O jogo se aproxima do final. Quarenta e quatro do segundo tempo.
Um
Fla-Flu melancólico, aliás ultimamente tem sido praxe haver
Fla-Flus melancólicos. Enfim, tarde de terça-feira, Caio Martins, 4
mil pagantes, jogo por um Rio-São Paulo com cara de caça-níqueis.
Flamengo abre 2-0, parecendo que vai golear, um tricolor é expulso e
de repente, do nada, em 9 minutos o adversário vira o jogo e vai
vencer a partida.
Última
volta do ponteiro. Meio na base do bumba-meu-boi, uma bola é lançada
na área. Um zagueiro antecipa Renato e ganha na cabeça de
Djalminha, afastando o perigo. Súbito, o bate-boca. A troca de
empurrões. O dedo na cara. O te pego lá fora. As vias de fato que
por pouco não se cristalizam diante da atônita lente da câmera que
enfim consegue sua pauta.
José
Roberto Wright, logo depois, trila o apito. A porradaria, antes
latente, parece que vai explodir. Renato investe atrás de Djalminha,
a intenção é de correr sopapos. O garoto não se intimida, parece
que quer iniciar a coisa ali mesmo, no gramado. Outros jovens, como
Marquinhos e Marcelinho, conseguem, a custo, empurrar Djalminha para
o vestiário, enquanto o resto do time tenta conter Renato, um touro
enfurecido. Todos descem, enfim. E vai saber o que acontece lá
dentro.
Quarta-feira.
Enquanto a Seleção Brasileira, às portas de estrear contra o
Equador pelas Eliminatórias da Copa, vence (sob vaias) o Paraguai
por 2-0 em São Januário e praticamente monopoliza as atenções e
os holofotes, uma reunião é realizada às portas fechadas, quase em
silêncio, na Gávea. O Presidente e seu Departamento de Futebol
estão reunidos para avaliar o grave incidente da véspera, e
resolver o que fazer com Renato e Djalminha. O Treinador, Evaristo de
Macedo, iniciando seu trabalho no clube, é cauteloso. Manifesta-se
contrário ao afastamento (não quer enfraquecer o elenco), mas pede
que algum tipo de punição seja aplicada. “Há muito tempo não
via nada parecido”, frisa.
Pesa
contra Djalminha a reincidência. O esquentado meia já arrumara
confusão semelhante no Brasileiro de 1992, ao trocar empurrões com
Uidemar numa partida contra o Atlético-MG, no Mineirão. Há poucas
semanas, na despedida do Estadual (3-0 São Cristóvão), Djalminha
trocara ofensas e cusparadas com Wilson Gotardo. A avaliação
interna é que Djalminha, dotado de imenso talento, simplesmente não
decola por conta de seu temperamento irascível e de uma suposta
falta de dedicação e disciplina. Com efeito, apesar de ter sido o
craque do título de uma Copa SP cuja lembrança já se esvai a três
anos, Djalminha, ao contrário de outros companheiros como Júnior
Baiano, Nélio, Piá, Marquinhos, Marcelinho e Fabinho, entre outros,
jamais conseguiu se firmar, a sério, como uma opção sólida para a
equipe titular. Tido como desligado e pouco participativo, vive entrando e saindo da equipe e acumulando
momentos iluminados com exibições opacas. Marrento e encrenqueiro,
acumula confusões, como no episódio em que, num treinamento, fora
admoestado por ninguém menos que o Maestro Júnior, que lhe cobrara
mais aplicação num lance. “Não corro pra ninguém. Nem pra
você”, foi a resposta. Por conta do acúmulo de incidentes desse
tipo, Djalminha não desfruta necessariamente de muito prestígio
entre vários de seus companheiros.
No
entanto, se Djalminha é considerado reincidente em casos de
indisciplina, a situação de Renato não é muito distinta.
Contratado a peso de ouro pelo Presidente recém-eleito, após
terminar 1992 como, seguramente, o melhor atacante em atividade no
território nacional (defendendo o Cruzeiro), Renato até aqui pouco
devolveu em campo o investimento realizado. Marcou, pela
Libertadores, o importante gol da vitória contra o Atlético
Nacional, em plena Medellín (após falha clamorosa do goleiro
Higuita, que tentou driblá-lo). Depois, sofreu grave lesão,
permanecendo fora dos gramados durante três dos seis meses de
contrato. No retorno, foi expulso contra o Grêmio, depois perdeu um
pênalti contra o Itaperuna, selando o empate que virtualmente
eliminou o Flamengo do Estadual. Aliás nessa partida Renato ainda
bateu boca com Nilson, após reclamar de um lance em que o
companheiro não lhe passara a bola. A discussão, forte, por pouco
não terminara em uma briga mais séria.
Os dois
jogadores são convocados pela diretoria e aguardam, do lado de fora,
o desfecho da reunião. Mais calmos, dão suas versões para a briga
da véspera, “fui pedir pra ele voltar pra marcar e ele partiu pra
cima de mim. Não quero brigar com ninguém, não sou Mike Tyson.”,
esquiva-se Renato. “O cara abriu o braço e me ofendeu, me xingou.
Pedir pra marcar é uma coisa, chegar ofendendo é outra. Ainda bem
que conseguiram nos apartar”, reconhece Djalminha.
