigado a andar de avião em avião no circuito Rio-Paris-Riad e
se submeter aos humores do Príncipe Khaled que, conhecendo a
dramática situação do clube das Laranjeiras, conseguiu, pelo
cansaço (chegou a embarcar o dirigente tricolor em um avião e
fazê-lo esperar, em território saudita, até uma semana por uma
audiência) reduzir de US$ 2 para 1.25 milhões (parcelados em dez
vezes) o preço da compra de Rivelino. Ademais, alguns rumores de
certa falta de rigidez no cumprimento de compromissos financeiros
(especialmente no pagamento de cheques) por parte dos árabes
recomenda à diretoria flamenga agir com a máxima precaução.
O
Príncipe saudita recebe as demandas rubro-negras com irritação.
Mesmo assim, autoriza o seu procurador no Brasil a seguir a
negociação. Dessa vez, instrui o agente a proceder da mesma forma
que funcionara com Rivelino. Seduzir Zico com cifras e fazê-lo
pressionar o clube para viabilizar o negócio, algo que, em tempos de
Lei do Passe, é amplamente incomum.
Zico não
vê com maus olhos uma transferência para o exterior. Sabe que o
mercado externo tem atraído cada vez mais os principais jogadores
brasileiros (Paulo César Lima, Marinho Chagas, o próprio Jairzinho
anos antes, Luís Pereira, Leivinha, entre outros) e que celebrar um
contrato fora do país é condição-chave para assumir a tal
“independência financeira”, algo tão importante em uma carreira
curta como a de jogador de futebol. O Galinho, com 25 anos, está em
sua sétima temporada, e sabe que as oportunidades não aparecem com
frequência. Por outro lado, desfrutar dos abundantes petrodólares
sauditas provavelmente será, na prática, o zênite de sua carreira
esportiva, que segue em ascensão.
O agente
saudita se reúne com o Procurador de Zico. Oferece um contrato com
bases semelhantes às acertadas com Rivelino. Salário de US$ 55 mil,
limpos de impostos, um automóvel Mercedes-Benz última geração, um dos palácios da família real à disposição para residência e
todas as despesas (moradia, escola, saúde, alimentação etc) pagas
pelos sauditas. Jogará no Al-Ahli, clube rival do Al-Hilal, de
Rivelino. As cifras são astronômicas, bem acima da realidade do
Brasil.
Enquanto
propostas e contrapropostas são expostas, a transação já
transborda para a imprensa, em mais uma estratégia do Flamengo, que
não abre mão do valor estipulado pelo passe. Alguém lembra que a
“janela” de transferências para estrangeiros na Arábia Saudita
já está fechada. Com isso, Zico ainda permaneceria no Flamengo até
o final do ano, podendo disputar o Estadual, numa solução “de
transição” que amenizaria o impacto da transação. No entanto, a
ideia é rechaçada pelo representante saudita.
“O
futebol na Arábia Saudita é organizado e sustentado pela família
real, que escreve as leis e normas. Se o prazo de transferências
está fechado, um príncipe vai lá e reabre. Esse é um problema
menor. Zico, sendo vendido, sairá de imediato.”
Rivelino,
de volta ao Brasil para organizar sua mudança, promove um rumoroso
jantar de despedida em sua residência. Estão presentes os agentes e
representantes do Príncipe Khaled, o Presidente do Flamengo, Zico e
seu Procurador. O evento é considerado decisivo para demarcar o
avanço das negociações.
No
entanto, assinalará o seu final.
Zico e
seu Procurador voltam a se reunir com o Agente do Príncipe. Ouve a
ratificação das condições e números apresentados na sondagem
anterior. No entanto, escuta duas solicitações. Na primeira, o
agente pede que 10% de todos os rendimentos que o Galinho auferir lhe
sejam repassados a título de comissão. O segundo pedido é a
reiteração da recomendação de que o negócio só sairá se o
Flamengo reduzir o valor de venda, e o Príncipe conta com a boa
vontade de Zico, no sentido de “convencer” o Flamengo a ser mais
maleável.
O
Procurador do Galinho agradece e repele categoricamente os dois
pedidos. Informa que o jogador nada tem a ver com comissões e
participações de intermediários, e recomenda que o agente vá se
entender com o Flamengo. Também avisa que Zico jamais se prestará a
forçar a saída do Flamengo (“Não somos mercenários”), que
transações de compra e venda são assuntos exclusivamente da alçada
dos clubes e que seus respectivos dirigentes são os responsáveis
pelo negócio.
Sem
acerto com o jogador, a transação também não encontra campo
fértil na outra ponta, o Flamengo. O representante saudita se nega a
pagar qualquer sinal para seguir com as negociações com o Flamengo.
Também pondera que é difícil para o Príncipe sair do país, em um
momento tão turbulento, e coisa e tal. O Presidente flamengo ouve
tudo com atenção e, no tom mais cordial que consegue expor, deixa
claro:
“Sem
sinal, sem negociação. Além disso, não sou mascate pra sair pelo
mundo oferecendo jogador como mercadoria. Sendo assim, passar bem.
Aproveite a festa”
E assim
os sauditas desistem da contratação de Zico. Sem se darem por
vencidos, anunciam que agora tentarão tirar o volante Batista do
Internacional. Enquanto isso, a Diretoria do Flamengo, algo aliviada,
recebe com euforia a notícia de que há boas perspectivas de
andamento da tramitação da venda da Sede Velha.
A roda
vai começar a girar.
* * *
“Os
sauditas, no final de 1978, ainda tentam a contratação do treinador
Cláudio Coutinho, sem êxito. Em paralelo, estoura nos jornais um
escândalo, dando conta que o Príncipe Khaled emitira cheques sem
fundos para o Fluminense, referentes ao pagamento de parcelas pela
compra de Rivelino, iniciando um arrastado processo que somente será
solucionado após meses, com a interferência direta de João
Havelange, Presidente da FIFA e ligado ao clube das Laranjeiras.”