O
Flamengo vive um momento de incertezas. A nova Diretoria assumira o
clube com o discurso de “voltar a Tóquio” ao final do ano, mas
até aqui somente conseguira colecionar uma inusitada coleção de
fracassos. O time acumula, em apenas seis meses, eliminações no
Estadual, Libertadores e Copa do Brasil. Já avança para o seu
terceiro treinador (Carlinhos durou apenas 13 jogos, saiu para Jair
Pereira, que, com as eliminações, agora dá lugar a Evaristo).
Apesar do elenco reconhecidamente forte, foram contratados Renato,
Nilson e Andrei. Os dois últimos já estão de saída, juntamente
com Gaúcho, vendido ao futebol italiano, Uidemar e W.Gotardo. O
Maestro Júnior enfim resolve parar. Um perigoso processo de
desmanche começa a ganhar contornos mais sólidos. Mesmo assim, o
time ainda é forte. Bastante forte.
Mas há o
caso de Renato. Seu contrato está prestes a expirar. Há o interesse
na prorrogação, mas o clube precisa quitar os meses de atrasos no
salário do jogador. A Diretoria contava com a renda do amistoso
contra o Cruzeiro, no Maracanã, que marcaria a estreia de Renato e a
entrega das faixas ao clube mineiro, mas uma chuva torrencial
ocorrida mais cedo afastou o público da partida. De qualquer forma,
perder Renato agora trará péssimos dividendos políticos, pois o
jogador fora utilizado como “moeda de campanha” na acirrada
eleição do final do ano passado.
A porta
da Sala da Presidência se abre. O primeiro a ser chamado é Renato.
Depois, Djalminha. Ambos são notificados da decisão, em caráter
irrevogável e irreversível, tomada pela Diretoria do Flamengo.
É o
Presidente quem explica, loquaz, aos microfones: “Precisávamos
tomar uma atitude, porque a autoridade da instituição foi posta à
prova. O Flamengo é maior que todos. E foi necessário sermos duros,
agirmos com mão de ferro, mesmo contrariando interesses. Não
queremos prejudicar ninguém. Mas o Flamengo está acima de tudo.” E continua, “Renato não agrediu ninguém. Foi um coadjuvante da
cena. Toda a confusão foi iniciada por Djalminha. Que, além de
tudo, é reincidente.”
Após a
arenga, enfim o anúncio. Renato está suspenso por tempo
indeterminado. E Djalminha tem seu contrato rescindido.
Djalminha
reage com indignação e incredulidade. “Nunca vi disso, nós dois
brigamos, erramos, tudo bem. Mas punições diferentes? A corda
arrebentou do lado mais fraco. Enfim, tenho que refazer minha
carreira. Se não for aqui, será em outro lugar.”
A reação
de Renato é mais discreta, quase irônica, “estou indo pra casa.
Se precisarem de mim, é só chamar.”
No dia
seguinte ao anúncio, a Diretoria se reúne com Renato e, após
várias tratativas, enfim se anuncia que o contrato do jogador é
prorrogado até dezembro. Renato segue no Flamengo para a disputa do
Estadual e da Supercopa. A decisão é recebida com ironia. Com
efeito, não é todos os dias que se vislumbra a prorrogação de um
contrato que está suspenso. De qualquer forma, a prorrogação
contratual não cessa os efeitos da suspensão. Renato segue afastado
por tempo indeterminado.
Dura seis
dias.
O
Flamengo, na sequência do Rio-SP, derrota o Palmeiras (3-1) no
Maracanã e assume a liderança de seu grupo. Vai à Vila Belmiro
disputar a vaga da Final. É a última rodada. E o time irá com
força máxima. Renato é reintegrado e volta a treinar com os
companheiros. Estará em campo na derrota (3-4, com o time quase
transformando uma goleada história em um inacreditável empate) e em
mais uma eliminação, mas marcará gols e ninguém mais falará em
punição. Será o principal jogador do Flamengo no segundo semestre.
E seguirá em sua relação de amor e ódio com o clube.
Enquanto
isso, é preciso resolver o que fazer com Djalminha. O contrato está
rescindido, mas o jovem ainda é jogador do Flamengo, com a Lei do
Passe em vigor.
Edu Lima.
Ponta-esquerda, 29 anos. Jogador de força, com um temido e potente
chute de esquerda. Revelado pelo Cruzeiro, projetou-se no Vitória-BA.
Depois, atuou no Internacional, onde chegou à Final do Brasileiro-88
e às Semifinais da Libertadores-89. Agora no Guarani, vive talvez o
melhor momento da carreira, marcando vários gols. As atuações do
jogador despertam o interesse de vários clubes do país. Entre eles,
o Flamengo.
A
negociação é rápida. O Flamengo consegue o empréstimo de Edu
Lima por seis meses. Em troca, manda Djalminha para o clube de
Campinas, por nove meses. Passe fixado, US$ 700 mil.
Djalminha
começa, nesse exato momento, a se tornar realidade.
*
Djalminha, comandado por Carlinhos, torna-se destaque no Guarani, que
termina o Brasileiro na sexta colocação. No final de 1993, o
Guarani compra em definitivo o jogador junto ao Flamengo. Djalminha
segue atuando em alto nível pelo Bugre, de onde sairá para o
futebol japonês e depois para o Palmeiras, onde brilhará
intensamente, e para o Deportivo La Coruña, onde será peça
fundamental para a conquista do Campeonato Espanhol de 1999-2000,
único da história do clube. No entanto, seu temperamento o impedirá
de construir trajetória sólida na Seleção Brasileira.
* Edu
Lima, após passagem apagada pelo Flamengo, será devolvido ao
Guarani ao final da temporada de 1993.